Ouça este conteúdo
Por enquanto, o Ministério da Educação está sob comando de um ministro interino, Victor Godoy Veiga, que até a saída de Milton Ribeiro era secretário-executivo da pasta. Ele poderá ou não ser confirmado como ministro, mas, independentemente da decisão do presidente Jair Bolsonaro (PL), quem quer que seja escolhido como o novo titular do MEC terá de enfrentar grandes – e antigos – desafios nos próximos 9 meses.
Em pleno ano eleitoral, conhecido por complicar e travar muitas ações governamentais que dependem de apoio parlamentar, o comandante da pasta terá de tentar manter e proteger programas bem-sucedidos – como o da alfabetização – e vencer resistências nas universidades e no Congresso.
>> Faça parte do canal de Vida e Cidadania no Telegram
Um desses desafios será tentar reverter a proposta desastrosa do chamado Sistema Nacional de Educação, batizado informalmente de “SUS da Educação”. Aprovado pelo Senado no início deste ano, e agora encaminhado para discussões na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 235/2019 foi vendido por seus defensores como uma proposta revolucionária na área de educação. Na verdade, porém, sua implantação vai engessar o setor e prejudicar ainda mais a qualidade – já baixa – do ensino no país.
Entre os problemas do projeto está a criação de uma estrutura nacional de decisões sobre a educação, tirando do MEC a função de gerenciar as políticas públicas sobre o ensino e que ainda impede prefeitos, governadores e a própria União de procurar métodos inovadores de ensino. Hoje, os principais exemplos de bons resultados em termos de educação são reflexo direto de iniciativas descentralizadas, que levam em conta características regionais, como ocorreu na cidade de Sobral (CE).
Se o “SUS da educação” for aprovado também na Câmara dos Deputados, os gestores não terão autonomia para promover esse tipo de ação, pois todas as decisões sobre o que se pode ou não fazer passarão por um conselho geral (formado pelos entes federativos e também por ONGs) e deverão ser aplicadas igualmente em todo o território nacional, independentemente das características e problemas de cada município. Também não há nenhuma previsão de controle de gastos de acordo com resultados de qualidade de ensino.
Como já mostrou a Gazeta do Povo, especialistas da área de educação compararam o projeto aos antigos “sovietes” da União Soviética, onde conselhos decidiam o destino dos recursos de acordo com interesses de grupos específicos, sem considerar as reais necessidades da população.
"É um engano pensar que o SNE é o SUS da Educação: o SUS está centrado na prestação de cuidados de saúde a seus usuários. O SNE, tal como foi aprovado na Comissão de Educação da Câmara de Deputados, está centrado no total controle da educação brasileira, básica e superior, por parte de estados e municípios – isto é, em parte ou totalmente controlado por ONGs educacionais e pelos sindicatos de professores", explicou o professor Pedro Caldeira, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e diretor de Educação Básica da associação Docentes Pela Liberdade (DPL) à Gazeta do Povo.
Como se trata de um projeto em discussão no Congresso, e de interesse eleitoral (deputados e senadores querem divulgar que aprovaram o “SUS da Educação”), o novo ministro poderá fazer pouco para impedir a aprovação do projeto ou conseguir modificá-lo de forma a não prejudicar tanto a educação. Para isso, terá de tentar manter uma boa articulação com os parlamentares e equipes técnicas do MEC, para tentar adiar a discussão ou derrubá-la. O projeto também tramita em regime de urgência, o que significa que o texto poderá ser levado ao plenário em menos tempo.
Conforme disse o relator da proposta, deputado Idilvan Alencar (PDT-CE), a iniciativa é uma das prioridades da Frente Parlamentar Mista da Educação, e a intenção é que seja votada ainda este ano. “O Sistema Nacional de Educação não é pauta do partido A, B ou C, mas de todos”, explicou o deputado. “Não vejo muitas dificuldades de chegarmos a um acordo”, disse ele.
Efeitos da pandemia na educação
O novo ministro da Educação também terá de trabalhar para minimizar os efeitos da pandemia de Covid-19 na educação brasileira. O ex-ministro Milton Ribeiro foi acusado de omissão por não ter sido capaz de coordenar um plano de ação concreto para o enfrentamento da crise. As ações do ministério se restringiram a emissão de protocolos sanitários e mapeamento da situação de escolas.
A justificativa de Ribeiro foi a de que o MEC não poderia “se intrometer” nas decisões de estados e municípios. Mas, como mostrou a Gazeta do Povo, mesmo que não possa intervir na gestão direta da educação de estados e municípios, cabe ao MEC coordenar e assistir técnica e financeiramente esses entes, principalmente em casos de maior necessidade.
Agora, com as escolas reabertas, o MEC e o novo ministro terão de se mostrar capazes de promover uma melhor articulação com os estados e municípios para tentar minimizar os efeitos do longo período sem aulas ou apenas com aulas online. Pesquisas mostram que estudantes chegaram a “desaprender” algumas coisas, especialmente nas séries iniciais do ensino básico. O impacto maior, como já era de se esperar, foi ainda mais profundo entre os alunos de escolas públicas, que tiveram mais dificuldade em se adaptar ao ensino a distância, especialmente pela falta de internet de qualidade e materiais educativos apropriados.
O impacto econômico disso tudo também já começa a ser desenhado. Segundo a Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), a interrupção do ensino e da aprendizagem, além de influenciar o encolhimento do PIB mundial em 1,5% até o fim do século, vai aumentar a baixa qualificação da mão de obra, e, em consequência, recrudescer a desigualdade econômica e a pobreza. Assim, trabalhar pela minimização dos efeitos da pandemia na educação deve ser uma questão crucial para o novo ministro da Educação.
Proteção de todas as fases da alfabetização, inclusive a abordagem fônica
Outra questão que deve ser prioritária para o próximo ministro é dar continuidade às mudanças que já têm sido fomentadas pelo MEC em relação à alfabetização das crianças. Hoje, o que ainda prevalece na maior parte das escolas públicas é o chamado método global ou ideovisual, onde as crianças começam a aprender por meio da representação visual das sílabas ou palavras, pulando etapas importantes, como a abordagem fônica e a aquisição de fluência. Desde 2003 já se sabe que essa é uma abordagem ultrapassada, pois desconsidera as descobertas recentes da neurociência. Países com bons resultados na educação já não se baseiam apenas no método ideovisual há muito tempo.
A gestão Bolsonaro foi a primeira a enfrentar a precariedade da alfabetização brasileira, levando em conta esses estudos científicos. Por meio da Secretaria de Alfabetização do Ministério da Educação (Sealf), o governo criou o Programa Nacional de Alfabetização (PNA), fundamentado no que há de mais moderno em termos de alfabetização, proposta que é uma verdadeira ruptura em relação ao que se tem feito até agora no país. Também há treinamentos online para professores e materiais de apoio. Mas ainda é pouco. Além das resistências de alas ideológicas dentro do próprio MEC que consideram qualquer mudança profunda na educação uma tentativa de “doutrinação”, estados e municípios também ainda aproveitam pouco essas iniciativas, preferindo se apegar aos velhos modelos, e manter os mesmos resultados pífios na educação.
"A PNA traz um desenho lógico e competente de política educacional. Se não fossem esses ruídos sobre uma suposta polêmica sobre métodos de alfabetização, já bem superada onde o uso das evidências científicas é mais poderoso que as relações políticas entre autores de livros e militantes do atraso, bastava desdobrar cada item da política localmente para cada município se 'sobralizar'", explicou a pesquisadora em educação Ilona Becskehazy, em entrevista à Gazeta do Povo. Ela se refere ao bom exemplo do município de Sobral, cidade do Ceará, que desde 2001 adotou mudanças profundas em sua educação, incluindo a abordagem fônica.
Um legado importante para o novo ministro da educação seria o de, finalmente, conseguir com que estados e principalmente prefeituras – responsáveis pela educação nos anos iniciais – adotassem esses novos modelos, mais atuais e efetivos. Para isso, será fundamental investir recursos e pessoas para levar o PNA a todas as regiões do país, e atingir o maior número possível de municípios nestes nove meses.
Outras ações que seriam necessárias para consolidar uma alfabetização de excelência dependem de um segundo mandato, como consolidar a mudança nos livros didáticos, melhorar a formação acadêmica dos professores e educadores e conseguir a revisão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que ainda traz o antigo método global como central da alfabetização.
Enem e o velho “Novo Ensino Médio”
O ano de 2022 é o primeiro de implantação do chamado "Novo Ensino Médio", fruto da Medida Provisória (MP) 746/2016, posteriormente convertida na Lei 13.415/2017, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Por enquanto, ele só foi adotado para os alunos que estão ingressando no ensino médio, mas, em 2023 e 2024, será estendido, respectivamente, também ao segundo e terceiro ano. No novo sistema, 60% das aulas são de disciplinas obrigatórias, comuns a todos os alunos. Os outros 40% serão preenchidos pelos chamados “itinerários formativos”. Isso significa que o estudante poderá escolher se aprofundar em um dos cinco campos listados pelo projeto: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional.
Embora todos os estados tenham se comprometido a se organizar para seguir o cronograma de implantação do novo sistema, não é isso o que tem acontecido. No estado de Roraima, por exemplo, apenas 11 escolas irão adotar o novo sistema para os alunos que ingressaram no ensino médio em 2022. Essas discrepâncias regionais vão precisar de apoio extra para serem sanadas de forma a não comprometer a implantação do novo modelo e nem prejudicar os estudantes.
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), pelo qual uma boa parte dos jovens têm acesso ao ensino superior, vai precisar de mudanças para se adaptar a esse modelo a partir de 2024. Uma delas será em relação ao formato da prova. O primeiro dia do exame terá questões gerais e que todos os estudantes terão de resolver. A ênfase será em português e matemática, com questões formuladas de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Nesse dia também será aplicada a prova de redação.
No outro dia, a prova será de acordo com o itinerário formativo que o aluno escolheu no ensino médio. No momento da inscrição, o estudante irá fazer a escolha entre questões de linguagens, ciências humanas e sociais aplicadas; matemática, ciências da natureza e suas tecnologias; matemática, ciências humanas e sociais aplicadas; ou ciências da natureza, ciências humanas e sociais aplicadas.
O motim permanente nas universidades contra Bolsonaro
Como bem experimentou o ex-ministro Milton Ribeiro, as universidades e instituições federais podem dar muita dor de cabeça aos titulares do Ministério da Educação. Ribeiro, como os ex-ministros de Bolsonaro na pasta, enfrentou protestos contra cortes de gastos, teve determinações sobre retorno às aulas ou sobre a não exigência de passaporte da vacina totalmente ignorados pelas universidades. Além disso, as universidades continuam a ser usadas como espaços de propaganda política contra o governo de Jair Bolsonaro.
Em um ano eleitoral, professores e movimentos estudantis ligados à esquerda tentarão direcionar ainda mais as discussões sobre o ensino superior para o viés político. Qualquer alteração ou proposta será motivo para ir às ruas contra o governo.
Um dos pontos que deverá ser mais atacado são programas do MEC que os movimentos de esquerda consideram contrários aos seus interesses, como foi o Future-se, que provocou um "tsunami na educação" quando foi lançado em 2019. A proposta foi enviada à Câmara dos Deputados em 2020 e pouco avançou até agora. O projeto, criticado por supostamente “mercantilizar” as universidades públicas, na verdade possibilita que as instituições de ensino superior – se quiserem aderir ao programa – obtenham fontes privadas adicionais de financiamento para projetos e programas de interesse de universidades e institutos federais.
Mecanismos similares existem em vários países do mundo, como explicou o ex-secretário de Ensino Superior do MEC, Arnaldo Barbosa de Lima Júnior, em 2019, quando o projeto foi lançado. “Só 40% do orçamento das melhores universidades públicas do mundo vem do Estado, o resto é financiado pelo mercado”, disse. Mesmo sendo uma tentativa em direção a medidas bem-sucedidas em outros países e a demandas reprimidas no Brasil, não houve diálogo entre o MEC e os parlamentares para que a proposta pudesse ser discutida e aprovada. Por conta do "vale-tudo" do ano eleitoral em 2022, dificilmente tentativas similares irão para frente.
VEJA TAMBÉM:
- Da posse à queda: a gestão de Milton Ribeiro em 20 meses no MEC
- Como a esquerda universalizou a alfabetização precária. E por que o que Bolsonaro fez foi insuficiente
- Conheça os laboratórios de ativismo de esquerda que funcionam dentro da UFRJ
- Guerra contra o MEC? O que está em jogo na discussão sobre a exigência de vacina nas universidades