O debate sobre a forma de escolha do chefe do Ministério Público Federal voltou à tona, neste momento da campanha presidencial, depois que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) evitou se comprometer com a lista tríplice. Por este modelo, membros do MPF apresentam ao chefe do Executivo os três nomes mais votados pela categoria para assumir a Procuradoria-Geral da República (PGR). O candidato petista foi questionado sobre o assunto no Jornal Nacional.
“Quero deixar eles [procuradores da República] com uma pulguinha atrás da orelha. Primeiro preciso ganhar as eleições. Esse negócio de prometer as coisas antes de vencer as eleições é um erro”, disse o ex-presidente, acrescentando que, se for eleito, fará várias reuniões com o Ministério Público para discutir os critérios de seleção que precisam ser justos para ele e para o Brasil.
“Eu não quero procurador leal a mim. O procurador tem que ser leal ao povo brasileiro, ele tem que ser leal à instituição [...]. Para mim, o que precisa é dar segurança para o povo, como eu dei quando era presidente”, afirmou ele, que diz ter sido perseguido politicamente pelo MPF na Operação Lava Jato.
A declaração de Lula reflete ainda críticas recorrentes de que o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, protege o presidente Jair Bolsonaro (PL) de investigações e acusações – Aras foi escolhido à revelia da lista tríplice.
Nos bastidores, conselheiros de Lula na área jurídica cogitam a possibilidade de ele pedir uma lista sêxtupla, para que tenha mais opções de escolha. Uma das ideias é somar a lista tríplice, entregue a cada dois anos ao presidente pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a uma lista de três nomes indicados pelo Congresso, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Para interlocutores, Lula quer poder negociar a nomeação entre vários atores políticos e institucionais, não apenas ligados ao MPF.
Na bolsa de apostas, um dos mais cotados atualmente para assumir a PGR é o subprocurador e advogado de Lula na campanha Eugênio Aragão.
Constituição confere ao presidente da República o direito de livre escolha do PGR
A escolha a partir da lista tríplice não é obrigatória, não é prevista em lei nem na Constituição. Desde 2001, no entanto, havia se tornado uma tradição, tendo o próprio Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e seu sucessor, Michel Temer (MDB), escolhido a partir das indicações. A prática foi interrompida com Bolsonaro, que optou por ignorar a lista ao nomear Aras – também por isso, o atual procurador-geral sofreu oposição dentro do MPF.
Em 2019, Bolsonaro indicou Aras para seu primeiro biênio na PGR após uma arrastada negociação, que envolveu consultas a aliados no Congresso e a ministros do STF. O presidente queria um procurador-geral que não encampasse uma perseguição generalizada à classe política – pecha pregada ao ex-PGR Rodrigo Janot, em razão da traumática condução da Operação Lava Jato –, mas também que pudesse frear o ímpeto de setores do MPF avessos à liberalização da economia e ao avanço do agronegócio, por razões ideológicas ou objeções ambientais.
Aras, que desde o início da disputa, naquela época, colocou-se como um candidato conservador e avesso à lista, disse, numa entrevista à Folha de S.Paulo, que esse modelo de escolha “atrai para o âmbito do Ministério Público Federal os vícios naturais da política partidária, a exemplo do clientelismo, do fisiologismo, da política do toma-lá-dá-cá, inclusive, eventualmente, embora em nível reduzido conhecido, de corrupção, como ocorreu em alguns episódios da última gestão [de Janot], com prisão de procurador da República”.
No ano passado, ao criticar a gestão de Janot durante um seminário jurídico, o ministro do STF Gilmar Mendes disse que a escolha por lista foi um “desastre institucional”. “O procurador Aras agiu bem ao desmontar essa estrutura de força-tarefa”, afirmou, numa crítica à Lava Jato. Apesar das resistências internas, Aras foi aprovado com folga no Senado nas duas vezes em que foi indicado por Bolsonaro, inclusive com os votos da oposição. Nas sabatinas, Aras foi elogiado e cumprimentado pelos senadores por não “criminalizar a política”.
Caso Bolsonaro seja reeleito, muitos políticos próximos a ele apostam que ele escolherá como sucessora de Aras sua atual vice, Lindôra Araujo, que tem rechaçado várias tentativas de investigar o presidente e seus aliados, alegando falta de materialidade dos crimes apontados.
Até o momento, entre os candidatos à Presidência mais bem posicionados nas pesquisas de intenção de voto, Simone Tebet (MDB) foi a única a sinalizar que escolherá a partir da lista tríplice, caso eleita. “Uma das razões por que acho que a escolha do procurador-geral tem que estar na lista, e o presidente da República tem tantos poderes, [é que] ele não precisa tirar alguém da cartola que não esteja na lista”, disse a senadora numa sabatina em junho realizada pelo portal G1.
Na sua vez de ser sabatinado, Ciro Gomes (PDT) não se comprometeu com o modelo. “Eu vou buscar aquele que entre os titulados formalmente tenha aquilo que a Constituição pede: notório saber jurídico, reputação ilibada e capacidade de representar um Ministério Público que eu sonhei e ajudei a construir, e que está sendo desmoralizado pelos abusos, de omissão, como no caso do Aras, ou, porque embaixo, você não tem ideia do Brasil profundo que eu conheço.”
O que dizem defensores e críticos da lista tríplice
Atual presidente da ANPR, o procurador Ubiratan Cazetta diz que o modelo da lista é o mais transparente, porque só nele os candidatos se mostram publicamente, apresentam seus compromissos abertamente, de modo que os membros do MPF, que conhecem bem a trajetória de cada um dentro do órgão, avaliem se podem mesmo cumprir com seus planos.
“O outro modelo é opaco: não se sabe exatamente quem são os candidatos, quais seus compromissos e como são escolhidos. Então, para não nomear um amigo, mas sim alguém independente, isso só pode ser feito no modelo transparente”, disse à Gazeta do Povo.
Cazetta destaca que o modelo de lista é aplicado para escolher os chefes das 26 unidades do Ministério Público estadual, e também dos demais ramos do MP: Militar, Trabalhista e do Distrito Federal. Esse modelo não foi adotado para o MPF porque, até 1988, o procurador-geral também acumulava o cargo de advogado-geral da União, daí sua ligação mais próxima com o presidente, que o escolhia como qualquer outro ministro do governo.
Críticos do modelo, no entanto, ressaltam que a Constituição dá ao presidente livre escolha justamente para permitir que ele indique alguém alinhado com a política criminal que ele defendeu em sua eleição para o Executivo, e que foi referendada pela maioria dos eleitores. Também apontam o risco de que sejam escolhidos para a lista tríplice apenas aqueles candidatos propensos a oferecer aos procuradores o máximo de benesses para a própria carreira, adotando uma pauta corporativista distante dos interesses da sociedade.
O presidente da ANPR rechaça essas objeções, afirmando que, nos estados, não está comprovado que os chefes dos MPs, escolhidos pelo governador a partir da lista, só se preocupem com os interesses da carreira. Em relação à política criminal, alega que trata-se de uma questão definida pelo Congresso e que o PGR atua em observação à lei aprovada.
O advogado criminalista Davi Tangerino, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), concorda com o diagnóstico da ANPR. Para ele, o modelo de livre escolha permite a cooptação do procurador-geral, para que atenda aos interesses e proteja o presidente da República. Mas não considera que o único modo de evitar isso seja a indicação a partir da lista tríplice.
Ele não se opõe, necessariamente, ao modelo. Só considera que, caso o presidente não identifique nos nomes apresentados um perfil próximo da política criminal pela qual foi eleito, ele possa optar por alguém de fora dela. Isso porque um procurador-geral que, por exemplo, seja contrário ou favorável à criminalização do uso de drogas e ao armamento da população, pode ter influência no debate caso o STF venha a decidir sobre a constitucionalidade de políticas públicas relacionadas a esses temas – a PGR sempre pode pedir à Corte a revogação delas ou opinar em ações que as contestem. Além disso, tem poder administrativo para organizar o MPF de modo a priorizar ou não a atuação do órgão nesses campos.
“O Ministério Público é um órgão de Estado e a escolha da cúpula é do presidente com validação do Senado. Portanto, é totalmente legítimo que o presidente escolha quem seja alinhado com a política de Estado que aquele presidente imagina para o MP. Só que isso precisa ter dois cuidados: primeiro, é preciso ter transparência do que esse presidente espera desse procurador-geral, para que haja controle, inclusive do Senado. E dois: precisamos criar mecanismos para que se o procurador-geral for cooptado pelo presidente, não se crie um dilema institucional”, afirma Tangerino.
Entre esses mecanismos, já se discute no STF e no Congresso se é possível recorrer das decisões em que o procurador-geral arquiva investigações contra o presidente e seus aliados. Atualmente, quando a PGR considera que não há crime ou provas contra uma autoridade investigada, o arquivamento é quase obrigatório por parte do Supremo.
Há uma ação na Corte e uma proposta no Congresso para que essa decisão seja passível de recurso, de modo que a decisão final fique com o Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF), órgão administrativo de cúpula do qual fazem parte o procurador-geral e outros nove subprocuradores.
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