Em fevereiro de 2015, escrevi um texto com este título: “E agora temos pré-escolas online. Sério mesmo”.
Levando em conta o que os médicos dizem a respeito das crianças que passam muito tempo diante de uma tela e o que especialistas em primeira infância dizem sobre as brincadeiras estruturadas serem a melhor forma de uma criança aprender, parecia que as pré-escolas online não tinham muito futuro.
Parecia.
Depois que a educação infantil começou a se ater mais ao chamado “rigor”, com um foco mais acadêmico, o que quer dizer que as crianças passam um bom tempo sentadas na carteira, as pré-escolas online ganharam força. Em 2015, Utah começou a patrocinar a primeira “pré-escola” online estatal, chamada UPSTART. E a empresa distribuiu programas-pilotos para ao menos sete outros estrados, de acordo com a ONG Defending the Early Years [Defendendo os primeiros anos], que contrata pesquisas sobre a educação na primeira infância e defende políticas sadias para as crianças.
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Eis como o Hechinger Report, instituição independente e sem fins lucrativos que divulga notícias relacionadas à educação, descreveu algumas das pré-escolas online numa publicação de outubro de 2018:
Alguns programas de pré-escolas online se vangloriam de ter um currículo premiado e oferecem a satisfação do cliente ou seu dinheiro de volta. Outros oferecem atividades como ciências e artes e visitas virtuais a fazendinhas animadas. O programa de uma dessas pré-escolas garante a evolução acadêmica das crianças em não mais de quinze minutos por dia, cinco dias por semana. Ela recebeu financiamento do estado de Utah para fornecer educação online para crianças das áreas rurais e distribuiu programas-pilotos para vários outros estados, incluindo o Mississippi (...).
Os programas virtuais pré-escolares têm crescido nos últimos anos, e milhares de pais matricularam seus filhos. Eles oferecem de tudo, desde jogos educativos a um currículo pré-escolar completo, com caixas de atividades que são enviados para a casa do aluno e um guia do professor para os adultos. A maioria dos programas são ofertados pela iniciativa privada, embora talvez o que exiba o maior crescimento entre eles seja o UPSTART, desenvolvido pela instituição sem fins lucrativos Waterford Institute e divulgado como um programa de preparo para o jardim de infância. Este programa é usado por crianças em Idaho, Indiana, Carolina do Sul, nas regiões agrárias de Ohio e da Filadélfia, e é utilizado por 30% das crianças de quatro anos de idade em Utah. Em 2013, o Waterford Institute recebeu uma doação federal de US$11,5 milhões para expandir o programa para as crianças das regiões rurais de Utah.
Em outubro, mais de cem organizações e especialistas em primeira infância assinaram um manifesto pedindo o fim do financiamento público das pré-escolas virtuais. O manifestado, coescrito pelas organizações Defending the Early Years e Campaign for a Commercial Free Childhood [Campanha para uma infância não comercial], dizia que essas pré-escolas negam às crianças a experiência presencial que pesquisas dizem ser importante para elas. Diz o manifesto:
As pré-escolas virtuais podem ajudar os estados a economizarem, mas essa economia é feita à custa das crianças e das famílias. O aprendizado na primeira infância não é um produto. É um processo de interações sociais fundamental para o desenvolvimento posterior das crianças. Dizer que esse processo pode ocorrer virtualmente, sem contato humano, é dizer que as necessidades das crianças e famílias podem ser satisfeitas com alternativas baratas, alicerçadas em telas.
Todas as crianças merecem uma educação de qualidade, e podemos recorrer a órgãos e legisladores municipais, estaduais e federais para que eles rejeitem as pré-escolas online e invistam em programas pré-escolas de apelo universal, públicos e baseados em relações pessoais, com claros benefícios de longo prazo.
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E mais. Vale a pena ler uma publicação da especialista em primeira infância Nancy Carlsson-Paige sobre os problemas reais das pré-escolas online.
Carlsson-Paige é professora emérita pela Lesley University em Cambridge, Massachusetts, onde ela leciona para futuros professores há mais de trinta anos e onde fundou o Center for Peaceable Schools [Centro para escolas pacíficas]. Ela também é a autora do livro “Taking Back Childhood” [Recuperando a infância] e “Young Children in the Digital Age: A Parent’s Guide” [Crianças na era digital: um guia para os pais], além de ser membro-fundadora da Defending the Early Years.
Mãe do ator Matt Damon e da artista-plástica Kyle Damon, ela recebeu vários prêmios, entre eles o Legacy Award da Robert F. Kennedy Children’s Action Corps por décadas de trabalho em nome das crianças e das famílias.
Este texto foi originalmente publicado no site EdSurge. Tive permissão para republicá-lo aqui. Confira:
Por Nancy Carlsson-Paige
O crescimento recente das pré-escolas virtuais, já existentes em pelo menos oito estados, permite que esses estados ofereçam uma educação pré-escolar barata. Mas elas são uma forma infeliz de substituir a educação infantil baseada em brincadeiras que todas as crianças merecem receber.
As escolas virtuais têm crescido muito nos últimos vinte anos, e a maioria dos programas são oferecidos pela iniciativa privada. O surgimento mais recente dos programas virtuais pré-escolas abre caminho para que as empresas de educação virtual faturem cerca de US$70 bilhões por ano com o “mercado pré-escolar”.
Em meio a um clima educacional reformista que redefiniu a educação por meio de padrões acadêmicos e testes, os programas online pré-escolares são facilmente vendidos. Os pais estão ávidos por comprar programas de computador que prepararão seus filhos para o jardim de infância fazendo-os mergulharem em letras e números. Os programas ensinam habilidades simples por meio da repetição e da memorização.
A verdade é que para as crianças dominarem o sistema impresso ou os conceitos matemáticos elas têm de passar por complexas evoluções no desenvolvimento que permitem que esses conceitos sejam fixados ao longo do tempo por meio de atividades e brincadeiras.
As crianças menores idealmente não aprendem com instruções em telas. Elas aprendem por meio de atividades. Elas usam os corpos, mentes e todos os sentidos para aprender. Elas aprendem conceitos por meio de experiências táteis com materiais no espaço tridimensional. Por meio de atividades e brincadeiras e da interação com outras crianças e professores, elas aprendem lentamente.
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Muitos programas pré-escolas online estimulam os pais a colocarem seus filhos diante de computadores para realizarem testes acadêmicos antes mesmo de eles entrarem num ambiente pré-escolar.
Se os pais realmente querem ajudar os filhos, estejam eles em escolas de alvenaria ou não, eles se sairiam melhor lendo muitos livros para as crianças, conversando com elas, ouvindo e fazendo perguntas retóricas para ajudá-las a pensarem. Eles podem lhes contar histórias, podem criar um espaço para que as crianças brinquem e podem lhes dar materiais com os quais brincarem, como blocos e suprimentos de arte que permitam que as crianças explorem relações matemáticas e usem símbolos.
As escolas virtuais têm crescido sobretudo em distritos pobres, urbanos e rurais. Elas exigem taxas de graduações e notas incrivelmente baixas, mas as empresas que as vendem têm lucros enormes, além de receberem dinheiro dos contribuintes. À medida que os estados passam a financiar a educação pré-escolar, as escolas virtuais se tornam imediatamente uma opção que permite a esses estados economizar e ao mesmo tempo dizer que estão oferecendo educação pré-escolar aos cidadãos, a despeito da falta de qualidade, permitindo que a iniciativa privada alcance uma faixa etária ainda mais baixa.
As pré-escolas online aumentarão a disparidade acadêmica e a desigualdade. Crianças que passam por uma experiência pré-escolar baseada em telas estarão em desvantagem em comparação com seus amigos das comunidades mais ricas que aprenderam em programas baseados em atividades, programas esses que estimulam seu desenvolvimento físico, emocional, social e cognitivo – programas como o Reggio Emilia e outros baseados em brincadeiras de qualidade.
Recentemente, mais de cem líderes e organizações especializadas em primeira infância assinaram um manifesto que se opõe às pré-escolas virtuais. No texto, eles citam um artigo da Academia Norte-americana de Pediatria que demonstra que as mais elaboradas habilidades cognitivas e funções executivas como autocontrole e raciocínio flexível são ensinadas por meio de atividades não estruturadas e sociais (não digitais).
A educação pré-escolar não se resume a aprender letras e números numa tela de computador. As crianças que passam por essa falsa experiência pré-escolar não terão as mesmas habilidades e conhecimento das crianças que frequentam programas pré-escolares de qualidade; a lacuna de oportunidades aumentará numa idade ainda mais precoce.
Os estados têm a responsabilidade de oferecer educação infantil de qualidade a todas as crianças. As pesquisas mostram a importância dela para o sucesso na escola e na vida. Promover uma versão online de educação pré-escolar às famílias é algo que as leva a pensarem que estão ajudando seus filhos e que prejudica nossos objetivos maiores enquanto sociedade de dar uma oportunidade educacional igual a todas as crianças.
Tradução de Paulo Polzonoff Jr.