Vista como uma ação eleitoreira pela oposição, a PEC dos Benefícios pode trazer problemas jurídicos à campanha de Jair Bolsonaro| Foto: Joédson Alves/EFE
Ouça este conteúdo

A provável aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) 1/2022, chamada de PEC dos Benefícios, pode não apenas ser derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como também motivar processos contra a pré-campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

CARREGANDO :)

O clima no Palácio do Planalto e na base do governo no Congresso é pela aprovação da PEC, e o adiamento da votação em plenário nesta quinta-feira (7) não muda essa percepção. Caso isso ocorra, o partido Novo promete ingressar com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no STF, onde a proposta pode ser revogada por uma liminar monocrática e na votação em plenário.

A Gazeta do Povo conversou com especialistas que partilham do entendimento de inconstitucionalidade da PEC sob diferentes aspectos, como vício de iniciativa, ausência de justificativa para decretar o estado de emergência, e violação de princípios constitucionais tanto com relação ao exercício da democracia e princípio democrático, quanto em relação ao sistema financeiro e tributário.

Publicidade

Os especialistas também entendem que a própria campanha de Bolsonaro pode ser questionada no TSE pela chamada "conduta vedada", um conjunto de ações proibidas por ter a capacidade de interferir na lisura e no equilíbrio das eleições, ou por abuso de poder político e econômico. As possíveis punições poderiam resultar em cassação do registro ou até do mandato, caso seja reeleito.

Quando o Novo pretende entrar com uma ação contra a PEC dos Benefícios

O Novo vai aguardar a aprovação da PEC e sua promulgação pelo Congresso para entrar com uma ação no STF. O líder do partido na Câmara, deputado Tiago Mitraud (MG), pré-candidato a vice-presidente na chapa com o empresário e cientista político Felipe d'Avila, explica que a estratégia jurídica está sob análise desde a tramitação no Senado, onde já foi aprovada.

"É algo que precisa ser feito após a promulgação, que é o que, de fato, caracteriza a inconstitucionalidade. E, ao nosso ver, ela claramente desrespeita os princípios constitucionais que regem as eleições e embasam a lei eleitoral", afirma.

Um dos motivos que sustentarão a ADI elaborada pelo departamento jurídico do Novo é a decretação do estado de emergência por PEC. "O estado de emergência criado é fictício, não tem a previsão e não segue o rito de um estado de emergência de fato. É como se o Congresso estivesse criando outra coisa com outra nomenclatura sem ter a atual previsão. Isso está sendo usado somente para dar um verniz de constitucionalidade para algo inconstitucional", diz Mitraud.

Publicidade

O argumento principal elaborado pelo partido, porém, é de que, sob o pretexto de fazer uma série de bondades, a PEC fere a legislação eleitoral. "O Brasil vai se juntar a Ucrânia e a Rússia como os únicos países que estão em estado de emergência. Nenhum outro país decretou estado de emergência por isso e a Constituição é clara no que tange às prerrogativas de proteção ao pleito e essa PEC fere diretamente essas regras", explica.

No decorrer da tramitação que ainda resta à PEC na Câmara, o Novo não descarta adicionar outros elementos à ADI a ser ingressada no STF, afirma Mitraud.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Quais as chances de o STF derrubar a PEC

O advogado Guilherme Gonçalves, sócio da GSG Advocacia e membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), entende que a PEC pode ser derrubada no STF por diferentes aspectos, principalmente pela análise técnica do mérito.

"Se analisarmos sob o prisma exclusivamente técnico, sem nenhuma dúvida ela pode ser revogada. E como tem um histórico de enfrentamento institucional entre a atual Presidência [da República] e o STF, os ministros podem fazer juízo político", pondera.

Publicidade

O advogado tacha a PEC de um "festival de inconstitucionalidades", a começar da competência originária para reconhecer e decretar o estado de emergência, o que cabe apenas ao presidente da República, não ao Congresso. "A decretação viola o princípio da repartição entre poderes. É o Legislativo afrontando competência originária do Executivo", destaca.

O vício de iniciativa não é o único alerta feito por Gonçalves. Ele também alerta que a PEC atenta contra a legislação eleitoral ao criar o auxílio aos caminhoneiros, por exemplo. A lei permite o pagamento de benefícios que já estiverem sendo desenvolvidos em anos anteriores, estejam devidamente autorizados e orçados ou que já estejam sendo praticados em período eleitoral com lei autorizativa para o ano.

A criação de benefícios encontra amparo em casos específicos de exceção, como o próprio estado de emergência. O problema é que não há a justificativa para isso, pondera o advogado Renato Ribeiro, sócio da Ribeiro de Almeida & Advogados Associados e coordenador acadêmico da Abradep.

"Não existe, de fato, a situação de emergência. Não temos nenhuma calamidade pública, nenhuma emergência sanitária e nenhuma situação que justifique, ainda que minimamente, a adoção desses dispositivos porque, afinal de contas, estamos a tratar de duas questões principais: uma é uma questão no âmbito internacional, a guerra travada entre Ucrânia e Rússia, que o Brasil não tem nenhuma participação direta", destaca.

A situação conjuntural e internacional tem elevado os valores do petróleo e de hidrocarbonetos de forma geral no planeta, não apenas no Brasil. "O início da guerra foi deflagrada há mais de 100 dias, não é emergência e não é um conflito que, nem de longe, opõe o Brasil a um dos países e o colocaria em conflito com algumas das partes envolvidas", sustenta.

Publicidade

Por esse motivo e por outros entendimentos de inconstitucionalidade, Ribeiro concorda que o STF poderia julgar a PEC inconstitucional. "A depender de quem será o relator, ela já pode até ter sua eficácia suspendida por liminar. Eu acho que, no mundo jurídico, a imensa maioria dos juristas têm claro entendimento que essa PEC é inconstitucional, mas muitos farão fake news e vão associar a suspeição dos efeitos dessa emenda à Constituição a qualquer teoria conspiratória envolvendo os ministros do STF", diz.

Qual é a lógica de inconstitucionalidade da PEC sob a ótica financeira

A professora de direito financeiro e direito econômico do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil) Marina Macedo, advogada do escritório Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados, entende que a PEC dos Benefícios também é inconstitucional por violação de princípios do sistema financeiro.

Para ela, a PEC agride duas emendas constitucionais anteriores, a 95/2016, que trata do teto de gastos, e a 109/2021, que concedeu às administrações subnacionais mais cinco anos de prazo para pagamento de seus precatórios. "O conflito da inconstitucionalidade é isso. Hoje, essa PEC é inconstitucional em razão de outras duas emendas realizadas com o viés de controle do endividamento público", diz.

Na prática, o Congresso propõe uma nova PEC para afastar outras, explica Marina. "A PEC do teto de gastos foi criada justamente para controlar o endividamento do Estado e, agora, nós criamos uma PEC para afastar justamente um aumento eleitoral. Logo, o que vemos é uma medida justamente eleitoreira, ou seja, há uma tentativa de afastar a organização do orçamento e dos custos do Estado para fortalecer uma determinada campanha política", critica.

A PEC dos Benefícios também fere a emenda constitucional dos precatórios por abandonar toda a necessidade de planejar, analisar os resultados fiscais e a trajetória do endividamento público previstas, desabafa Marina. Para ela, o Congresso e o Planalto abrem um precedente muito grave ao dispor sobre o estado de emergência.

Publicidade

"O que é emergência? Qualquer um poderá tratar sobre emergência? E o que é emergência do ponto de vista do impacto orçamentário? O Brasil avançou muito com a Lei de Responsabilidade Fiscal e o controle das finanças. Houve um amadurecimento muito grande do Estado brasileiro desde a aprovação da lei. Então, é com muita tristeza como professora de direito financeiro que vejo essa situação, pois é nítido o intuito político desta emenda e os prejuízos que ela pode vir a causar ao Brasil", comenta.

Para a especialista, o potencial descontrole orçamentário e das contas públicas provocado pela PEC pode trazer inúmeros prejuízos, desde a ausência ou da perda de credibilidade internacional brasileira e o endividamento descontrolado do Estado, que pode vir a estimular a emissão de moeda e assim, aumentar o processo inflacionário.

"A ausência de controle do endividamento poderá gerar redução ainda maior na distribuição de renda, principalmente pelo financiamento de serviços públicos essenciais como saúde e educação", analisa Marina. "O que nós estamos vendo é um desespero do governo atual em tentar evitar simplesmente a alternância de poder, e é muito grave essa situação de utilizar o direito financeiro para isso", complementa.

O que a campanha de Bolsonaro argumenta sobre as contestações

A coordenação eleitoral da pré-candidatura de Bolsonaro discorda das diferentes contestações jurídicas que podem vir a ser feitas à PEC no STF ou à campanha no TSE. O entendimento é de que tramitação por emenda à Constituição ajuda a dar respaldo à redação proposta, incluindo o que diz respeito ao estado de emergência.

A possibilidade de o STF derrubar a PEC sob o entendimento de que o governo e a base tentaram driblar a legislação eleitoral causam receio entre alguns interlocutores do governo, que não descartam contestações por ministros devido à decretação do estado de emergência pelo Congresso e não por decreto presidencial. No Congresso, alguns aliados assumem que essa foi uma estratégia política e jurídica encontrada para criar o auxílio aos caminhoneiros.

Publicidade

Há uma confiança no governo, porém, de que as contestações serão superadas. Inclusive, há uma percepção no Palácio do Planalto de que a PEC será avalizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que abriu na terça-feira (5) um processo para analisar um pedido feito pelo Ministério Público (MP).

No pior dos cenários, há um entendimento no governo de que podem ficar impossibilitados de pagar o "voucher-caminhoneiro". O MP junto ao TCU pediu à Corte a suspensão do benefício, também conhecido como "pix caminhoneiro", por inexistência de uma base de dados consolidada para definir quais caminhoneiros poderiam receber os recursos.

O subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado solicitou que o governo seja impedido de criar programa, até que o TCU decida definitivamente sobre o tema. Além disso, Furtado ressalta que a lei eleitoral proíbe a implementação de novos benefícios em ano de realização de eleições.

Na hipótese de contestação no STF, a Advocacia-Geral da União (AGU) está de sobreaviso para defender a PEC. Sobre a hipótese de processo à candidatura de Bolsonaro, a coordenação jurídica ainda não analisou uma eventual estratégia para a defesa no TSE.

Votação da PEC em plenário é adiada por falta de quórum

O presidente da Câmara Federal, deputado Arthur Lira (PP-AL), se viu obrigado a adiar a votação da PEC dos Benefícios por causa do baixo quórum no plenário. A proposta prevê R$ 41,25 bilhões em despesas excepcionais destinadas ao pagamento de uma série de benefícios sociais e econômicos até 31 de dezembro de 2022.

Publicidade

A expectativa era votar e aprovar o texto em dois turnos nesta quinta-feira, mas Lira encerrou a sessão por vislumbrar riscos à aprovação. Para passar no plenário da Câmara, uma PEC precisa de ao menos 308 votos, mas um requerimento discutido logo antes (para encerrar as discussões e iniciar a votação da proposta) teve apenas 303 favoráveis.

"Não vou arriscar nem essa PEC nem a próxima [PEC, que cria um piso nacional para profissionais da enfermagem] com este quórum na Câmara hoje, 427 [presentes]. Nada mais havendo a tratar, vou encerrar os trabalhos, antes convocando sessão deliberativa de extraordinária para a terça-feira, 12 de julho, às 13h55", disse o presidente da Câmara antes de encerrar a sessão.

Horas antes, a PEC passou fácil na comissão especial da Câmara, com 36 votos favoráveis e só um contra. Os principais pontos da proposta são aumento de R$ 200 no Auxílio Brasil (que passaria a R$ 600), alta de 100% no vale-gás, concessão de voucher de R$ 1 mil mensais aos caminhoneiros e criação de uma bolsa-combustível de R$ 200 para taxistas. A PEC dos Benefícios já foi aprovada pelo Senado, no último dia 30, também com um único voto contrário.