As universidades públicas, mesmo as federais, estão sujeitas às regras do Código Penal e à atuação das Polícia Militar e Polícia Civil. Pelo menos em tese. Na prática, o consumo de drogas – maconha em especial – é tolerado pela comunidade acadêmica e pelas reitorias.
A Gazeta do Povo inicia nesta segunda-feira uma série de reportagens sobre a conivência com o uso de drogas em universidades públicas brasileiras. Após uma extensa apuração, em contato direto com alunos de universidades das cinco regiões do país, a conclusão é incontornável: a tolerância com o consumo de entorpecentes é generalizada.
É bom lembrar: portar drogas, mesmo que para consumo pessoal, continua sendo crime. Mas o problema vai além da esfera legal.
A presença da maconha em prédios e corredores (onde mesmo o cigarro convencional é proibido) tem consequências reais: o cheiro da droga atrapalha as aulas. A clientela garantida atrai traficantes para dentro dos campi universitários – geralmente espaços abertos, amplos e de livre acesso. Mais do que isso: as drogas trazem o vício em um lugar que deveria ser de virtude.
A primeira reportagem da série mostra a situação em universidades do Centro-Oeste e do Norte do país.
Em abril deste ano, a Polícia Civil do Distrito Federal prendeu três alunos da UnB depois de descobrir uma plantação de maconha mantida por eles dentro do campus da universidade. Poucos ficaram surpresos com o flagrante.
A universidade tem um longo histórico de convivência com o consumo de maconha. O delegado Rodrigo Bonach, responsável pela Coordenação de Repressão às Drogas da Polícia Civil do Distrito Federal, não tem dúvidas de que a instituição é conivente com a situação.
“Existe um problema de cunho político-eleitoral. Na maioria das universidades públicas os alunos também têm direito a voto na eleição dos reitores. Então os candidatos a reitores e reitores que pretendem eventualmente se reeleger não entram em rota de colisão com essas pseudo-ideologias”, afirma.
Uma visita rápida à UnB, um campus amplo e repleto de espaços vazios na Asa Norte, foi suficiente para a reportagem da Gazeta do Povo testemunhar o livre consumo de maconha (Veja a galeria abaixo). Entre os locais preferidos pelos usuários de droga estão os espaços entre o ICC (Instituto Central de Ciências) e a biblioteca. Mas os centro acadêmicos, geralmente próximos das salas de aula, também costumam ser frequentado pelos usuários de maconha.
Gabrielle Castelo Branco, aluna da Pedagogia da UnB, afirma que o cheiro de maconha já chegou a atrapalhar aulas. “A reitora deu uma declaração dizendo que (o uso de drogas) seria combatido a todo custo, mas não vi nada concreto sendo feito”, afirma ela, em referência a Marcia Abrahão, que assumiu a reitoria da UnB no fim do ano passado.
João Manuel Cunha de Andrade conhece bem o problema. Ex-aluno de Antropologia da UnB, ele dedicou seu projeto de conclusão de curso ao tema: analisou a conivência da Universidade de Brasília e da Universidade de São Paulo com relação ao uso de maconha. A conclusão é de que, em ambos os casos, existe uma subcultura que valoriza o uso da droga.
“Algo que reparei é que esses alunos não avançam muito. Acabam abandonando o curso, mudando de área ou viram alunos profissionais”, diz João Manuel. Para ele, o elemento social é importante na difusão da droga. “O uso da maconha cria uma sociabilidade maior dos alunos dentro da universidade”.
A banalização do uso de drogas acaba por criar espaços informalmente reservados para a prática. É o que acontece na UFG (Universidade Federal de Goiás).
Marcos Vinícius Araujo é formado em Publicidade e Propaganda pela UFG (Universidade Federal de Goiás). Ele diz que os espaços dos alunos sempre foram “respeitados” na universidade. “Sabíamos onde as pessoas fumavam maconha e quem não quisesse não iria ali. Os alunos também não fumavam em qualquer espaço”, conta. Na opinião de Araujo, as instituições de ensino superior deveriam “levantar o debate sobre o uso de drogas e promover ações de prevenção, já que este tema sempre permeia as pesquisas dentro das universidades”.
Uma aluna de Psicologia que prefere não se identificar diz que o uso de maconha é comum no Campus Avançado de Catalão. “O consumo acontece em espaços mais reservados onde tem árvores, mas todo mundo sabe o que está acontecendo por causa do cheiro. Ocorre principalmente após o almoço e no intervalo entre as aulas.” Ela diz que desconhece iniciativas da direção da universidade para combater o consumo de drogas dentro dos campi.
O jornal O Popular, o principal de Goiás, relatou, em 2015, que o consumo e o tráfico de drogas parecem ocorrer livremente na universidade.
Na UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), a situação é similar: uso de drogas, conivência dos agentes de segurança e queixas sobre o cheiro de maconha.
“Já tive conversas com vigilantes que diziam que eles apesarem de se incomodarem, não podem fazer nada”, diz um aluno de Engenharia Sanitária e Ambiental que prefere não se identificar.
Ele diz que, recentemente, um caso específico tem causado incômodo: “É o consumo da maconha dentro do Centro Acadêmico de Geografia. O que me deixa mais intrigado é que o cheiro da maconha se alastra no bloco inteiro e nunca vi a instituição fazer algo sobre isso.”
Tiago Brito Ferreira, que estudou Economia na UFMT, confirma: “Já presenciei caso de pessoa fumando maconha meio dia ao lado da fila do RU”. Ela diz que o consumo de maconha também é comum nos fins de semana – e não só por alunos.
Em março deste ano, um aluno da UFMT foi preso ao comprar droga. Segundo ele, a droga seria dividida com outros três colegas da universidade.
A tolerância com a maconha parece ser comum também na UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul). Uma aluna de Letras que prefere não se identificar diz que o cheiro de maconha já chegou a atrapalhar suas aulas. “O que me irrita é estas pessoas fumando tranquilamente dentro da Universidade como se fosse "normal" e liberado”, afirma.
Já Everton Rodrigues é mais comedido: “Não é tão comum ver o uso de maconha na área comum da universidade. Eu mesmo posso contar nos dedos de uma mão as vezes que presencial algo nesse sentido”.
Everton, que é membro do atual DCE (Diretório Central dos Estudantes) da UFMS , diz que a maioria dos alunos é contra o uso de drogas no campus, e que isso também se refletiu na eleição deste ano: chapas que adotaram uma postura mais tolerante com o uso de entorpecentes foram derrotadas.
Região Norte
Estudante do 5º semestre de Psicologia da UFPA (Universidade Federal do Pará), Renata Araujo, 30, testemunha o consumo de maconha dentro do campus, em Belém, diariamente. O consumo se acentua nas festas. “Nossa faculdade fica perto da orla para o rio Guamá e, então, usam muito à beira do rio”, conta.
Técnico-administrativo há dois anos na UFPA, Eder Pantoja, 28, que atua em Salinópolis, fala sobre o consumo de drogas, como maconha e cocaína, em Belém, onde já estudou. “Alunos geralmente usam salas vazias durante à noite, áreas periféricas aos campis e principalmente banheiros.”
“O consumo é muito frequente. Vimos vários amigos consumirem do nosso lado e a venda é muito grande porque há quem compre. Em festa da própria universidade a venda é frequente”, completa Renata.
Segundo Pantoja, o acesso livre para entrar na área da universidade também é um agravante. “Alunos geralmente são os mais vulneráveis. É facilmente observado que pessoas estranhas ao ambiente acadêmico estão fazendo uso e comercializando (drogas) também.”
Além de alunos, servidores e professores também usam substâncias ilícitas internamente, denuncia Renata. Para ela, o consumo de drogas no ambiente acadêmico é prejudicial ao andamento dos estudos.
“Às vezes alunos entram drogados na sala e atrapalham o estudo”, reclama. “A universidade não faz nada. Não tem como lidar com isso, pois eles são os próprios usuários”, lamenta.
Pantoja conta que nunca viu uma ação que proibisse a prática. “Geralmente o uso que é feito em ambientes externos das salas de aula, onde todos podem ver, mas ninguém faz nada. Todos acabam fazendo 'vista grossa'.”
Estudante de Jornalismo no campus Senador Arthur Virgílio, João Gomes fuma cigarro de maconha dentro e fora da universidade. No ambiente acadêmico, em Manaus, ele conta que o consumo é feito diariamente - às vezes, acontece escondido e outras ao ar livre perante o público, perto de corredores e de salas de aula.
“Para alguns funcionários já é até normal, mesmo porque a UFAM está dentro de uma reserva florestal. O local tem muito mato e muitas trilhas que acabam propiciando o uso de maconha”, observa Gomes. Em festas, ocorre o uso das chamadas “drogas mais pesadas”, como cocaína, além das lícitas – bebida alcoólica e tabaco – de acordo com o estudante.
Guardas da segurança terceirizada da UFAM chamam a atenção de alunos, mas Gomes desconhece casos que são encaminhados à direção ou que tenham gerado alguma punição. Para Gomes, “é muito importante descontruir o uso da maconha dentro do campus, principalmente por ser um local de expansão do conhecimento”.
Já o estudante de Comunicação Social Lucas Vitor Senas diz que, por ser asmático, sofre com o cheiro da fumaça do cigarro de maconha. “A universidade é um lugar de todos, convivemos com várias pessoas ali. Se existem regras, devem ser obedecidas”, queixa-se.
O policiamento internamento também é debatido na universidade em razão de casos de assaltos e tentativas de estupro. Mas o assunto divide opiniões na comunidade acadêmica. Tanto João quanto Lucas desconhecem ações específicas por iniciativa da universidade para fiscalizar e coibir o consumo de drogas internamente.
Respostas
A Universidade de Brasília informou, por meio de nota, que a instituição “pauta sua conduta pelo estrito cumprimento da lei, sem se descuidar dos aspectos humanos, sociais e de saúde pública que o assunto requer”. Segundo a universidade, os agentes de segurança tem como prioridade “prevenir e orientar” .
A UFMS, por sua vez, assegura que o tema é prioritário, e afirma promover “ações socioeducativas de acompanhamento e conscientização no foco aos estudos”. Neste semestre, a instituição está “debatendo assuntos como depressão e suicídio e a relação desses temas com o uso de drogas”.
A Universidade Federal do Amazonas alega que “vem buscando meios para orientar a comunidade acadêmica sobre o uso de ilícitos em suas dependências”. A UFAM está produzindo uma campanha de conscientização sobre o tema, “conforme a orientação de profissionais de áreas multidisciplinares e representantes do próprio corpo acadêmico”
A UFG disse que a atual gestão estabeleceu uma política de segurança para resolver, dentre outros problemas, “questões relacionadas ao tráfico e consumo de drogas na UFG”. O plano inclui uma parceria com a Polícia Federal, o uso de câmeras de monitoramento e um reforço na vigilância motorizada, além da instalação de centrais de seguranças em todas as unidades.
As demais universidades citadas nesta reportagem não responderam à Gazeta do Povo.
O que diz a lei
A lei de drogas em vigor no país é de 2006. Embora seja mais branda com o usuário do que as normas anteriores, ela continua tratando como crime o porte e o compartilhamento de drogas. A diferença é que o usuário não é levado para a cadeia na primeira oportunidade. Em vez disso, deve prestar serviços à comunidade ou passar por cursos educativos.
Esta é a punição reservada a quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal”.
No ambiente universitário, entretanto, outros crimes ocorrem. O de “oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem”, por exemplo, pode gerar até um ano de prisão.
As penas são elevadas em até dois terços se os crimes acontecerem em estabelecimentos de ensino.
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