Chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação direta de inconstitucionalidade que busca derrubar uma lei, aprovada em julho no Congresso e sancionada em agosto pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que permitiu à administração pública fazer doações de bens para entidades públicas e privadas durante todo o ano de 2022, inclusive no período eleitoral de campanha.
A lei foi aprovada pelo Congresso de forma relâmpago durante as discussões da chamada PEC dos Benefícios, que criou pagamento mensal de ajuda para caminhoneiros e motoristas, e ampliou, até dezembro deste ano, o valor do Auxílio Brasil e do vale-gás.
Os críticos apontam na nova lei um propósito eleitoral, que desequilibra a disputa, não só em favor de Bolsonaro, mas também de governadores e deputados a ele ligados que poderão conceder outras benesses durante a campanha.
Esse tipo de conduta é expressamente proibido pela Lei das Eleições (9.504/1997), que diz, em seu artigo 73, parágrafo 10, que "no ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior”.
O Congresso não mexeu nessa lei, mas a contornou por meio de uma alteração em outra, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), de 2022, que contém as regras gerais para gastos do dinheiro público. Ficou estabelecido na LDO que “a doação de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública a entidades privadas e públicas, durante todo o ano, e desde que com encargo para o donatário, não se configura em descumprimento do § 10, do art. 73, da Lei nº 9.504, de 1997”.
A PEC dos Benefícios, promulgada ainda em julho pelo Congresso, também driblou a proibição da lei eleitoral, ao reconhecer um estado de emergência neste ano, “decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais dela decorrentes”.
Para justificar a possibilidade de doações durante a campanha eleitoral, parlamentares ainda argumentaram que elas serão “onerosas”, ou seja, implicarão custos para quem recebe. Na discussão da matéria, eles disseram que o objetivo é possibilitar aos governos federal e estaduais doarem tratores ou ambulâncias para prefeituras, máquinas agrícolas para cooperativas rurais ou redes de pesca e tanques para associações de pescadores, por exemplo.
“Essas doações são importantes para o país – são materiais que estão se depreciando, que estão se acabando – porque vão fazer com que possam chegar na ponta para quem precisa”, disse, na discussão da proposta, o relator, deputado Carlos Henrique Gaguim (Republicanos-TO). “Nós temos que mudar o que está lá na Lei Eleitoral. A Lei Eleitoral é que está errada”, acrescentou depois o deputado Hildo Rocha (MDB-MA).
Apesar de protestos de parlamentares do PT, PSB, Cidadania e Novo, principalmente, a proposta foi aprovada em menos de 20 minutos, com ampla adesão do Centrão, e em votação simbólica e não nominal, que permitiria a identificação de como cada um votou.
Agora, a novidade chegou ao STF numa ação da Rede, que aponta problemas não só na forma de aprovação – a mudança foi aprovada como um “jabuti”, ou seja, dentro de outro projeto de lei do governo que redirecionava verbas da área de ciência e tecnologia –, mas, sobretudo, no próprio conteúdo, que contraria a Lei Eleitoral e o princípio de igualdade de oportunidades na disputa eleitoral.
“A livre doação de bens a entes privados em pleno período eleitoral abre margem desarrazoada para a desigualação entre candidatos ocupantes de mandatos eletivos e candidatos não ocupantes de mandato eletivo, evidenciando o abuso do poder político e econômico, e trazendo prejuízos ao pluralismo político, na medida em que favorece a perpetuação do grupo político que está no poder”, argumenta a Rede.
Nunes Marques é o relator do caso das doações no STF
A ação foi protocolada no STF no último dia 5 e foi sorteada para a relatoria do ministro Kassio Nunes Marques. A Rede pediu a ele uma decisão liminar individual para suspender de imediato a liberação das doações, uma vez que já podem estar sendo realizadas Brasil afora. O ministro, no entanto, ainda não despachou no processo e não há perspectiva de movimentação.
Em geral, em casos urgentes, o ministro também pode pedir manifestações de órgãos envolvidos, como o Congresso e a Presidência, antes de decidir monocraticamente ou para levar o caso ao plenário, num rito abreviado. Nada disso foi feito.
Políticos beneficiados podem ser acusados de abuso de poder
Para o promotor Igor Pinheiro, professor e autor de diversas obras na área de Direito Eleitoral, ainda que não seja declarada a inconstitucionalidade da lei, será possível ao Ministério Público ou a partidos acusar de abuso de poder políticos que se beneficiarem eleitoralmente dessas doações para se reeleger.
“Não tenho a menor dúvida de que se estivéssemos falando de um prefeito, que criasse benefícios sociais, que está dando dinheiro para seus munícipes, ele seria cassado. A jurisprudência do TSE é farta de exemplos nessa linha. E a legislação eleitoral tem norma nesse sentido, dizendo que se você distribui gratuitamente bens e benefícios no ano eleitoral, isso pode dar cassação de registro de candidatura ou de mandato”, diz.
Segundo ele, bastaria ao MP ou a um partido demonstrar que houve má-fé e combinação entre políticos para uso eleitoral dos benefícios e doações. Se eles falarem neles para pedir voto, ficaria ainda mais escancarado o propósito eleitoral.
Pinheiro avalia que, neste ano, a PEC dos Benefícios, a mudança da LDO e também uma lei aprovada no Congresso, mas já derrubada pelo STF, que permitia ao governo elevar gastos com publicidade, criaram uma situação peculiar, de “institucionalização de medidas que desequilibram o processo eleitoral”.
“Isso tudo traz reflexo imediato na escolha das pessoas mais carentes. E aí a estratégia que se tem utilizado é fazer o Congresso aprovar o benefício, via emenda ou mudança na LDO, para despersonalizar. Estratégia bem elaborada, mas não impede que se declare a inconstitucionalidade”, afirma.
O PT, que tem como candidato ao Planalto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao menos por enquanto, não pretende acusar Bolsonaro e seus aliados no Congresso, perante a Justiça Eleitoral, de abuso de poder em razão da PEC dos Benefícios. O partido também votou a favor da medida e entende que a ajuda era necessária no momento de inflação alta.
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