Apesar de ter sido vista pelo movimento negro como uma decisão histórica, a obrigatoriedade de divisão proporcional de recursos dos fundos partidário e eleitoral às campanhas de candidatos negros provocou um dilema para as siglas e gerou apreensão entre os movimentos de igualdade racial dos partidos. Eles não querem que ocorra com os negros o que ocorreu com as mulheres em 2018, quando os partidos utilizaram laranjas apenas para cumprir a cota feminina nas eleições.
Internamente, caciques partidários admitem que devem burlar essa determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ratificada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), utilizando-se como brechas a falta de regulamentação e falta de tempo para instituir as cotas raciais já nas eleições deste ano. Embora a aplicação imediata da interpretação do TSE sobre distribuição de recursos seja vista como um avanço, ela é tida como ampla demais, exigindo um aperfeiçoamento em curto prazo para evitar brechas.
O receio dos movimentos de igualdade racial nos partidos é que, sem parâmetros claros, a reserva beneficie candidatos que não necessariamente militam no movimento negro (um candidato se identifica como negro, por exemplo, apenas para assegurar recursos de campanha. Outro temor é que os partidos alijem integrantes da chamada negritude partidária para aumentar repasses a outros candidatos mais bem quistos pelas direções partidárias. E existe até a possibilidade de que a siglas contabilizem como gastos dos movimentos negros custos ocorridos coletivamente com outros integrantes do partido (exemplo: um panfleto de um político branco ao lado de um negro ser contabilizado como custo da negritude).
“Já estávamos com tudo planejado para as eleições de 2020, mas agora, em vários municípios, os partidos correram atrás de candidatos negros simplesmente para se adequar à essa norma”, admite o coordenador do núcleo de igualdade racial do Cidadania, chamado Igualdade 23, Romero Rocha.
“Você precisa aperfeiçoar esse modelo. Do jeito que está, ele abre margem para fraudes. Há muitas coisas que podem dar errado. O problema é que a Corte que determinou a norma é branca; o STF é branco e nós do movimento negro deveríamos ter sido consultados”, diz Rocha.
Na última segunda-feira (14), lideranças dos movimentos negros de legendas como o PSB, PSDB, Cidadania, PT, PDT e DEM começaram a discutir estratégias visando pressionar o Supremo a modular essas novas regras. "Esse grupo teve início no governo temer e, entre encontros e desencontros, nós voltamos a nos juntar. Agora tendo a base formação inicial. Nosso entendimento e o do partido (Cidadania) convergem no mérito da pauta, mesmo com todo esse atabalhoamento na execução da norma, confio que conseguiremos fazer o melhor possível", complementou Rocha.
Temendo pelo desrespeito da decisão do TSE ratificada pelo Supremo, os movimentos negros dessas agremiações iniciaram um movimento suprapartidário e estudam duas possibilidades: ingressar com uma nova consulta ao TSE, destinada ao ministro Alexandre de Moraes, relator da decisão relacionada à reserva de recursos às candidaturas negras; ou um aditamento à ação no Supremo que trata sobre o tema justamente para modular a norma.
Como ficou a regra de distribuição de recursos da cota racial eleitoral
Em agosto, o TSE decidiu que os fundos públicos e tempo de TV destinados as campanhas eleitorais têm de ser divididos proporcionalmente entre candidatos negros e não negros. Por exemplo: se o partido tiver 30% de candidatos negros, 30% dos recursos devem ser distribuídos a essas candidaturas. Ou se 40% das candidatas mulheres fizerem parte do movimento negro, 40% dos valores destinados às candidaturas femininas, devem ser investidos em candidatas negras.
O TSE decidiu que a norma valeria apenas para 2022, em razão do princípio da anualidade eleitoral – previsto no artigo 16 da Constituição Federal (toda mudança no processo eleitoral passa a valer em um período mínimo de um ano antes do pleito). Na semana passada, porém, o ministro do Supremo Ricardo Lewandowski determinou que a divisão proporcional passe a valer já para as eleições municipais de 2020.
Lewandowski já indicou que pretende referendar a decisão no plenário virtual do STF. O caso foi pautado para começar a ser julgado no próximo dia 25. “Para mim, não há nenhuma dúvida de que políticas públicas tendentes a incentivar a apresentação de candidaturas de pessoas negras aos cargos eletivos, nas disputas eleitorais que se travam em nosso país, prestam homenagem aos valores constitucionais da cidadania e da dignidade humana”, disse o ministro.
Partidos admitem que não vão conseguir cumprir
Um problema que será enfrentando pelos movimentos negros é a concentração excessiva de recursos na mão dos caciques partidários. Isso ficou latente nas eleições de 2018 e tende a piorar em 2020. Como as campanhas basicamente são financiadas com recursos públicos, o que se alega dentro dos partidos é que existem muitos candidatos para pouco dinheiro.
Por isso, a tendência é que os dirigentes partidários priorizem a destinação de recursos para os candidatos considerados mais competitivos não necessariamente para os integrantes de movimentos negros. Integrantes de partidos como o Progressistas, PL, DEM, PSC e Republicanos, por exemplo, admitem nos bastidores que dificilmente vão conseguir cumprir essa nova regra do TSE.
Um ofício interno do PSB obtido pela Gazeta do Povo ilustra bem esse dilema dos partidos. Em resposta a uma consulta feita pelo deputado federal Felipe Carreras (PE), após a decisão do TSE e de Lewandowski, o presidente nacional do partido, Carlos Siqueira, informou que a destinação de recursos será “negociada” entre os presidentes estaduais da sigla e os deputados federais.
Ele não citou a reserva ao movimento negro do partido, considerado um dos mais antigos e atuantes no país. “Esta presidência adotou como método negociar com os (as) presidentes estaduais, com a participação dos deputados federais, o valor que poderá ser sugerido para financiar campanhas eleitorais de interesse de cada parlamentar”, disse Siqueira na comunicação interna do partido.
Cota racial é vista como avanço, mas autoidentificação é problema
Além disso, como existe uma autoidentificação dos candidatos (que se declaram como negros ou pardos), é possível que políticos não negros se beneficiem da cota racial – principalmente entre aqueles considerados amplamente competitivos.
Uma sugestão dos movimentos negros é que o TSE obrigue os partidos a adotar a Portaria Normativa número 04 do antigo Ministério do Planejamento, que institui o “procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, para fins de preenchimento das vagas reservadas nos concursos públicos federais”. Com esse processo, o candidato passa por uma avaliação de banca antes de ser beneficiado com algum tipo de cota racial.
Mesmo diante de problemas e eventuais fraudes, a reserva de recursos destinadas aos candidatos negros é tida como um avanço histórico por políticos que sempre lutaram pela igualdade racial. Para o senador Paulo Paim (PT-RS), a medida pode ser classificada como “revolucionária”. “Com a decisão, eles [os partidos] vão ter que cumprir. Agora, acredito que os partidos vão cumprir essa norma. O partido que tiver resistência a ela vai ser chamado de racista. Isso é independente de visão ideológica”, diz Paim.
Para Irapuã Santana, doutor em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e ex-assessor do Ministro Fux no STF e no TSE, a mudança representa uma grande vitória para a população negra e para a população em geral. “A partir de agora, vários candidatos não somente vão ter condições de concorrer, mas em condições competitivas para se eleger”, analisa Santana, que é considerado uma das mais importantes vozes em prol da igualdade racial no país.
Sobre as possibilidades de fraudes, o especialista afirma que a própria Justiça Eleitoral e a sociedade civil têm intensificado as ferramentas de fiscalização e que isso vem coibindo a tentativa de burlar as normas. Pela lei, um partido pode ser proibido de receber o fundo eleitoral e partidário caso o TSE comprove que ele cometeu fraudes na utilização de recursos públicos. “Políticas públicas em geral são fraudadas, mas não necessariamente são ruins”, diz Santana.
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