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O ano de 2021 foi o primeiro em que vigoraram as novas regras para o Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. O novo modelo, que foi aprovado pelo Congresso Nacional em agosto de 2020 e entrou em vigor após a sanção da lei regulamentadora em dezembro do mesmo ano, aumenta os valores do fundo – em especial, pelo acréscimo na contribuição feita pela União.
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Com um incremento de quase R$ 26 bilhões frente a 2020, no ano passado o valor total repassado aos estados e municípios, no âmbito do Fundeb, foi de R$ 194 bilhões. O objetivo alegado para esse expressivo aumento – que será progressivo, de acordo com as novas regras, e em 2022 poderá chegar a R$236 bilhões – é aumentar a qualidade do ensino para os brasileiros, em especial os mais pobres.
Com excesso de dinheiro em caixa, para dar conta do investimento mínimo que a lei sobre o novo Fundeb determina, estados e municípios têm aplicado o excedente (chamado popularmente de “sobras do Fundeb”) em finalidades controversas. Como exemplo, estão investimentos em obras e equipamentos que não dialogam com a melhoria efetiva da qualidade da educação e a distribuição de expressivas gratificações de final de ano que, em alguns casos, chegam a quase R$ 40 mil por servidor.
As concessões desses abonos a partir das sobras do Fundeb também têm sido capitalizadas politicamente por alguns prefeitos e governadores que têm promovido eventos especiais com centenas de pessoas e utilizado o anúncio das gratificações para fortalecer suas imagens.
Desde a aprovação da medida, havia preocupação, por parte de especialistas em Educação, que a “engorda” do Fundeb não se traduzisse em melhorias estruturais que, enfim, afastassem o país das últimas posições do Programa de Avaliação Internacional de Alunos (Pisa).
“As mudanças que foram feitas no Fundeb são mais uma manifestação de força da esquerda e dos sindicatos do que algo positivo para a educação e para política educacional do país. Da mesma forma, essa expansão de gastos têm mais a ver com excesso de recursos do que com aumento na qualidade da educação”, diz Ilona Becskeházy, doutora em política educacional e ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC).
Gratificações inchadas são distribuídas para dar conta das “sobras do Fundeb”
Para a composição dos valores totais que formam o Fundeb, estados e municípios, a partir dos valores coletados em impostos, arcam com a maior parte dos recursos, enquanto a União entra com um complemento. Com as novas regras, a participação da União no fundo, que era de 10%, aumentará gradativamente até chegar a 23% em 2026.
O objetivo é redistribuir esses valores, com prioridade a municípios com maiores limitações econômicas, para o financiamento de ações de manutenção e desenvolvimento da educação básica pública. Porém, apesar do efeito positivo da injeção de recursos na educação, sua aplicação tem sido questionada em alguns estados e municípios pelo fato de a destinação dos recursos não dialogar com a efetiva melhora na qualidade da educação. Esse é o caso, por exemplo, de governos e prefeituras que têm optado por distribuir gratificações exorbitantes a profissionais de educação.
Um dos abonos mais expressivos foi distribuído pelo estado do Amazonas. O governo estadual anunciou, no dia 15 de dezembro, o que chamou de “maior abono da história em valores e em servidores contemplados”. Os valores, pagos aos servidores da rede estadual de ensino no dia 23 de dezembro, chegam a R$ 37,8 mil por servidor. Ao todo, 33 mil servidores foram beneficiados com o rateio de um valor total próximo a R$ 480 milhões.
Com direito a uma cerimônia especial para revelar o valor do abono, centenas de profissionais da educação ovacionaram o governador amazonense Wilson Miranda Lima (PSC), que foi anunciado pela organização do evento como o “único governador que vai pagar a maior parcela do Fundeb da história do Amazonas”. Lima, que deve tentar a reeleição ao cargo em 2022, fez um discurso em tom de palanque antes de revelar os valores.
No Acre, o governador Gladson Cameli (PP) também promoveu um evento especial para revelar a gratificação de R$ 14 mil aos docentes. Já em São Paulo, 190 mil professores da rede estadual receberam até R$ 16 mil, dependendo da carga horária. Ao todo, R$ 1,6 bilhão foram empenhados nas gratificações.
Apesar de a distribuição do abono estar prevista na legislação sobre o novo Fundeb, questiona-se se o expressivo aumento de recursos públicos, bem como os altos valores em sobras do Fundeb, serão traduzidos em melhorias educacionais, sobretudo aos alunos com maiores necessidades, ou apenas abrirão espaço para gratificações inchadas e anualmente progressivas e aplicação em obras questionáveis.
“Se há uma clareza quanto ao que cada aluno precisa saber em cada ano, sabe-se que o dinheiro irá para a formação dos professores no sentido de aprender a ensinar cada conteúdo e em materiais para ajudar no ensino. Se não tem isso especificado – e a Base [Base Nacional Comum Curricular] não tem –, o dinheiro vai ser gasto e não vai melhorar a qualidade da educação”, explica Ilona.
“Então minha expectativa é realmente muito baixa. Vai aumentar o gasto e não vai melhorar o desempenho dos alunos, que é o que entendo por qualidade na educação, porque as alavancas dessa qualidade não foram armadas, só se armou a parte do gasto”, ressalta.
Valor do novo Fundeb também é usado na construção de garagem milionária
De acordo com o novo Fundeb, 70% dos recursos devem ser empregados na remuneração dos servidores da educação, enquanto os 30% restantes devem ser empregados em custeio de materiais didáticos, equipamentos para a escola, entre outros custos considerados despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino.
Há, entretanto, relatos de municípios que empregaram parte desse valor em finalidades controversas. Essa é a situação de Alpinópolis, em Minas Gerais. Um projeto de lei de autoria do prefeito Rafael Freire (PSB) aprovado pela Câmara de Vereadores autorizou o emprego de aproximadamente R$ 1 milhão na construção de uma garagem para apenas dez veículos da secretaria de Educação com recursos oriundos do Fundeb.
“O valor é absurdo para a construção de um barracão para guardar os dez veículos da Educação do município de Alpinópolis”, disse à Gazeta do Povo um docente da cidade mineira que preferiu não se identificar. “Esse dinheiro poderia ter sido utilizado para melhorar a estrutura das escolas, mas não houve planejamento para que esse quase um milhão de reais fosse investido diretamente nas escolas. Um descaso com a comunidade escolar”, prossegue.
Diante da má repercussão, em 29 de dezembro foi votada nova lei reduzindo o valor destinado à construção da garagem de R$ 1 milhão para R$ 800 mil - o que representa uma redução de apenas 20% do valor inicial.
“A lei mudou em termos de expansão do gasto e expansão dos profissionais que podem receber dinheiro, mas a lista do tipo de despesa permanece a mesma desde 1996, não foi mudada com a legislação atual”, diz Ilona, citando que os artigos 70 e 71 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) vedam esse tipo de aplicação dos recursos.
“Esse tipo de situação ocorrida em Alpinópolis está completamente fora do que é permitido, e se o município for sorteado na avaliação, que todo ano é feito por sorteio, o prefeito vai ter que se explicar. Esse é apenas um exemplo do que não fazer com o dinheiro do Fundeb”, pontua Ilona.