O relacionamento entre o Ministério da Educação (MEC) do presidente Jair Bolsonaro e as universidades federais parece um “cabo de guerra”. Em meio aos bloqueios no orçamento, à acusação de "balbúrbia" e ao lançamento do programa Future-se, a comunidade acadêmica e o ministério, fosse na figura do ex-ministro Ricardo Vélez Rodríguez, seja na pessoa de Abraham Weintraub, vivem em tensão.
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De um lado, o atual ministro, Weintraub, acusa as universidades de serem "torres de marfim" e de não prestarem contas de forma satisfatória ao contribuinte, que as sustenta. Do outro, as academias reivindicam sua autonomia universitária e acusam o governo de "ferir de morte" essa "liberdade" quando, por exemplo, o MEC quebra a tradição para a escolha de reitores, bloqueia verbas ou "impõe" (na verdade, é uma proposta) um programa para maior captação de recursos.
Especialistas no assunto ajudam a entender, do ponto de vista jurídico, o que é autonomia universitária, quais são seus limites e em que momento ela é ferida.
"Um presente"
Nas palavras de Nina Beatriz Stocco Ranieri, professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a autonomia é uma espécie de "presente do Estado dado às universidades".
Isso significa que ela não surge por si só ou por ação das próprias instituições de ensino, mas é um poder que deriva de um ente maior. Neste caso, da República, por meio da Constituição Federal de 1988, que determina, no art. 207, que "as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial".
Essa concessão dá margem para as academias de ensino decidirem de que forma vão atuar nas áreas de pesquisa, ensino e extensão. "Elas têm liberdade para escolher os cursos que vão ofertar, por exemplo, o que vão pesquisar, o modo da contratação de pessoal e, dentro da lei, de decidir de que forma vão gerir seus recursos", explica a professora. Na prática, isso significa, por exemplo, que o governo não pode fechar cursos ou determinar quais pesquisas serão realizadas.
Mas a autonomia é limitada, quer seja pelas áreas em que ela pode ser exercida, quer seja pela própria Constituição – a norma mais alta do ordenamento jurídico – ou por outras leis que interferem na vida das universidades. "Na prática, é como um presente dado sob algumas condições", compara Nina.
Ricardo Lodi Ribeiro, professor adjunto de Direito Financeiro da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), confirma que "ordens autônomas, como as universidades, têm que seguir as regras superiores da ordem soberana [República]". Isso significa que elas não são livres para estabelecer regras que violem a Constituição Federal ou as leis gerais da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
Esse entendimento está consolidado em várias decisões do Supremo Tribunal (STF). Por exemplo, em 2009, Joaquim Barbosa, ex-presidente da Corte afirmou, em processo de 2009, que, "nos termos da jurisprudência do Tribunal, o princípio de autonomia universitária não significa soberania das universidades, devendo essas se submeter às leis e demais atos normativos".
"A universidade não é um estado, não faz leis, não tem sua própria constituição. Por isso, é importante a definição de poder derivado, a instituição só pode atuar em conformidade com a lei maior", completa Ranieri.
Policiamento e contas
Para Arnaldo Barbosa Júnior, secretário de Educação Superior do MEC, as críticas do ministro Weintraub às universidades, ao classificá-las de “torres de marfim” com ações de “soberania”, estão fundamentadas em várias atitudes das Reitorias quando, por exemplo, não "prestam contas" da forma como deveriam. Questionado sobre o que significa prestar contas, neste caso, ele afirmou que "não é só digitalizar documentos", mas a sociedade deve estar satisfeita com os serviços prestados.
"Em relação à governança, de 63 universidades, 86% estão abaixo do índice de 50% governança do TCU. Nós precisamos prestar melhores resultados. Somente quatro universidades e institutos federais têm um índice satisfatório, que é acima de 70%", informa.
O ministro Weintraub também tem insistido na frase "autonomia não é soberania", aponta Barbosa, se referindo a uma "minoria barulhenta que não representa o mundo acadêmico e, muitas vezes, passa do ponto".
"A universidade não é intocável, ela é da sociedade brasileira. Na questão de segurança, por exemplo, é preciso dar maior proteção possível aos professores e alunos", defende ele. "O MEC entende que os parlamentares, por exemplo, que são os representantes da sociedade, independentemente de partido político, devem poder transitar com a maior segurança possível dentro dos campi". O uso de drogas em muitos ambientes universitários também é criticado pelo secretário.
Por outro lado, Lodi acredita que as forças de segurança deveriam entrar na universidade apenas em posse de um mandado judicial ou autorização do reitor. "Não é possível que a polícia ingresse nas universidades sem essas condições", diz.
Neste caso, no entanto, a legislação prescreve algo distinto. Como mostrou a Gazeta do Povo, em 2017, a resistência ao poder de coação nos campi muitas vezes se deve a um equívoco na interpretação da lei ou a uma “pauta ideológica".
Em 2016, por exemplo, o juiz Lincoln Rodrigues de Faria determinou que a Universidade Federal de Uberlândia (UFU) deveria aceitar a presença da Polícia Militar no campus, e explicou a legalidade da ação. "A autonomia administrativa a ela consagrada visa conceder um poder para bem gerir suas questões burocráticas e de realizar a gestão de seu próprio patrimônio. Todavia, não lhes é dada a competência constitucional para prestar serviço de segurança pública", disse Faria, na época.
Salários e reitores
Os "supersalários" pagos a alguns servidores de universidades estaduais de São Paulo também, por vezes, são criticados e apontados como exemplo da transformação da “autonomia” constitucional em “soberania” ilegítima. As denúncias contra remunerações acima do teto constitucional, inclusive, chegaram até a Justiça e causaram repercussão no ambiente acadêmico.
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"Pagar salários acima do teto viola a Constituição", concorda Lodi. Mas ele não acha que esse tipo de ação poderia ser classificado como um ato de soberania. "Não significa que elas queiram ser soberanas. As universidades, como quaisquer pessoas jurídicas ou físicas, acertam e erram. São passíveis de violar leis", defende.
A forma “autônoma” como os reitores das universidades federais do país são escolhidos teria sido “violada” pelo governo de Bolsonaro, na opinião do professor da Uerj. Apesar de a lei prever que o presidente da República tem total autonomia para escolher, a partir de uma lista tríplice (elaborada pelo Conselho Universitário) quem vai reger a instituição, o costume dos governos anteriores de escolher o “mais votado” pela comunidade acadêmica seria, segundo Lodi, o mais de acordo com a autonomia prevista na Constituição.
E Lodi vai além: para ele, a norma federal (de 1996) que trata desse assunto é incompatível com a Constituição Federal. "Há exemplos de normas que dão um melhor tratamento à CF do que a legislação da união. Por exemplo, a constituição do Rio, ao estabelecer a regulamentação da autonomia administrativa, determina eleições diretas para reitor. Não tem lista tríplice", diz.
A opinião de Lodi, porém, não é consenso. Em entrevista para a Gazeta do Povo, Virgílio Arraes, ex-presidente da Associação dos Docentes da Universidade de Brasília (AdUnB), afirmou que não existe incompatibilidade entre a regra da lista tríplice e o artigo 207 da Constituição.
Future-se
“O cargo de reitor não é apenas acadêmico, científico. O cargo de reitor é também político. Não precisa ser partidário, mas é político. É por isso que, nos Estados Unidos, os reitores tradicionalmente vêm de fora da universidade, são do mercado ou do ambiente político”, explicou.
Recentemente, reitores, professores e alunos foram às ruas para se manifestar contra o projeto “Future-se”, do MEC. Como o programa prevê que parte da gestão das universidades possa ser realizada por meio de Organizações Sociais – caso as instituições adiram voluntariamente a ele –, alguns críticos viram nesse fato um perigo para a autonomia das instituições e um risco para elas de se tornarem reféns dos caprichos da iniciativa privada.
Não é nada disso, conforme apontam técnicos e universidades que se posicionaram abertamente a favor do Future-se, como a UFSCar. O contrato com a organização social prevista no Future-se, esclarecem, é o mesmo que se faz com empresas terceirizadas, sem nenhum risco para a autonomia.
"As Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) já celebram contratos de gestão com empresas terceirizadas, e ainda com as Fundações de apoio, e nem por isso perdem sua autonomia acadêmica ou administrativa", afirmou a UFSCar em nota.
Barbosa, secretário do MEC, afirma que o objetivo do Future-se é exatamente o contrário: fortalecer a autonomia das universidades, conseguindo mais recursos para aumentar sua liberdade de ação. “A instância máxima das instituições é o Conselho Superior, que aprova ou rejeita a adesão a qualquer projeto", explica Barbosa. "A adesão só poderá ser feita após a aprovação do Congresso Nacional, e os conselhos que têm se manifestado contra o projeto, na verdade, não entenderam que a consulta pública que fizemos é para aperfeiçoá-lo", garante.
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