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Uma recente mudança no formato de admissão de alunos para o ensino médio integrado com cursos profissionalizantes e o ensino técnico subsequente do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT) tem recebido críticas por parte de alunos que almejam ingressar na instituição. Eles alegam que a medida reduz o incentivo aos estudos.
Como oficialmente não havia a possibilidade de ingresso por sorteio no IFMT – atualmente a seleção pode ser feita por meio de prova de conhecimentos, análise de histórico escolar e entrevistas –, o Conselho Superior da instituição autorizou o novo formato por meio da Resolução 62, publicada em 7 de outubro.
De acordo com o documento, tanto os curso técnicos integrados ao ensino médio quanto os subsequentes - no qual o estudante já deve ter concluído o ensino médio para ingressar - terão admissão feita exclusivamente por sorteio para o próximo ano letivo. Já a seleção para os cursos superiores de graduação levará em conta a nota geral do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de anos anteriores (2015 a 2019) para 70% das vagas, enquanto para os 30% restantes, a seleção será feita por meio de análise do histórico escolar do ensino médio.
Dois dias após a determinação do IFMT ser publicada, a União Estadual Dos Estudantes de Mato Grosso, entidade filiada à União Nacional dos Estudantes (UNE), divulgou uma nota questionando a medida: “O destino dos estudantes não pode ficar a mercê de algo tão aleatório quanto um sorteio. Por isso indicamos que a única postura razoável diante deste quadro é o adiamento do processo seletivo”, afirmou a entidade estudantil.
Paralelamente, um grupo de estudantes criou o movimento “IF Sem Sorteio”, com o objetivo de questionar a medida, e convidou alunos do IFMT a divulgarem em suas redes sociais publicações com a frase “Minha vaga não foi sorte”, acompanhada de hashtags solicitando o adiamento do exame em vez da admissão por sorteio.
Motivos alegados pelo IFMT
Quanto à implantação da medida - que é exclusiva para a seleção no ano letivo de 2021 -, o Conselho Superior do instituto destaca que o principal motivo é a impossibilidade econômica de realizar provas presenciais em conformidade com todas as medidas de segurança necessárias para evitar transmissão da Covid-19. De acordo com o conselho, o formato evita colocar a saúde de estudantes, candidatos, servidores e familiares em risco.
Outro motivo apontado como determinante para a decisão foi o fato de a modalidade ser mais democrática e justa de “avaliar todos os contextos, especialmente no momento de isolamento social em decorrência do coronavírus”.
Por meio da resolução, o conselho informa, ainda, que outros institutos federais também optaram pelo processo seletivo dos cursos técnicos integrados e subsequentes para ingresso em 2021 por meio de sorteio, como IFB, IFAC, IFSC, IFC, IFSul de Minas e IFTM. O modelo de ingresso por sorteio também é utilizado em escolas cívico-militares de Goiás, que estão entre as melhores instituições de ensino médio do país.
Segundo uma fonte do IFMT - que preferiu não se identificar -, o formato de sorteio é mais inclusivo, uma vez que oferece igualdade de condições para todos os participantes, não cobra taxas dos candidatos e preserva a destinação de vagas para cotistas. “Vejo esses questionamentos como desnecessários, já que o formato é um método consolidado em vários outros institutos federais e oferece maior inclusão e igualdade de participação”, afirma.
Ingresso por sorteio oferece mais inclusão, mas traz desafios a serem superados
No Instituto Federal de Brasília (IFB), o formato de sorteio é utilizado desde sua fundação, em 2008, para os cursos técnicos integrados e subsequentes, os cursos do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja) e a Formação Inicial e Continuada (FIC). Quanto ao nível superior, o ingresso ocorre a partir das notas do Enem por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
De acordo com Luciana Massukado, reitora do IFB, o formato de sorteio preserva a democratização do acesso, já que há condições iguais para todos os candidatos. “Nem todo estudante tem as mesmas condições quanto ao ensino fundamental. Existem até mesmo cursinhos para passar em provas dos institutos federais, e dessa forma aqueles que têm menores condições socioeconômicas ficam com menos chances de acessar o ensino técnico. Com o sorteio conseguimos dar condições iguais de quem teve melhor condição de estudo e quem não teve”, observa.
Segundo a reitora, após vários anos com o modelo de sorteio vigorando, atualmente 67% dos estudantes matriculados no IFB possuem renda per capita inferior a 1,5 salário mínimo. “Com o ingresso por sorteio, acaba havendo a inclusão e o encontro de realidades bem diferentes entre os alunos. O processo seletivo vem como uma barreira, e muita gente não presta a prova porque acha que não vai conseguir passar”, declara, admitindo que o modelo de sorteio ainda é pouco comum. “São 38 institutos federais no Brasil, e na maioria o normal é o processo seletivo”, ressalta.
O Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) também recorre ao modelo. Desde 2017, o ingresso em todos os cursos técnicos subsequentes e concomitantes (em que o estudante cursa as disciplinas de formação técnica no instituto federal enquanto faz o Ensino Médio em outra instituição) ocorre exclusivamente por meio de sorteio. Quanto aos cursos técnicos integrados ao Ensino Médio, alguns campi do IFSC já adotavam a medida em anos anteriores, porém em decorrência da pandemia todas as unidades irão utilizar o formato de sorteio eletrônico na seleção de alunos dos cursos técnicos e de qualificação profissional referentes ao próximo ano letivo.
“O sistema de sorteio eletrônico oferece baixo custo para os institutos, o que beneficia também os candidatos, já que não é cobrada taxa de inscrição”, afirma o pró-reitor de ensino do IFSC, Luiz Otávio Cabral. Para ele, o formato também permite que pessoas com baixo desempenho acadêmico, que não teriam condições de passar nos exames de classificação, tenham acesso aos cursos. “Avaliamos que essas pessoas, sobretudo aquelas que trabalham e que estão afastadas há muito tempo do ambiente escolar, sentem-se mais motivadas a participar em uma forma de admissão por sorteio do que por prova”, avalia.
O doutor em Educação e professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Ocimar Munhoz Alavarse, também é favorável ao ingresso nos institutos federais por sorteio. Para ele, a grande vantagem do modelo é a garantia de que diferentes estratos da população terão acesso ao ensino de qualidade.
“O processo seletivo por prova é um modelo em que os melhores entram. Porém, é preciso levar em conta as condições de cada um. Não se pode dar as vagas só para quem nasce em ‘berço de ouro’. Não é justo que apenas uma camada social tenha acesso a esses cursos. O sorteio traz uma proposta mais radical, mas estamos discutindo a questão da democratização; é uma questão de justiça”, avalia.
O professor reconhece, no entanto, que o modelo traz limitações, como é o caso do sorteio chamado “universal”, que pode admitir alunos sem condições para a continuidade nos estudos. “Como alternativa é preciso pensar no sorteio qualificado, em que se avalia o aluno quanto a um patamar mínimo de conhecimentos indispensáveis para ingressar naquele curso. Essa é uma maneira de atenuar alguns efeitos negativos do sorteio universal”.
Por outro lado, Alavarse também destaca que a ampliação do formato de sorteio pode trazer junto um desinteresse por parte de alguns alunos com relação a determinados conhecimentos, uma vez que sem uma prova seletiva, esses conteúdos não seriam cobrados. “Muitos jovens não vão estudar aquilo que ‘não cai’ no vestibular. Isso escancara a verdadeira razão pela qual alguns estudam e significa que as pessoas têm uma visão muito utilitarista do ensino”, aponta.
Apesar dos aspectos positivos do ponto de vista socioeconômico apontados relacionados ao ingresso por sorteio em institutos federais, Alavarse avalia que alguns institutos adotaram o modelo de sorteio pela falta de dinheiro para realizar as provas de acordo com os critérios para evitar contaminações pela Covid-19 e não apenas pelo desejo de democratizar o acesso.
Debate pode impulsionar modelo de sorteio, afirma reitora do IFB
Quanto à polêmica que a decisão do IFMT de implementar o formato de sorteio gerou, a reitora do IFB avalia que o peso que o assunto vem ganhando pode contribuir para um aumento da utilização do modelo nos próximos anos. “Essa polêmica traz à discussão uma mudança de paradigma. A visão da democratização do acesso, de dar condições iguais para quem não teve as mesmas condições, pode ser o futuro do processos seletivo. Muitos paradigmas estão mudando com essa pandemia, e torço para que mais institutos venham a adotar o sorteio como forma de ingresso nos cursos técnicos”, reforça.
A Gazeta do Povo solicitou ao Ministério da Educação (MEC) a avaliação quanto à efetividade do modelo de admissão por sorteio, porém o MEC informou apenas que os institutos federais têm autonomia administrativa, orçamentária e didático pedagógica, o que inclui os métodos de admissão.