Um concurso público para o cargo de professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP), realizado em 2019, é alvo de questionamentos por parte de candidatos que participaram do processo e se sentiram prejudicados por supostas irregularidades que teriam ocorrido durante as etapas do certame.
Durante o processo seletivo, segundo eles, teria havido irregularidades, como a atribuição de notas iguais e combinadas entre os integrantes da banca para todos os candidatos nas duas etapas de avaliação e o impedimento aos candidatos de terem acesso à leitura pública das provas dos demais participantes do processo, como determina o Regimento Geral da USP.
De acordo com fontes ouvidas sob sigilo pela Gazeta do Povo, a composição da banca que avaliou os participantes teria sido direcionada para formar uma comissão alinhada a uma área em específico do IRI, que seria controlada por um grupo de docentes com maior influência sobre a unidade. Nessa formação, quatro dos cinco membros que integraram a banca não possuíam experiência em Organizações Regionais Internacionais, que foi a subárea do concurso.
Todos os candidatos ouvidos pela reportagem endossaram que a pessoa que foi aprovada é um docente qualificado e com condições de aprovação, porém as supostas manobras teriam tido como objetivo favorecer a área de Direito Internacional, o que colocava em prejuízo todos os candidatos das outras áreas do IRI – Economia, Ciência Política e História.
Notas iguais e sem leitura pública: raro e fora do regulamento
O concurso teve suas inscrições abertas em março de 2019. Sua realização se deu a partir de um Acordo de Cooperação Técnica e Científica entre a USP e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – agência vinculada ao Ministério da Educação (MEC). De acordo com o edital, o certame seria regido pelo disposto no Estatuto e no Regimento Geral da USP, bem como no Regimento do IRI.
O concurso foi dividido em duas etapas: na primeira ocorreu a prova escrita e, na segunda, a prova didática, bem como o julgamento de memorial com prova pública de arguição. Durante a primeira etapa, os cinco membros avaliadores que compuseram a banca deram notas iguais entre si para todos os candidatos, o que, segundo fontes relataram à reportagem, causou bastante estranheza, uma vez que o esperado é que haja avaliações autônomas e distintas entre os avaliadores – ainda que com a permissão regimental de diálogo entre os componentes da banca – e que as notas finais reflitam uma média entre os integrantes.
Na segunda etapa, para a qual foram aprovados quatro candidatos que alcançaram notas superiores a sete pontos, as notas iguais se repetiram.
* Os nomes dos candidatos que participaram do concurso foram omitidos.
No entanto, os itens 5 e 12.1 do edital do concurso (com referência à primeira e segunda fases respectivamente), citam: “Cada prova será avaliada pelos membros da Comissão Julgadora, individualmente”. Esse é o mesmo dispositivo apresentado no inciso VI do artigo 139 do Regimento da USP.
Da mesma forma, os artigo 141 (“Ao término das provas, cada candidato terá de cada examinador uma nota final, que será a média ponderada das notas por ele conferidas”) e 142 (“A classificação dos candidatos será feita por examinador, segundo as notas por ele conferidas - Parágrafo único: Em caso de empate, o examinador fará o desempate”) do Regimento da USP pressupõem avaliações individuais por parte dos avaliadores, ainda que haja diálogos entre eles.
Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, professor titular de Direito Internacional do IRI e integrante da Congregação (órgão decisor) da unidade, disse à reportagem que “as bancas têm autonomia na atribuição das notas, e o diálogo entre os examinadores, que é muito comum em certames que se prolongam por vários dias, pode resultar em consenso”.
Amâncio Nunes de Oliveira, professor titular de Ciência Política do IRI, disse à Gazeta do Povo que nunca havia visto um episódio de notas iguais entre os avaliadores, mas declarou que o caso pode ter sido uma coincidência a partir das conversas entre os membros da banca. “A regra diz que as notas devem ser autônomas. Mas cada um tem o seu juízo, e ele pode ser feito a posteriori de uma conversa com a banca. A coincidência pode ser a partir dessas conversas”, afirma o docente. “O que posso dizer é que nunca passei por uma experiência dessa. Mas não posso dizer que tenha algum elemento errôneo. Apenas que nunca participei de um concurso com essa convergência. Agora, daí inferir qualquer outra coisa a partir da minha experiência é outra história”.
Outra suposta irregularidade apontada por candidatos é que os candidatos não puderam acompanhar a leitura pública das provas dos demais participantes, como está previsto no regulamento. O espírito da norma é que os candidatos tenham acesso ao desempenho dos demais.
Tanto o edital do concurso, em seu item 4.7, quanto o inciso V do artigo 139 do Regimento da USP citam: “A prova, que será lida em sessão pública pelo candidato, deverá ser reproduzida em cópias que serão entregues aos membros da Comissão Julgadora ao se abrir a sessão”.
Os candidatos, entretanto, teriam sido proibidos pelo presidente da banca, o vice-diretor do IRI, Moacyr Martucci, e por uma assistente técnico-acadêmica, de acompanharem a leitura, que foi feita individualmente pelos candidatos perante a banca.
“Fomos surpreendidos, porque é o seu direito ouvir o que seus concorrentes fizeram. A secretária, junto com o professor Martucci, disseram que era falta de ética ouvir os demais. Todos ficaram com ‘sorriso amarelo’. Mas é aquela coisa, você não vai querer enfrentar o presidente da banca que está avaliando, porque você quer passar no concurso”, disse um dos candidatos. À reportagem, o professor Moacyr Martucci disse que não recordava de ter havido impedimentos quanto à leitura pública.
Os professores do IRI que integram a Congregação – órgão máximo da unidade, responsável por tomar importantes decisões sobre o dia a dia do instituto, inclusive pela homologação do concurso – relataram que não houve contestação por parte de nenhum dos candidatos quanto a possíveis irregularidades no concurso. “Nenhum candidato apresentou contestação formal em quaisquer etapas do certame. Vale destacar também que o relatório do concurso foi aprovado por unanimidade pela Congregação do IRI, mais uma prova da lisura incontestável de todo o processo”, afirma Felipe Pereira Loureiro, professor associado do IRI e coordenador do curso de Relações Internacionais.
"Após a conclusão do concurso, a Congregação e a Procuradoria Geral da USP homologaram, por unanimidade, o relatório do concurso e o candidato aprovado em primeiro lugar foi efetivado como professor no IRI. Todos os candidatos tiveram prazo estabelecido pelas normas da USP para entrar com recurso e nenhum candidato se manifestou no prazo regulamentar", disse a diretora do Instituto de Relações Internacionais, Janina Onuki.
Candidatos ouvidos pela reportagem disseram que não apresentaram recurso apontando as supostas irregularidades por temerem retaliações no meio acadêmico. “Conversei ‘em off’ com diretores e ex-diretores da USP, que disseram que isso estava contra o estatuto. Mas disseram que eu poderia até reclamar e ser bem-sucedido, mas viraria um ‘pária’ dentro da universidade”, conta uma das fontes, que é professor universitário. “Me disseram: ‘se você for ao Conselho Universitário (o órgão máximo da USP), você consegue anular o concurso, mas sob o risco de ter uma má imagem no meio acadêmico’”.
Formação da banca
Quanto às críticas apontadas para a composição da banca do concurso, a relação de avaliadores apontava que o concurso estaria direcionado à área de Direito Internacional, segundo um candidato da área de Ciência Política que se matriculou no concurso, mas que abriu mão de participar das etapas de avaliação após ter acesso à lista de membros da banca.
“No IRI há um racha muito forte entre dois grupos. Os indícios, pelos nomes que estavam indicados na banca e por conversas que tive com pessoas de dentro do IRI, apontavam que o pessoal do Direito Internacional estava controlando o concurso”, conta. “A gente escutava uma conversa de que aquele concurso estaria enviesado para certa área, não necessariamente para certa pessoa, mas para certa área. Por isso não valeria me desgastar à toa. Esses processos seletivos para professor universitário são muito desgastantes. São processos exaustivos que às vezes duram uma ou duas semanas e você termina extenuado”.
Para ele, o número de desistências (de 37 inscritos, apenas 15 permaneceram) evidencia o entendimento entre os inscritos de que não valeria a pena se submeter à avaliação, por ser, supostamente, um “jogo de cartas marcadas”.
A ata da reunião realizada em 18 de junho de 2019, quando foram definidos os nomes que formariam a banca do concurso, registra uma discussão entre a diretora do IRI, Janina Onuki, e Felipe Loureiro. Janina destacou a importância de ter nomes com aderência à área de Relações Internacionais e apresentou uma proposta de cinco docentes para a composição da banca, sendo um deles o vice-diretor do IRI. Felipe Loureiro sugeriu uma relação de nomes diferente, mantendo apenas o vice-diretor – proposta endossada por Pedro Dallari. Após discussões, Loureiro destacou que os nomes sugeridos por ele haviam sido discutidos previamente com o Colégio de Presidentes de Comissão do Instituto de Relações Internacionais (cinco pessoas), e que todos apoiavam suas indicações.
Na reunião, um dos professores do IRI destacou que alguns integrantes sugeridos para a banca não tinham produção científica relacionada com a área do concurso. “Na área de Política, embora eu dê todo o reconhecimento ao currículo do prof. André Singer [um dos indicados pelo grupo de Loureiro], a área de atuação dele é ‘Eleições e Partidos Políticos no Brasil’. Eu gostaria muito que pelo menos alguém dessa banca fosse da área de Relações Internacionais em termos de produção científica na agenda de Relações Internacionais”, disse o docente, citando que não havia sido consultado previamente sobre os nomes.
Houve nova oposição à realização de voto formal dos nomes, porém ao final houve votação, e os vencedores foram os mesmos nomes apresentados pelo grupo de Loureiro. Os nomes indicados foram: Moacyr Martucci Junior; Rafael de Bivar Marchese; André Vitor Singer; Dante Mendes Aldrighi; e Umberto Celli Junior. Entre os cinco avaliadores, apenas um tinha produção científica alinhada à temática do concurso, Organizações Regionais Internacionais, fator que limitaria a capacidade de avaliação dos candidatos.
Felipe Loureiro disse à reportagem que a proposta de banca apresentada por ele foi fruto de consulta a vários docentes, incluindo os presidentes de Comissão do IRI. “No caso dos membros externos, todos possuem indiscutível estatura intelectual, que era exatamente o que considerávamos fundamental para compor a banca que selecionaria o novo docente para o Instituto, além de garantir a multidisciplinaridade entre as quatro áreas básicas do IRI”.
“O IRI é uma instituição multidisciplinar, como se explicita em seu projeto acadêmico, e todos os temas são necessariamente examinados sob diferentes perspectivas, critério que se aplica à composição das bancas”, declarou Pedro Dallari.
Conflitos internos
A realização do concurso em 2019 esteve imersa em embates políticos entre grupos que disputam o poder dentro do IRI há anos. Os conflitos remontam ao ano de 2015, quando foi aberto um concurso para professor titular da unidade. Como já havia docentes titulares nas áreas de Direito e Política (professores Pedro Dallari e Amâncio Jorge, respectivamente), a expectativa era de que o certame seria direcionado à área de Economia Internacional.
Entretanto, na reunião da Congregação, a área vinculada ao concurso foi “Economia Política Internacional” – o acréscimo da palavra “Política” abria caminho para a participação de candidatos de Ciência Política. A manobra teria levado à aprovação de Janina Onuki como professora titular, mas criou tensão entre os docentes dos grupos de Ciência Política (sob a liderança de Janina que, dois anos mais tarde, seria eleita diretora da unidade) e de Direito e História, sob a influência dos professores Felipe Loureiro e Pedro Dallari.
Em 2017, durante as eleições para a nova diretoria do IRI, houve novos embates (conforme relatado no Jornal do Campus, da USP) que tornaram as relações ainda mais tensas. No pleito, Janina foi eleita diretora do instituto pelos quatro anos seguintes, tendo como seu vice o professor Moacyr Martucci. A outra chapa, composta pelos docentes Felipe Loureiro e Maria Antonieta Del Tedesco Lins saiu derrotada, porém acusando os opositores de terem colocado em prática um “golpe” para serem eleitos.
Durante o período de eleições, um grupo de 116 pessoas, dentre docentes, pesquisadores e servidores públicos da USP assinaram uma carta que questionava a conduta de Janina e Moacyr durante as eleições. Entre os signatários estavam dois membros que foram sugeridos (e, posteriormente, aprovados) por Felipe Loureiro, Pedro Dallari e os demais membros do Colégio de Presidentes de Comissão do IRI para a banca do concurso realizado em 2019.
“Há uma divisão rígida entre o grupo do Dallari e o grupo que elegeu a professora Janina. O grupo do Dallari, no entanto, conseguiu formar a maioria na Congregação e passar decisões importantes, como a eleição dos membros da banca”, disse à Gazeta do Povo um dos candidatos que participou do concurso.
“Houve ali, em 2017, um momento difícil no IRI, que se refletiu em um maior poder para o grupo de Direito Internacional. O concurso seguinte naturalmente acabou indo para esse grupo que, apesar de não ter a direção, exerce o poder no departamento e controla todas as instituições coletivas do IRI”, conta um dos inscritos que preferiu não participar das etapas após ter acesso aos integrantes da banca.
Caso semelhante ocorreu em concurso de 2017 na USP
Ex-diretor do IRI (entre 2014 e 2017), Pedro Dallari – um dos docentes de maior influência do grupo de oposição à atual diretoria da unidade – tem um amplo histórico na política dentro e fora da universidade. Seu pai, Dalmo Dallari, ligado tradicionalmente ao Partido dos Trabalhadores (PT), foi professor e diretor da Faculdade de Direito da USP.
Já Pedro Dallari foi eleito vereador de São Paulo (em 1988) e deputado estadual (por duas vezes, em 1990 e 1993) pelo PT, e também foi secretário de governo da gestão de Luiza Erundina (atualmente no PSOL) quando ela foi prefeita da capital paulista, ainda pelo PT, entre 1989 e 1992. Em 2012, declinou do convite para ser vice de Fernando Haddad quando disputou e venceu as eleições para a prefeitura de São Paulo (2013-2016). Um ano depois, foi nomeado pela ex-presidente da República Dilma Rousseff (PT) para a Comissão Nacional da Verdade, colegiado que teve como objetivo apurar violações de direitos humanos ocorridas no período da Ditadura Militar. Sua irmã, Maria Paula Dallari Bucci, é professora de Direito da USP e ex-secretária de Educação Superior no governo Lula.
Em junho de 2017, o cunhado de Dallari, Eugênio Bucci (ex-filiado ao PT, convidado pelo ex-presidente Lula para presidir a Radiobrás – cargo que exerceu entre 2003 e 2007), venceu um concurso para professor titular do Departamento de Informação e Cultura (CBD) da USP sob grande polêmica e amplos questionamentos. A nota de Bucci foi 8,67 pontos, contra 9,33 pontos da sua oponente, Marilda Lopes Ginez de Lara. Além da nota menor, Bucci tinha atuação profissional e acadêmica em outra área (lecionava no curso de Jornalismo da USP), enquanto Marilda era professora do CBD e referência nacional como pesquisadora do campo de Ciência da Informação. Mesmo assim, três dos cinco integrantes da banca o selecionaram.
O resultado foi bastante contestado e resultou em um abaixo-assinado elaborado por docentes e estudantes pedindo a não homologação do concurso, além de um recurso interposto pela candidata Marilda de Lara. O resultado, entretanto, não foi revisto.
Conforme relatado no site da Associação dos Docentes da USP – Adusp, mesmo diante do caráter público das apresentações, a presença de Pedro Dallari e Maria Paula Dallari Bucci (que, na época, exerciam os cargos de superintendente jurídica da USP e diretor do IRI, respectivamente) nas apresentações do concurso gerou desconfortos, por se tratar de pessoas que exerciam cargos influentes na universidade e eram muito ligadas à gestão da Reitoria na época.
Segundo disse à época a professora Nair Yumiko Kobashi, pesquisadora sênior do CBD, ao portal da Adusp, o resultado do concurso seria uma "articulação de poder" e decorreria de um projeto político. "Essa luta que nós resolvemos enfrentar não se resume à defesa da professora Marilda, é a defesa da dignidade dos concursos de professor titular da USP", relatou.
Quanto a supostas ilegalidades em concursos da USP e de outras universidades públicas brasileiras, as fontes ouvidas pela Gazeta do Povo citam que o contexto desses casos normalmente está envolto em aspectos políticos que fogem da questão técnica. “Isso não é algo anormal, é recorrente nas universidades”, conta um dos inscritos no concurso de 2019.
“É um jogo que, em última instância, não estão interessados na qualidade da pesquisa, da produção acadêmica”, relata outro candidato. “Estão interessados realmente na sua sobrevivência pessoal, em fazer carreira, o que é legítimo. Mas é aquela coisa, ter o poder pelo poder, não o poder acadêmico para avançar uma agenda de pesquisa, para desenvolver algo que se espera de uma instituição que reivindica o posto de principal universidade brasileira”, finaliza.
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