O Governo Federal publicou, em 30 de Setembro último, o Decreto 10.502, que estabelece a Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida, atualizando o documento até então vigente (já vão entender as aspas), a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008. Em 1º de dezembro, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, publicou medida liminar de suspensão da nova Política, a decisão atendia a ação proposta pelo Deputado Federal Felipe Rigoni, alegando que ela “priorizava” a educação especializada em detrimento da educação inclusiva.
O Deputado comemorou nas redes sociais e muitos amigos realmente muito comprometidos com a pessoa com deficiência celebraram a medida, foram dormir com a consciência tranquila, com a vívida sensação de que passaram o dia a combater, com sucesso, um grande mal. A discussão ainda vai ao plenário do STF, mas isto não deve ser uma prioridade do Governo e deve demorar, de modo que, se a questão não é totalmente perdida, ao menos desencaminhada está.
Rigoni é cego e sua justificativa nas redes foi de que ele é “prova” de que a escolarização da pessoa com deficiência na escola comum é o melhor e único caminho existente.
O Deputado tem posições muito interessantes, um mandato de que gosto bastante, sempre trazendo a ciência como referência e de repente Rigoni diz que é “prova” de algo e se comporta segundo esta prova. Não vejo problema, desde que ele vote pelo porte e posse irrestrito de armas se algum outro deputado disser que foi assaltado e se defendeu com uma automática na cintura e é “prova” de que traz segurança, votar a favor da cura gay porque um outro deputado diz ser “prova” de que funciona e é bom. Ou seja, não vejo problema, se for uma postura coerente, mas não é.
Isso é chamado de “evidência anedótica”, um caso isolado, que não prova nada, usado como base argumentativa ainda que vá contra todas as evidências. Em seu caso, a acessibilidade do braile permite um pleno sucesso, ou seja, não é uma afirmação falsa, mas não é generalizável para todas as pessoas com deficiência. Fundada na evidência científica mais sólida, a questão pode ser bem explicada pelo provérbio que diz que “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, a bem dizer, quando falamos em alguém com autismo severo e/ou Deficiência Intelectual profunda, o assunto é um pouco mais complicado e é justamente por isso que nenhum país do mundo, nem mesmo os mais ricos, os mais progressistas e os que mais investem em educação, eliminaram a Educação Especializada, apesar das correntes neoliberais atacarem com insistência estes espaços, porque são mais caros e convenhamos, economizar nas costas de quem não consegue reclamar é bastante tentador para os governos e às vezes conseguem até mesmo apoios “progressistas” para isso.
Rigoni dormiu o sono dos justos depois de suspender a PNEE 2020, mas há ao menos duas grandes categorias em que esse sono pode estar. O sono de Dom Quixote, ao travar uma batalha “épica” contra os moinhos, inofensivos, mas que ele achou que fossem gigantes terríveis ou o sono de Hércules, que, enfeitiçado, atacou sua própria família, que sua ilusão apresentava como seus mais mortíferos inimigos. Ambos roncaram profundamente, mas em uma situação era somente tempo e energia perdidos, mas noutro caso, para muito além, coisas irrecuperáveis foram sacrificadas. E qual é o caso desta nossa batalha?
A tese é que há uma grande conspiração corporativa do setor privado que quer acabar com a maravilhosa educação inclusiva do país e os paladinos da justiça da pessoa com deficiência não permitiram. É um argumento absurdo gestado no mesmo molde conspiracionista da militância antivacina, mas com um “toque” especial na justa medida para ser acolhido por pessoas inteligentes e cultas, sua gestação tem origem na academia (daí que pareça a alguns um argumento científico), muito embora os dados científicos demonstrem que, apesar da inclusão escolar (quando realizada a partir de processos de individualização e baseada nas melhores evidências) ser a melhor opção para a maioria das pessoas com deficiência, uma parte dessas pessoas têm prejuízos significativos nesta posição, se beneficiando mais de espaços dedicados. São esses os casos mais severos, os mais vulneráveis, que mereceriam uma atenção mais dedicada.
Ponto 1: a rede privada de educação (leia-se, os donos das empresas que a compõem) quer sempre aumentar sua arrecadação, porque parte dela é revertida em lucros e os empresários conseguem investir ou auferir este dinheiro para sua própria riqueza, ok, faz sentido. No entanto, nenhum grande grupo jamais se interessou por Educação Especial no país, porque este é um pepino, as escolas não estatais são, em sua maioria, de redes como APAE e Pestalozzi ou instituições locais, com diretorias voluntárias de pais de pessoas com deficiência profundamente machucados pelo descaso da escolarização de seus filhos na escola comum. Além disso, são federações de instituições locais, que não têm qualquer sentido de fazerem grandes lobbies.
Ponto 2: o Decreto 10.502 não tocou no assunto da oferta de serviços de Educação Especial por escolas estatais ou não. A exclusividade ou prioridade estatal poderia tranquilamente ser parte de sua regulamentação (as Diretrizes) que deveriam ser publicadas pelo Conselho Nacional de Educação depois de consulta e audiência pública (se esta fosse realmente a preocupação). Se as Escolas Especializadas não são estatais não é por conta de “forças ocultas”, mas porque a anticiência de parte da academia justificou a sanha de economizar na Educação Especial, fechando as escolas e salas especializadas públicas desde há muito, quem resistiu foi a sociedade civil organizada que vive as consequências destas decisões em sua própria carne.
Ponto 3: O Decreto reconhece a existência das escolas especializadas e das salas especializadas, mas diz Toffoli/Rigoni que ele as prioriza, diz ainda que são instrumentos “excepcionais” e não podem ser regra. Na verdade, o decreto descreve que quem decide o local de escolarização é a própria pessoa com deficiência e se ela for demasiado nova ou não for capaz de tomar esta decisão, sua família. Por que isso seria “priorização”? Ou ainda, o que seria dizer que estes casos são excepcionais?
Na verdade, o que o Ministro do Supremo parece repercutir são alguns argumentos que circulam na academia brasileira sustentadas unicamente pela autoridade dos títulos de quem as profere (e pela força da repetição): a) “escolas especiais não deveriam existir, por isso não deveriam constar em documentos oficiais”; e b) “são ‘excepcionais’ no sentido de que são mero resquício do passado”.
Quais são os pontos fundamentais da PNEE 2020:
- Reconhecimento das escolas e salas especializadas: estas instituições, apesar de existirem no Brasil e em todos os demais países do terceiro planeta do Sistema Solar (embora parte da academia brasileira faça parecer que isso é um “retrocesso” e “contra a comunidade internacional”), não constavam em nenhum documento público, desregulamentação que cria o cenário perfeito para abusos desses casos mais vulneráveis. O reconhecimento de sua existência permitiria (ou permitirá?) a regulamentação, para que sejam de fato “especializados”, e se obrigue que seu projeto seja focado em nas habilidades que permitam ao indivíduo se beneficiar de contextos sociais inclusivos.
- A ampliação da sala de recursos (o apoio de Educação da Pessoa com Deficiência em inclusão) de multifuncional (para todas as condições) para também a específica, para um grupo de condições, permitindo profissionais mais bem preparados tecnicamente (a Política de 2008 previa que o respeito à diferença e não a preparação técnica era o requisito para o trabalho).
- A própria pessoa com deficiência ou, na impossibilidade disto, sua família, decidiriam o melhor lugar para sua escolarização, após uma avaliação biopsicossocial.
O Deputado Rigoni, que vinha se comportando de forma a evitar uma oposição baseada no “quanto pior melhor”, fundada unicamente na disputa pelo poder, neste caso não se dedicou a dialogar, ler, estudar e propor algum caminho razoável, por exemplo se baseando nos países mais avançados do mundo, como Canadá, Finlândia, Cuba, EUA, Inglaterra. A dinâmica do poder é irresistível, ao que parece!
Sou um defensor incansável da inclusão escolar, por isso ela deve se basear em evidências científicas (como se prescreve nos países citados e é o que previa a PNEE 2020) e sua implementação deve ser baseada no “Princípio da Voluntariedade” em que a inclusão escolar progressiva se baseia em sua melhora e na migração dos pais para este serviço e não pela proibição abusiva da diversidade de espaços educacionais (como se prescreve nos países citados e é o que previa a PNEE 2020).
Os mesmos que lutaram pela queda da PNEE 2020 são os que alegam que a “ciência positivista” (um apelido jocoso para qualquer proposição científica) não pode ser usada em educação, porque o ser humano tem subjetividade (algo do tipo, “ciência só pode ser usada em coisa simplesinha, se for complicada, melhor ficarmos sem”).
A PNEE 2008, que volta a vigorar com a suspensão da PNEE 2020, prevê que a) todas as escolas especiais devem ser urgentemente fechadas; b) que não se pode fazer nenhuma adaptação para nenhuma pessoa com deficiência; c) que são as próprias pessoas com deficiência que devem se adaptar ao currículo; d) que não se pode usar nenhuma prática ou metodologia com evidência para nenhum desafio pedagógico de nenhuma deficiência; e e) que só o que precisamos é fazer uma aula aberta, quem aprender aprendeu e respeitamos todas as aprendizagens (uma análise comparativa das PNEEs de 2008 e 2020 pode ser vista aqui).
Não, Rigoni não combateu simplesmente gigantes inexistentes, o prejuízo da anticiência na Educação Especial é profundo e produtor de sofrimento e negação do direito fundamental do qual a escolarização é instrumento, a aprendizagem. Hércules realizou 12 trabalhos para se redimir, não sei se o Deputado está à altura de tais proezas.
* Lucelmo Lucerda é professor, psicopedagogo, doutor em Educação pela PUC-SP, com Pós-Doutorado em Psicologia pela UFSCar, pesquisador em autismo e inclusão escolar.
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