1.
Nestes tempos interessantes em que o Brasil vive, há uma pergunta que ronda os meios educacionais, tanto do lado da esquerda e, principalmente, o da direita: “Qual seria o nome ideal que substituiria Paulo Freire como patrono da educação brasileira?”.
Não à toa que ela se tornou uma obsessão – para não dizer, uma tara. Freire é ora o novo bode expiatório do momento, ora o rei a ser erguido em um pedestal inatingível de onde ele jamais deverá ser criticado. Com isso, quem perde somos nós, que vivemos imprensados em um debate repleto de automatismos verbais, em um “Carandiru Intelectual” (como chamei no meu livro A Poeira da Glória) onde a única coisa a ser assassinada com verdadeiro método é a nossa consciência.
Para escaparmos deste dilema, precisamos entender algumas coisas a respeito do nosso sistema educacional. Ele gira ao redor de três eixos, sem exceção: (1) a insistência de reduzir o comportamento humano (em especial, o da criança a ser ensinada) em uma técnica aparentemente infalível; (2) a preocupação frenética de ver o mundo concreto, com sua ambiguidade implacável, por meio de uma ideologia política que explique em definitivo os mistérios intrínsecos a ele; e (3) a redução da liberdade humana em função de um projeto de poder que sufoque qualquer possibilidade de uma cultura orgânica e plena de vitalidade.
Infelizmente, Paulo Freire cumpre todos esses requisitos. E o mesmo pode ser dito de nomes notórios do passado e do presente pedagógicos, como Gustavo Capanema, Anísio Teixeira, Álvaro Vieira Pinto, Alberto Guerreiro Ramos, Mario Sergio Cortella, Rubem Alves, Fernando de Azevedo, Marilena Chauí e tutti quanti. Cada um critica o seu inimigo da vez, sem se preocupar em perceber que, no fundo, cada projeto educacional criado neste ambiente árido de ideias que é o Febeapá tupiniquim (o Festival de Besteiras que Assolam o País, segundo Stanislau Ponte Preta) não passa de um espelho simétrico o qual se ergue diante de uma vastidão repleta de esterilidade.
Com isso, resta a opção desesperada: Existiria um nome que seria uma alternativa a este beco sem saída – e que vá contra esses três pontos perturbadores que fazem parte do nosso sistema pedagógico? Sim, há. Eis o homem: o diplomata e escritor Mario Vieira de Mello.
2.
Nascido em 26 de maio de 1912, na Inglaterra, Mario foi filho do também diplomata Américo Vieira de Mello e de Elvira Uchoa Cavalcanti Vieira de Mello. Segundo Filipe Costa Fontes, em uma essencial monografia sobre o nosso candidato a patrono da educação, “apesar de ter nascido no exterior [onde seu pai se encontrava em missão oficial], foi educado no Brasil na década de 1930, mais diretamente no Rio de Janeiro, onde concluiu a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais. Optou pela carreira diplomática, iniciando a mesma em 1939. Atuou ininterruptamente até o ano de 1977, quando se aposentou, depois de ocupar diversos postos no ministério das Relações Exteriores e em diversas embaixadas estrangeiras. Desde então, radicado em definitivo no Brasil, passou a ter grande presença na discussão de temas da maior relevância. Mario faleceu a 30 de março de 2006, pouco antes de completar 94 anos”.
De resto, viveu uma existência pouco tumultuada em fatos exteriores. Contudo, isto não impediu, durante a sua trajetória intelectual, que conquistasse o respeito dos seus pares, os quais iam desde Antonio Candido até Geraldo Mello Mourão, passando por Antonio Paim e Vinicius de Moraes, seu amigo pessoal e responsável por um soneto que, indiretamente, imortalizou Mario Vieira de Mello nas rodas literárias da época:
MÁRIO
Entre meditabundo e solonento
Sobre a fofa delícia da almofada
Ele vai perseguindo na jornada
Através o Ottocento e o Novecento
Não o tires dali que dá pancada
Todo o resto pra ele é sofrimento
Vai colhendo da flor do pensamento
Toda a filosofia desejada
Só abandona voluntário o élan
Para o banho de poço da manhã
"Mens sana..." disse François Leblon
E às vezes, Carnaval, cai na folia
E passeia porrado pela orgia
Sob o signo pagão do deus Mammon.
O poeta captou com precisão o comportamento contraditório do jovem diplomata, então no início do seu percurso filosófico. Mostra também como ele se deixou seduzir pelas sereias do desleixo ético, uma espécie de estupidez quase criminosa, cuja raiz foi descoberta justamente por um Mario Vieira de Mello já devidamente amadurecido logo no seu primeiro livro, Desenvolvimento e Cultura – O Problema do Esteticismo no Brasil (1963).
3.
Nesta obra de estreia, ele articulou um grande panorama civilizacional de forma precisa, ao mostrar no que consistia as alternativas apresentadas anteriormente pelo filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) – no caso, todas ao redor do conflito entre o princípio ético e o princípio estético da existência. Segundo essa perspectiva, Kierkegaard não hesita em fazer uma comparação direta entre o indivíduo ético que é transparente para si mesmo e o indivíduo estético que vive à toa. A pessoa que vive eticamente se vê como alguém que conhece o que ocorre dentro de si mesma, que faz a sua consciência permear o que é concreto na sua existência e não se permite qualquer pensamento desnecessário que o desvie dessa meta. Se o indivíduo ético é “o editor de sua própria vida”, permitindo assim a correção constante de seus atos porque os assume como seus, o esteta acredita que o melhor é ser o próprio texto, como se fosse reescrito por uma mão invisível, e que todos – principalmente os próximos que o acompanham – devem estar submetidos a uma estrutura que só ele conhece perfeitamente.
No Brasil, segundo Vieira de Mello, a compreensão da vida por meio de um ponto de vista meramente estético é o que caracteriza o comportamento do seu cidadão. É claro que a descoberta da filosofia de Kierkegaard também se refere a outros indivíduos em qualquer parte do mundo – mas é aqui que a tendência estetizante adquire um contorno todo especial, um colorido que não tem nada a ver com exótico e sim com a própria essência da nossa personalidade. Interessa ao brasileiro é a aparência, o disfarce, a dissimulação, e manter, a qualquer custo, a sua tendência esteticista de – conforme nos explica Vieira de Mello – ser “um homem que se contempla a si mesmo e que contempla os outros como se o mundo fosse um palco e como se a sua vida devesse ser destituída de sentido, caso não pudesse se constituir como um espetáculo a que assistissem certo número de pessoas assíduas e atentas”. Ele não consegue ver que há qualidades que são menos óbvias no comportamento humano, qualidades invisíveis que não seria um exagero chamá-las de “qualidades da alma”.
Para Vieira de Mello, a única prova de que tais sentimentos nobres existem, ao menos no Brasil, é a exteriorização extrovertida e espetacular. Não há uma mínima possibilidade de uma vida que seja digna dentro do âmbito do silêncio e do recolhimento. Qualquer forma de um segredo que se alimente da nobreza do espírito humano será desacreditada – exceto se o tal segredo revelar uma perversidade que satisfará ainda mais uma sociedade que precisa de um escândalo atrás do outro. Essa “psicologia do extrovertido” é mais um reflexo da insinceridade que domina as relações entre os brasileiros, insinceridade que tem raízes no fato de que o indivíduo que habita o Brasil não consegue ser verdadeiro consigo mesmo. Para o pensador brasileiro, é esta “a compreensão do mundo como um palco que leva o brasileiro a uma exteriorização excessiva dos seus sentimentos, exteriorização que, muitas vezes, não é possível levar a efeito sem uma certa insinceridade”, por meio dos “abraços prolongados, a palmada leve nos ombros, as expressões exageradas de louvor e entusiasmo, e a facilidade com que proclama sua amizade por tais ou quais pessoas que conhece”.
Assim, o esteticismo se disfarça de uma forma insidiosa na nossa vida interior – e dá margem a um moralismo que quer explicar as ambiguidades do real quando, no fim, o distorce ainda mais. O maior exemplo disso é o fascínio que o brasileiro tem pelo homem inteligente – ou, como diria o romancista Lima Barreto, o “anel de doutor”. Vieira de Mello afirma que “o nosso conceito de inteligência corresponde, ponto por ponto, ao conceito de virtú do homem do Renascimento italiano: é a qualidade que permite ao homem de realizar grandes façanhas e de conquistar assim a glória”. Quem diz que alguém é justo ou honesto deve ser visto com desconfiança – tanto para quem diz isso como para o elogiado em questão. Afinal, sugere Vieira de Mello, “ter caráter e não ser inteligente são duas coisas que no Brasil têm quase o mesmo significado. E é evidente que ser inteligente, por sua vez, não está longe de estar desprovido de caráter”.
Para escapar desta falência da comunicação entre as pessoas que resulta do fascínio pelo esteticismo, só temos uma única maneira, na visão de Mario Vieira de Mello: deixar de lado a virtú renascentista e redescobrir a nossa liberdade interior.
4.
Em O Cidadão – Ensaio de Política Filosófica (1994), Mario mostra que tal liberdade é algo único e não é um direito garantido pela Constituição Brasileira de 1988 ou por qualquer programa assistencialista do Estado. Pelo contrário: é algo a ser conquistado a custo de uma disciplina interior, harmonizada justamente com a consciência correta – e que se passa naquele campo de ação que chamamos de “alma humana”. Ela não se relaciona diretamente com o princípio da igualdade, quando se tenta encaixá-la no mundo fascinado pela tolerância e pelo pluralismo, mas sim com o princípio da justiça, ou, para ser mais exato, da hierarquia proporcional. Não pode ser confundida de forma alguma com a liberdade exterior, que, esta sim, se relaciona com a igualdade porque depende de uma correta manutenção das instituições políticas que devem proteger as liberdades individuais para que todos sejam iguais perante a lei.
Contudo, a liberdade exterior também pode ser usada para propósitos contrários à sua intenção, já que é também um instrumento de harmonização do poder político e, como qualquer coisa concebida pelo homem, capaz de ser pervertida, caso não se entenda que a isonomia legal só será praticada se a hierarquia das virtudes e dos princípios também for preservada por aquele “fundo insubornável do ser”, como diria Ortega y Gasset, que governo nenhum pode invadir sob qualquer permissão.
Vieira de Mello explicita essa tensão, que existe desde o início da filosofia política, ao mostrar que não há liberdade verdadeira sem uma emancipação da imanência – e consequentemente não existe liberdade verdadeira sem o reconhecimento pleno da dimensão da transcendência. O que põe em relevo “é apenas o fato de que [essa dimensão] é mal apreciada quando retirada de seu verdadeiro contexto de dinamismo e de íntima associação com a realidade espiritual do homem”. O princípio de transcendência é um marco, uma etapa na evolução espiritual do homem, e temos de conservá-lo sem repudiar o Estado. O resultado desse encontro inusitado é o Estado dentro de nós, a pátria em que somos nossos próprios governantes.
Mas a cultura da modernidade contesta a realidade da transcendência – e só consegue fazer isso organizando o Estado de uma maneira que violenta a natureza íntima do homem. Vieira de Mello não titubeia em afirmar que “o mundo de hoje nos mostra [...] sistemas que, por não respeitarem essa realidade, destroem a ordem, a harmonia, o equilíbrio da alma humana – e assim não são organizados por uma disciplina interna, e sim por um agente exterior, que instrumentaliza os instintos e as paixões, com o intuito de que possam contribuir para o bom funcionamento da sociedade”.
Essa “instrumentalização das paixões” é uma forma sutil de violência que se articula com a desordem interior que comanda as nossas ações – e que sem dúvida só poderá ser cometida contra o indivíduo “depois que este voluntariamente permitir que a ordem, a harmonia e o equilíbrio da alma humana sejam completamente destruídos”. Todavia, o ser humano, independentemente de qualquer época histórica ou do país em que habita, continua ávido de liberdade; “mas infelizmente a liberdade que procura não é a verdadeira liberdade, a liberdade que transcende a natureza humana”.
No fundo, trata-se da liberdade do animal que não transcende sua natureza animal: “a liberdade de locomoção, a liberdade de expressão, a liberdade de expressão (e devemos incluir aqui as formas imanentes da liberdade política e religiosa) – para não falar de outras liberdades que não ousa reivindicar, como a liberdade do mais forte, a liberdade da conquista, a liberdade do poder”.
Num mundo assim, “em que a compreensão da liberdade que tem o homem não vai além dessa dimensão da liberdade animal, fica difícil imaginar como as sociedades possam se estruturar, como um princípio de razão possa regular a convivência entre os homens”. Só um Estado hostil – “totalitário ou que por outras formas desrespeite a liberdade interior do homem, instrumentalizando as suas paixões” – é capaz de reprimir ou de domesticar essa “liberdade animal indisciplinada, evitando que os homens se autodestruam em ondas de violência cada vez mais avassaladoras, até que o mundo se torne completamente despovoado ou mesmo destituído de qualquer forma de vida”.
Com ou sem destruição, as perspectivas que se oferecem ao homem são desoladoras se optarmos no futuro “por uma forma de convivência humana em que os homens não sejam interiormente livres – interiormente livres com uma liberdade voltada para a transcendência”.
Mario Vieira de Mello acreditava que a recuperação dessa liberdade que se volta para a transcendência no território brasileiro só teria alguma eficácia concreta se seguíssemos o exemplo de vida de quatro grandes filósofos: Sócrates, Platão, Kierkegaard – e Nietzsche.
5.
Em Nietzsche – O Sócrates dos Nossos Tempos (1993) e O Humanista – A ordem na alma do indivíduo e na sociedade (1996), ele afirma explicitamente que Nietzsche foi um dos grandes continuadores da liberdade moral descoberta por Sócrates, na qual o vínculo intrínseco com a razão humana era justamente a base daquilo que conhecíamos como “humanismo clássico”. É uma afirmação polêmica porque, do lado dos progressistas, Nietzsche é visto como um defensor do relativismo e do ateísmo espiritual que simplesmente renega qualquer possibilidade de transcendência e de valor objetivo no mundo; e do lado dos soi disant conservadores, ele se tornou uma espécie de encarnação filosófica do Anticristo (algo que, ironicamente, foi previsto em seus escritos), sempre caindo no clichê do famoso trecho de A Gaia Ciência a respeito da “morte de Deus”.
Vieira de Mello vai no caminho oposto destas duas leituras – e percorre um outro, completamente solitário dentro do ambiente da discussão cultural brasileiro. Para ele, o autor de Genealogia da Moral foi um psicólogo devastador, mas não importuno, que analisou as relações entre Poder e Cultura a partir do exemplo de Sócrates, mesmo que fosse muitas vezes a contragosto. Neste ponto, o único filósofo com quem ele podia ser comparado seria justamente Kierkegaard.
Entretanto, Nietzsche iria além da comunicação indireta estabelecida nas obras do pensador dinamarquês. Como afirma Vieira de Mello, a preocupação com o exemplo de Sócrates é um dos indícios mais seguros de que, em seus escritos, temos a predominância de uma vontade de cultura, nunca de uma vontade de poder, algo que foi repisado por “epígonos” como Martin Heidegger e Michel Foucault. Na verdade, trata-se de uma deformação da filosofia de Nietzsche, pois ao transformá-lo em um “iconoclasta” ou um “niilista” como eles, esses epígonos não divulgaram ao público que o alemão sempre teve um projeto de cultura, no qual este último ajudaria o ser humano a encontrar sua virtude moral por meio de uma reavaliação crítica tanto da razão humana como da liberdade interior.
Vieira de Mello ressaltaria o fato de que esse projeto de cultura proposto por Nietzsche faliu justamente por causa da recusa da modernidade de querer apreender os fundamentos do humanismo clássico de Sócrates e Platão. Daí o mergulho no abismo da loucura e da incomunicabilidade que o alemão sofreu nos seus últimos anos de vida, prejudicando inclusive a recepção de sua obra póstuma, principalmente devido à interferência de sua irmã Elizabeth, uma notória antissemita e futura defensora de Adolf Hitler.
Como já vimos, para o pensador brasileiro, essa cicatriz pode ser rastreada até a passagem do final da Idade Média para o início do Renascimento, com o surgimento do esteticismo na sensibilidade artística e na vida pública. Contudo, em seu último livro, O Homem Curioso – O problema da exterioridade na filosofia de Aristóteles (2001), ele vai além e desenvolve até as últimas consequências algo que já esboçara nos escritos anteriores. Trata-se da evidência, soterrada por séculos e séculos de incompreensão a respeito da tensão orgânica entre razão e liberdade, de que o principal motivo do “descarrilamento” da filosofia moderna como um todo é a predominância da leitura da filosofia de Aristóteles em detrimento da de Sócrates e Platão.
6.
Sem dúvida, trata-se de uma afirmação extremamente perturbadora. Afinal de contas, o alvo é ninguém menos que Aristóteles, aquele que não só foi um dos discípulos mais brilhantes de Platão, mas talvez o mais brilhante e que se tornou nada mais, nada menos que “o filósofo”, segundo a opinião de Dante Alighieri, além de ser o grande inspirador da cosmologia medieval e renascentista.
Para o brasileiro, o Estagirita é um dos pais da “falta de formação filosófica” que contaminou o mundo atual. Os principais conceitos afetados por esse descaso são o da razão e o da liberdade que, ao contrário do que muitos pensadores imaginam, não existem separados, mas sim juntos, como irmãs gêmeas. Segundo Vieira de Mello, falar da razão ou da liberdade, em abstrato, sem referência à estrutura particular à qual ela pertence, é o exercício frequente através do qual o mundo moderno e contemporâneo manifestou ou manifesta sua incultura filosófica. Quando o autor de O Humanista indica a distinção de liberdade interior e liberdade exterior, o que ele faz é, simplesmente, distinguir a liberdade que foi descoberta por Sócrates e a liberdade que foi exteriorizada por Aristóteles – sendo que a primeira teria nascido no clima de uma cultura aristocrática, a segunda no clima de uma democracia do poder.
Ao insistir na diferença entre a razão engajada com a liberdade interior e a razão desengajada de sua irmã gêmea, ocorre apenas a distinção entre a razão comprometida com os diversos instintos que integram a totalidade da alma humana e a razão que se desligou desse compromisso, e que se restringe apenas às funções de calcular, prever e planejar – ou seja, dois tipos de razão que foram concebidos e utilizados por filósofos como, respectivamente, Platão e Descartes.
A consequência dessa separação é que os termos tão frequentemente usados pelo homem contemporâneo – como, por exemplo, liberalismo e racionalismo, que deveriam corresponder às visões de mundo políticas, originadas por um entendimento correto do que significa a unidade entre liberdade e razão – não passam de grosseiros automatismos verbais que estão longe da verdadeira essência dos problemas que precisam ser analisados.
O erro de Aristóteles teria sido exteriorizar a liberdade interior descoberta por Sócrates e articulada na obra platônica, transformando a busca da virtude em uma “instrumentalização das paixões”. A consequência direta disso é que a liberdade espiritual virou uma obsessão pelo poder de controlar a realidade, sem nenhuma preocupação com o fato de que um homem verdadeiramente livre precisa contemplar o mundo para entendê-lo em suas nuances e ambiguidades.
Em termos de comportamento, surgiu então um novo tipo. Trata-se do “homem curioso”, aquele ser humano que pesquisa sobre tudo e sobre todos, é movido por uma concupiscência insaciável e quer conhecer os segredos mais profundos da existência, chegando a fazer descobertas realmente úteis e surpreendentes para a humanidade – mas é incapaz de fazer a meta última de qualquer espírito que deseja a sua liberdade: conhecer a si mesmo.
É claro que o “homem curioso” de Aristóteles, explica-nos Vieira de Mello, não é um homem “intelectualmente retardado, incapaz de enfrentar os desafios da vida”. Ele é apenas alguém que, em vez de se perder nos espaços do mundo exterior, perder-se-ia na interioridade de todo o mundo que evita a conquistar; é incapaz de entender, portanto, aquele paradoxo da existência de que a exterioridade do ser humano não existiria se não houver o domínio da sua interioridade, das suas paixões. Afinal, o primeiro passo para deixar a barbárie não é tornar-se curioso, mas sim interiorizar-se e saber que, depois deste feito, há a surpresa de um desvio que chamamos de exteriorização.
O “homem curioso” é a síntese encarnada da conhecida abertura da Metafísica: ele deseja conhecer a realidade em seus últimos detalhes. No fim, o seu papel principal no drama da existência é o de criar um teatro feito para distrações, abandonando assim a intensificação do sentimento da existência. É fugir de si mesmo porque se torna incapaz de ser um personagem que reconheça a paixão trágica que foi descrita no passado nas peças de Ésquilo e Sófocles.
Afinal de contas, na explicação de Vieira de Mello, o que temos como grande problema da modernidade é que o homem que procura conhecer a si mesmo, o homem que cuida de si mesmo quer decifrar o problema da sua liberdade – que pode depender de Deus ou de si mesmo. No homem de Deus, depende de Deus ou de seu Messias. No homem socrático, de si mesmo. No homem do cristianismo, de si mesmo e de Deus, se for católico, de Deus inteiramente, se for protestante ou ortodoxo. Já o “homem curioso” encontra a liberdade não em Deus ou em si mesmo, mas nos outros. Sua liberdade depende inteiramente dos outros. São sempre os outros que encontramos quando lidamos com o problema da liberdade do homem curioso – e, não à toa, damos à sua liberdade o nome de liberdade exterior, aquela que teria sido desenvolvida plenamente na obra de Aristóteles.
Essas liberdades exteriores que conhecemos e que fundamentam a nossa sociedade democrática seriam as políticas, as de imprensa, de opinião, de credo religioso, entre outras – e que nos foram outorgadas exclusivamente pela vontade desses outros que alegamos querer conhecer. A prova disso é que o século XX se engajou em duas grandes guerras que deixaram profundas cicatrizes na alma ocidental – e tudo isso exclusivamente em nome da liberdade exterior. Para Vieira de Mello, a palavra liberdade está na boca de todos justamente porque é somente neste tipo de liberdade que se pensa. Se houver alguma referência à existência de uma liberdade interior, todos se calarão sem saber o que dizer – e, o pior, sem saber se há uma palavra que possa exprimi-la adequadamente.
7.
O estágio mais avançado de liberdade exterior é indubitavelmente o do progresso tecnológico, registrado em nossos dias pelas corporações do Vale do Silício, com seus gadgets, os dados extraídos voluntariamente das nossas redes sociais e as obsessões apocalípticas pela imortalidade do corpo sem admitir a existência da alma.
Apesar de ter sido escrito e lançado no início de 2001 – portanto, antes dos atentados do 11 de setembro, um evento que destruiu de vez qualquer expressão equilibrada de liberdade interior na sociedade moderna –, O Homem Curioso se antecipa a este fenômeno, alegando que a inquietação do seu autor era que o declínio da conquista de si mesmo tinha durado tanto tempo que já era possível falar de “uma evolução processando-se dentro dele” – mais precisamente, o fato do homem contemporâneo exultar naturalmente as últimas maravilhas da tecnologia como se fossem as derradeiras conquistas do espírito.
Neste ponto, Vieira de Mello descreve como o “descarrilamento” da filosofia (visto dessa forma por Eric Voegelin) tem origem no comportamento do “homem curioso” que, entre os escritos dos mais diferentes pensadores, já assumiu diversas formas, desde do homem empírico de Francis Bacon e David Hume, passando pelo homem racionalista de Descartes, pelo homem crítico da razão de Kant, do homem fenomenológico de Edmund Husserl, até chegar ao homem lógico-filosófico de Wittgenstein e ao homem analítico da filosofia contemporânea. Vistos desse modo, a evolução e o progresso inexoráveis da tecnologia dos nossos dias passam a ser o resultado natural deste “descarrilamento” e, portanto, de tudo o que foi produzido por esses representantes do “homem curioso”.
8.
Como um pedagogo que deseja restaurar as virtudes que sempre existiram dentro de nós, Vieira de Mello nos alerta em seus escritos para o fato de que a principal função da filosofia não é dar qualquer espécie de saída fácil para um problema que, no fundo, nasce nos recantos da alma humana. Afinal de contas, a filosofia só consegue ter mais força conforme ela é uma resposta existencial à própria crise do ambiente social de onde surgiu. Ocorre que a persistência dela é também apenas uma resposta que depende muito mais da excelência conquistada na solidão da ordem do ser do que propriamente na curiosidade coletiva da raça humana.
Mas é neste “apenas” que se encontra toda a nossa salvação educacional, por assim dizer. É nesta brecha entre a conquista de si mesmo e a liberdade permitida pela razão desengajada que a sociedade brasileira poderá reencontrar um pouco a virtude do “humanismo clássico” defendida por Mario Vieira de Mello. É evidente que proclamar três vezes “Sócrates! Sócrates! Sócrates!” – como quis Kierkegaard no final de O Conceito de Ironia e o próprio Mario nas linhas finais do seu Desenvolvimento e Cultura – não curará imediatamente a nossa tendência para o esteticismo. Mas a leitura das obras do pensador brasileiro possibilita a chance de escaparmos um pouco do descarrilamento da filosofia moderna e redescobrir, dentro de nós, um pouco da liberdade moral que ainda merecemos.
* Martim Vasques da Cunha é autor de A Tirania dos Especialistas (Civilização Brasileira, 2019).
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