A estratégia eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PL) de recomendar ao eleitorado "comparações" entre as gestões petistas e a sua atingiu uma nova fase na campanha eleitoral: a de associar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a presidentes e ditadores de esquerda na América Latina.
Desde o dia 16, quando a campanha oficial começou, Bolsonaro associou Lula e também a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) a gestões de esquerda de seis países da América Latina: Argentina, Cuba, Chile, Colômbia, Nicarágua e Venezuela.
As críticas a países comandados pela esquerda começaram ainda no lançamento oficial da campanha, em Juiz de Fora (MG), no último dia 16, quando Bolsonaro chamou o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, de "amigo" de Lula. O candidato à reeleição ainda afirmou que Ortega "anda prendendo padre e fechando igrejas".
Em encontro com prefeitos no dia seguinte, Bolsonaro disse, sem citações nominais a Lula, que "teve a participação desse outro candidato" na eleição de Ortega na Nicarágua. Também disse que "esse outro candidato" apoiou as eleições dos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela. No mesmo evento, o candidato falou que 40% da população argentina entrou em linha da pobreza, definiu como "complicada" a situação econômica no Chile (país comandado pelo esquerdista Gabriel Boric) e criticou a "guinada para a esquerda" na Colômbia, que elegeu o ex-guerrilheiro Gustavo Petro.
O atual presidente do Brasil reforçou o discurso em live realizada na última quinta-feira (18). Ele disse que "o povo venezuelano é mais pobre até do que o povo haitiano". Falou que "o socialismo não perdoa ninguém", e comentou que cubanos estão sendo condenados por protestar, para, na sequência, dizer que, no Brasil, o eleitor tem "dois nomes". "A escolha é importante, hoje em dia, pelo que tem pela frente, você tem dois nomes. Você tem que achar qual é que vai fazer melhor ao seu país, mas faça comparações", disse Bolsonaro.
Em outro trecho da transmissão, ele afirmou lamentar pela crise econômica na Argentina e afirmou que torce para que a economia no país chegue a um "bom termo". Porém, disse duvidar que isso aconteça "tendo em vista a filosofia da esquerda". Segundo Bolsonaro, "onde a esquerda mete a mão dá problema".
Na mesma live, fez nova associação de Ortega como "amigo" de Lula e criticou o fechamento de igrejas, rádios e censura à imprensa na Nicarágua.
Bolsonaro também citou algumas prisões e condenações decorrentes de protestos em Cuba que chegam a até 25 anos de reclusão. "Quero deixar claro que o cara que disputa aí uma eleição [Lula] já foi presidente do Brasil por oito anos e não fala nada sobre isso. Com toda a certeza ele defende essas penas de prisão naquele país. Lá não existe liberdade, e vai um picareta desses assinar um manifesto pela democracia, e tem gente que acredita nesse manifesto pela democracia", criticou.
O presidente também disse que o petista apoiou a eleição do presidente da Colômbia, Gustavo Petro, e citou que o colombiano foi um guerrilheiro, "como Dilma". O presidente brasileiro disse que, "assim como o Chile", a Colômbia era um "país acertadinho" economicamente, nos "direitos" e na "liberdade".
Bolsonaro disse que os "países citados" e seus chefes de Estado são, "em sua grande maioria", integrantes do "Foro de São Paulo". Citou que o presidente da Argentina, Alberto Fernández, visitou Lula quando este ainda estava preso, em 2019, comentou que o petista é "ligado" à ex-presidente e atual vice-presidente argentina, Cristina Kirchner, e disse que a economia argentina está indo "ladeira abaixo".
O presidente brasileiro afirmou que a inflação apenas em julho na Argentina subiu 7,4% e que o índice é maior que a previsão para o acumulado de todo o ano de 2022 no Brasil. Bolsonaro criticou o país por tributar em 33% a exportação de alguns itens, como o trigo, e disse que, apesar de pressões para ele também tributar exportações, prometeu não fazer isso com os produtos agrícolas.
O candidato à reeleição sugeriu ainda que, assim como a Venezuela, a Argentina pode enfrentar uma fuga de parte da população para outros países em razão da crise econômica.
Também foi sugerido por Bolsonaro que os eleitores comparem o Brasil com a Argentina. "E por quê? Escolhas. Escolheram errado", disse. "Lembro que, há poucos meses, eu estava apanhando porque o diesel na Argentina estava mais barato, e era verdade. Mas barato na canetada. E hoje a Argentina vive com problemas ainda de não garantir o fornecimento do seu diesel, porque o preço não é mais o que era há um tempo atrás", complementou.
A Gazeta do Povo pediu um posicionamento à assessoria de comunicação de Lula sobre os comentários de Bolsonaro, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
O que está acontecendo na América Latina que embasa as críticas de Bolsonaro
Na Nicarágua, um bispo católico crítico do regime ditatorial de Ortega foi preso na sexta-feira (19) junto com outras sete pessoas. Antes disso, a Igreja já tinha denunciado a prisão e desaparecimento de um sacerdote.
Além disso, a ditadura de Ortega ordenou o fechamento de rádios católicas. O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse estar "profundamente preocupado" com a situação no país e as recentes ações contra a Igreja Católica e organizações civis.
Em agosto do ano passado, Lula aconselhou Ortega a "não abrir mão" da democracia, em entrevista a uma TV mexicana. Em novembro, o petista minimizou a ditadura na Nicarágua e comparou o longo período de Ortega no poder ao da ex-chanceler alemã Angela Merkel.
"Temos que defender a autodeterminação dos povos. Sabe, eu não posso ficar torcendo. Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e o Daniel Ortega não?", questionou Lula. "Eu não posso julgar o que aconteceu na Nicarágua. No Brasil, eu fui preso", complementou.
As eleições na Nicarágua, realizadas em novembro, foram acusadas de fraudulentas pela oposição e pela comunidade internacional. O PT chegou a divulgar uma nota de apoio às eleições no país, mas depois ela foi apagada. A presidente nacional da legenda, Gleisi Hoffmann, desautorizou a publicação sob alegação de não ter sido submetida à direção do partido.
Sobre Cuba, a organização não-governamental (ONG) Defensores dos Prisioneiros denunciou no início de agosto que existem 1.002 presos "políticos e de consciência" no país que foram condenados à prisão ou sofrem "limitação de liberdade" sem qualquer "supervisão judicial".
A ONU condenou as prisões arbitrárias em Cuba e exigiu a liberação de manifestantes que protestaram contra o regime ditatorial. Um alemão foi condenado a 25 anos de prisão por filmar protestos em Havana, capital do país. Em novembro passado, Lula relativizou a repressão cubana. "Essas coisas acontecem no mundo inteiro", comentou.
A respeito da Venezuela, Lula apoiou a reeleição de Chávez e a eleição de Maduro. Em 2012, Lula disse a Chávez que "sua vitória será nossa vitória" em vídeo enviado para o encerramento da reunião do Foro de São Paulo, em Caracas.
Um ano depois, após a morte de Chávez, o petista apoiou o sucessor, Maduro. "Não quero interferir em um assunto interno da Venezuela, mas não posso deixar de dar meu testemunho sincero. Maduro presidente é a Venezuela que Chávez sonhou", afirmou Lula em uma mensagem divulgada em reunião do Foro de São Paulo, em Caracas.
Também procede a afirmação de Bolsonaro de que a Venezuela superou o Haiti como país mais pobre das Américas, bem como as falas do presidente sobre as crises econômicas no Chile e na Argentina.
A inflação chilena chegou a 13,1% nos 12 meses encerrados em julho, e o Banco Central do país não descarta recessão em 2023. Na Argentina, um estudo publicado pela Universidade Torcuato Di Tella aponta que cerca de 40% da população vive em domicílios pobres. A inflação projetada para este ano na economia argentina é acima de 90%, enquanto no Brasil o mercado espera por uma alta de 6,82%.
Por que o presidente associa Lula a governos de esquerda
Além de ser uma estratégia para convencer o eleitor a não votar em Lula e em candidatos do PT, a estratégia de Bolsonaro de citar países e ditaduras de esquerda também é uma tentativa de levar o petista a falar sobre pautas ideológicas em defesa de aliados ou do progressismo. O ex-presidente adotou como tática uma postura mais centrista, ciente de que seria provocado a falar sobre a ideologia progressista.
A campanha de Bolsonaro entende que o presidente se sai melhor em relação a Lula quando aposta em um discurso mais ideológico e conservador.
O especialista em relações internacionais Nicholas Borges, analista político da BMJ Consultores Associados, compreende as falas de Bolsonaro como parte da estratégia da campanha e entende como naturais as críticas e associações entre Lula e os demais governos de esquerda na América Latina.
"A política externa pode não decidir eleições. Mas, de certa forma, ela influencia. Essa estratégia de Bolsonaro é antiga para tentar atrair principalmente o eleitor de classe média", afirma.
O analista lembra que Bolsonaro já apostou em um discurso semelhante nas eleições de 2018. "Esse discurso de medo da Venezuela e outras associações é muito forte e típico, mas também precisa abranger o medo principalmente da classe média das questões socioeconômicas e de mobilidade social", diz Borges.
O especialista avalia, contudo, que a gravidade da crise econômica vivida por Chile, Argentina e outros países na América Latina está mais atrelada aos impactos da pandemia e da guerra na Ucrânia do que propriamente a políticas adotadas pelas gestões de esquerda.
"Todos os países da região enfrentam o aumento de inflação, o aumento dos juros tentando manter a competitividade de suas moedas, já que historicamente os Estados Unidos nunca subiram como tem subido suas taxas de juros. Os países da região são forçados a aumentar taxa de juros para manter a competitividade de suas economias, o que gera redução do poder de compra, do nível de salários e empregos", diz.
Quais as implicações das críticas em um eventual segundo mandato de Bolsonaro
Borges diz que, na hipótese de reeleição de Bolsonaro para mais quatro anos após as críticas a outros países, pode haver algum grau de constrangimento no curto prazo entre o Brasil e nações da América Latina.
"Obviamente poderia ter um constrangimento entre os principais parceiros da região, até porque os próprios líderes institucionais estão esperando essa possível mudança de poder. Por isso, alguns tratados e negociações ficam parados durante períodos eleitorais, pois tantos investidores privados e externos esperam alguns desdobramentos para avançar com algumas pautas", analisa.
Porém, Borges entende que o constrangimento seria superado pela relação pragmática do Itamaraty na política externa. O analista político não acredita que Bolsonaro mudaria as diretrizes de seu Ministério das Relações Exteriores, o que favoreceria a condução diplomática do atual chanceler, Carlos Alberto França, junto a países vizinhos.
"O que Bolsonaro percebeu é que uma postura muito mais pragmática na política externa é mais frutífera", diz. Para o analista, a própria necessidade de comércio entre os países geraria um pragmatismo diplomático natural após as eleições.
"A tendência, de fato, é por uma relação muito mais pragmática com todos esses países. O cenário de dependência econômica e lenta recuperação provocada pela pandemia e conflito na Ucrânia faz com que a integração latino americana possa ser uma das principais chaves para acelerar o crescimento econômico. Uma relação muito mais distanciada poderia trazer mais ônus do que bônus", diz Borges.
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