Com mais de 40 semanas sem aulas presenciais na maioria das escolas públicas do país, o Brasil está entre os últimos lugares quando o assunto é a reabertura das instituições de ensino. O prejuízo é amplo e não se restringe a perdas educacionais. Como já mostrado pela Gazeta do Povo, além de impactos diretos no aprendizado, o período prolongado de aulas presenciais suspensas tem favorecido a evasão escolar e gerado impactos na saúde mental e física, além de prejuízos à alimentação de crianças carentes e maior exposição a violência, especialmente por parte de alunos cujos pais trabalham fora de casa e não têm um local seguro para deixá-los durante o dia.
Mesmo diante dessa situação, com entidades como Unicef e organizações médicas pedindo o retorno às aulas presenciais de acordo com os protocolos de segurança adequados, sindicatos que defendem professores e demais profissionais de educação têm lançado mão de greves e investidas judiciais contra estados e municípios com o objetivo de impedir a volta às aulas presenciais no início do ano letivo de 2021 até que haja vacinação em massa contra a Covid-19. Como a imunização total ainda pode demorar vários meses para se tornar realidade, a medida condena dezenas de milhões de crianças e adolescentes a um período ainda mais prolongado fora das escolas.
De um lado, “quedas de braço” na justiça...
Evidências científicas atestam que as crianças representam menos de 10% dos casos de Covid, têm baixo número de internações e de mortalidade (de até 0,3%) e não são grandes disseminadoras do vírus (a maioria é assintomática ou apresenta sintomas leves e, desta forma, transmitem menos). Por isso, estados e municípios têm buscado favorecer o retorno seguro principalmente para alunos mais carentes que possuem dificuldades no acesso à internet e para aqueles cujos pais precisam trabalhar fora e não têm um local seguro para deixar os filhos durante o dia.
Mesmo assim, os entraves judiciais para impedir o retorno – ainda que voluntário apenas para aquelas famílias que mais necessitam enviar os filhos às escolas – têm sido uma realidade em vários locais do Brasil.
Uma dessas “quedas de braço” judiciais entre sindicatos e entes federados ocorreu no estado de São Paulo. No dia 13 de janeiro, a Secretaria de Educação do estado informou que as escolas retornariam às atividades presenciais a partir de 1º de fevereiro, na rede privada, e 8 de fevereiro nas escolas públicas estaduais – na capital, a rede municipal sinalizou o retorno para o dia 15.
Entretanto, uma ação civil pública movida pelo sindicato dos professores da rede paulista de ensino (Apeoesp) e pela Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp), que representa os docentes da rede privada, foi julgada como procedente, no dia 29 de janeiro, pela Justiça de São Paulo. A decisão barrou o retorno presencial às escolas, públicas e privadas, em todo o estado. Na mesma data, contudo, a resolução foi revista pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que autorizou novamente a reabertura.
“Neste momento, devemos seguir as regras técnicas e científicas, emitidas pelas autoridades de saúde, sob pena de instalação do caos. E regras tais, ao fim e ao cabo, são da competência e responsabilidade do Poder Executivo, lastreadas sempre, como no Estado de São Paulo, no conhecimento científico, fato notório e incontroverso”, destacou o desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, presidente do TJ-SP, em sua decisão.
Outros estados que já definiram datas para o retorno presencial têm registrado ameaças de entraves judiciais parecidos, como Rio de Janeiro, Tocantins e Minas Gerais.
... do outro, “braços cruzados”
Porém, quando a investida não alcança a via judicial, os sindicatos têm buscado mobilizar a categoria em greves para impedir a volta às aulas presenciais. Um desses casos ocorreu no estado do Rio de Janeiro: nos dias 29 e 30 de janeiro, o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe-RJ) decidiu, em assembleia realizada com professores e funcionários de escolas da rede pública estadual e municipal (da capital fluminense), entrar em greve contra o retorno das atividades presenciais nas escolas, mantendo o trabalho remoto.
Na esfera estadual, a decisão, deliberada por 289 profissionais de educação sindicalizados em uma assembleia on-line, impactaria até 700 mil alunos (número de estudantes matriculados na rede pública estadual estimado pela Secretaria de Educação do Rio de Janeiro – Seeduc-RJ) em 1.230 escolas. Já na capital, a decisão contou com votos de 387 profissionais sindicalizados e pode impactar mais de 644 mil alunos em uma eventual adesão em massa à greve.
Em nota enviada à reportagem, a Seeduc-RJ informou que, no retorno às aulas presenciais, em 1º de março, serão priorizados os 70 mil alunos em situação de maior vulnerabilidade social, o equivalente a 10% da rede estadual de ensino.
Situação parecida ocorre no Paraná: o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP-Sindicato) deliberou pela Greve Geral da Educação que terá início no dia 18 – data em que o governo do estado definiu para a volta às aulas presenciais da rede estadual de ensino.
“A nossa greve é em defesa da vida de todos e todas. Para que educadores, pais, mães, responsáveis e estudantes tenham acesso à vacina. Não há condições sanitárias para retorno, mesmo que da forma híbrida, pois não há vacina para todos”, afirma Hermes Leão, presidente da APP-Sindicato.
Já no estado de São Paulo, o Apeoesp deliberou, em assembleia realizada na sexta-feira (5), uma uma greve para que a categoria não retorne às salas de aula a partir de segunda-feira (8). Também em São Paulo, o Sindicato dos Funcionários e Servidores da Educação de São Paulo (Afuse) está consultando seus associados para avaliar a adesão a uma greve e a uma “campanha contundente contra o retorno às aulas presenciais na pandemia”. A mesma entidade, no entanto, está com sua colônia de férias – que possui piscinas, campo de futebol, áreas de recreação e dezenas de apartamentos – em funcionamento desde novembro de 2020.
Outras entidades, como o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina (Sinte-SC) e o Sindicato dos Trabalhadores em Educação no Estado do Tocantins (Sintet), já se manifestaram sobre possível realização de greve ou estão consultando seus associados para deliberar sobre a paralisação para impedir a volta às aulas presenciais.
Decisão sobre volta às aulas deve ser tomada pelos governos após discussão com a categoria, dizem especialistas
Para Fernando Luís Schüler, docente do Insper, mestre em Filosofia e doutor em Ciências Políticas, é compreensível que haja um temor quanto ao retorno ao ambiente de ensino, já que há maior contato com outras pessoas. Porém, afirma ele, a decisão sobre o retorno deve ser feita sempre por meios técnicos e científicos.
“É compreensível que profissionais de educação tenham restrições quanto à volta ao trabalho presencial, já que o professor em sala de aula lida com uma classe, tem contato direto com pessoas. É um problema real. Por outro lado, cabe aos estados e municípios avaliar, de forma técnica, se há condições de atender aos protocolos de segurança”, observa.
“É obvio que os sindicatos devem reivindicar, é legitimo. Mas não é uma decisão que possa ser tomada de forma política. Qualquer tentativa de imposição acaba incentivando um jogo político, de lobby, de pressões, frequentemente judicializando o tema e aí ingressa em um terreno que dificilmente corresponde com o interesse público. É o momento de a ciência oferecer os insumos para uma tomada de decisão técnica e não política – não na base da pressão, de quem grita mais alto, de quem tem mais força”, afirma.
Schüler também destaca que os interesses dos sindicatos que representam profissionais de educação nem sempre estão relacionados ao melhor para os estudantes já que, pelo caráter natural dos sindicatos, essas entidades defendem os interesses das próprias categorias a que representam, o que não significa que seja o melhor para a comunidade em geral. “Em algumas circunstâncias os interesses dos sindicatos podem confluir com os interesses da comunidade, mas isso não é regra porque frequentemente os interesses gerais colidem com os interesses dos profissionais prestadores de serviços”, declara.
Por outro lado, o doutor em educação e professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Ocimar Munhoz Alavarse, afirma que a judicialização por parte dos sindicatos ocorreu porque não houve negociações suficientes entre as entidades que defendem os profissionais de educação e os estados e municípios. “É uma situação em que os canais de discussão não foram ativados. Às vezes pode ter um conflito de interesses – os direitos das famílias e dos alunos podem em alguns momentos se chocar com os direitos de outros segmentos. Isso faz parte da vida em sociedade. Mas acho que o grande problema, especialmente em São Paulo, é quanto à falta de negociação com o governo”.
O educador defende que não cabe às famílias a decisão pela volta das aulas, e sim ao poder público. Porém, a falta de credibilidade por parte dos governos, segundo ele, seria outro fator a dificultar a chegada a uma solução adequada. “Essa decisão do estado tem que ser minimamente fruto de uma negociação. Não estou dizendo que os governos tem que pedir autorização, mas para algumas decisões precisa haver articulação, debate. Além disso, durante a pandemia criou-se uma situação de desconfiança com relação ao poder público quanto ao dar uma definição segura também para esse retorno”, declara.
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