O retorno de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência da República deverá mudar a relação do Executivo com o Supremo Tribunal Federal (STF). Ministros, advogados e assessores ouvidos pela Gazeta do Povo preveem (ou ao menos esperam) uma relação mais diplomática do petista com a Corte, como se deu em seus primeiros governos. Também projetam uma proximidade, nos bastidores e fora dos autos, mais propensa a negociações para pautas de interesse da nova gestão.
Por outro lado, críticos do presidente eleito sempre lembram que, no auge da Lava Jato, Lula manifestou queixas em relação a vários dos ministros que permitiram sua condenação e prisão. O STF negou vários habeas corpus apresentados pela defesa para barrar as investigações e travar os processos contra ele, permitindo que ele fosse preso, em abril de 2018.
Em 2016, numa conversa privada com a então presidente Dilma Rousseff, interceptada pela Polícia Federal, e no dia em que foi conduzido coercitivamente para depor, Lula disparou: “Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada, um Superior Tribunal de Justiça totalmente acovardado, um Parlamento totalmente acovardado.”
Por isso, uma das apostas é que Lula nomeie ministros – ele terá direito a duas indicações em 2023 – mais alinhados politicamente, para não correr riscos de traição. “Creio que ele vai escolher pessoas absolutamente fiéis, com fidelidade canina às suas orientações. Alguém que não tenha compromisso nenhum com a Constituição, mas que tenha compromisso com Lula, para dar a ele maior viabilidade no exercício do poder. Acho que Lula não vai ter problema nenhum, vai ter domínio absoluto do Supremo”, diz o professor e doutor em direito da PUC-SP Adilson Dallari.
Hoje, interlocutores próximos de Lula garantem que ele não guarda mágoas e não vai buscar nenhum tipo de retaliação contra a Corte – afinal, foi o mesmo STF que o reabilitou politicamente, ao anular suas condenações, abrir caminho para o fim de todos os outros processos que respondia, e claro, torná-lo novamente elegível.
Lula teria como vantagem o fato de ter nomeado três dos atuais ministros (Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Dias Toffoli) e a disposição para uma boa interlocução com outros quatro nomeados pela ex-presidente Dilma (Rosa Weber, a atual presidente do STF, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin). O fato de os três últimos terem votado contra ele no STF no auge da Operação Lava Jato não impediria uma reaproximação.
“Esquece o passado. (Lula) vai renovar a independência e harmonia entre os poderes. E não pretende, absolutamente, em hipótese nenhuma radicalizar, respeitando a liturgia própria da relação de um chefe de Estado com o Judiciário”, diz o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do grupo Prerrogativas e próximo de Lula. “E vai conversar com Gilmar Mendes, com Dias Toffoli, com Luiz Fux. O Lula tem dito que ele não tem tempo para errar, em razão da expectativa que gerou de melhorar a vida do povo durante a campanha”, completa.
Decano, Gilmar Mendes terá papel importante na reaproximação
Nomeado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e hoje decano do STF, Gilmar Mendes é visto como peça fundamental nessa reaproximação. Apesar de inicialmente ter votado pela permissão da prisão de Lula, ao negar-lhe um habeas corpus em 2018, no ano seguinte foi o responsável por virar a jurisprudência que acabou com a prisão em segunda instância, o que possibilitou a soltura do líder petista.
A partir de 2020, o ministro passou a atacar a Lava Jato e liderou a fritura que levou o STF a declarar Moro parcial e enterrar de vez os processos contra Lula. Hoje, mantém relação amistosa com o governo, mas, sendo um dos ministros mais articulados em Brasília, é capaz de travar relações com todo o espectro político. E agora, o entorno de Lula sempre lembra que, entre 2008 e 2010, nos últimos anos que ocupou a Presidência, o petista manteve relação de alto nível com Mendes, que ocupava, na época, a presidência do STF.
A expectativa de reversão na relação entre Executivo e Judiciário é vista como impositiva por vários motivos. O primeiro é marcar uma diferença em relação a Bolsonaro, que sempre acusou a Corte de retirar seu poder no enfrentamento da pandemia, além de insultar e acusar alguns ministros por atuações políticas contra seu governo, contra si ou seus aliados – principalmente Alexandre de Moraes, com o inquérito das fake news; Luís Roberto Barroso, pela pressão junto ao Congresso contra a aprovação do voto impresso; e Edson Fachin, por ter anulado as condenações de Lula, e por declarações públicas indigestas contra o Executivo.
Outro motivo é que o entorno de Lula reconhece a dificuldade que enfrentará no início do novo mandato. Se de um lado terá, por parte do mercado, a cobrança por responsabilidade fiscal, por outro terá de atender demandas (que implicam gastos) de segmentos sociais que o ajudaram a se eleger e com os quais o PT mantém relação histórica de fidelidade: dos sem-terra a funcionários públicos de médio escalão, de sindicalistas e professores da rede pública, de estudantes universitários a grupos de esquerda ligados à cultura. Nesse sentido, evitar embates e derrotas no STF, que pode ser facilmente acionado para discutir praticamente toda e qualquer política pública importante, é visto como fundamental.
Contribui para essa necessidade o fato de Lula ter diante de si um Congresso onde a esquerda é minoritária. PT e partidos satélites ocuparão menos de um terço das cadeiras na Câmara e no Senado, o que obrigará Lula a buscar votos no Centrão, hoje com Bolsonaro. Eventuais insatisfações nesse último grupo na relação com Lula tendem a criar fissuras políticas que desaguam no STF. Daí a necessidade de evitar, com boa interlocução, opositores dentro da Corte.
De qualquer modo, eventuais iniciativas de Lula em políticas identitárias de esquerda, bastante cobradas pelos movimentos LGBT, negro, quilombola, indígena, etc. deverão sofrer forte oposição dentro do Parlamento – a direita cresceu e tende a acionar mais o STF.
Vice-presidente do STF, Barroso diz que Corte sempre vai desagradar
Atual vice-presidente do STF e que assume o comando da Corte em outubro de 2023, o ministro Luís Roberto Barroso, de viés progressista, considera natural que haja tensão entre a Presidência da República e a Corte. Após a vitória de Lula, neste domingo (30), a Gazeta do Povo questionou o ministro se ele espera uma relação menos “conturbada” do Supremo com o novo presidente, em comparação com Bolsonaro. Barroso respondeu que o tribunal sempre vai desagradar alguém.
“O papel de uma Suprema Corte é interpretar e aplicar a Constituição. O papel da Constituição é limitar o poder, sobretudo o poder das maiorias. De modo que sempre vai existir algum grau de tensão entre quem exerce o poder político majoritário, que é o caso do presidente da República, e quem tem o papel de conter esse poder, que é o Supremo Tribunal Federal. Portanto, assim é a vida, em todas as democracias. E essa tensão deve ser absorvida de maneira institucional e civilizada, como é nas democracias”, disse.
“O Supremo é chamado para arbitrar as questões mais complexas da vida brasileira. E, portanto, se tem uma tensão entre fazendeiros e comunidades indígenas, chega no Supremo e o Supremo arbitra. Um dos dois lados fica insatisfeito com a solução, o que faz parte da vida. Se tem uma questão ambiental que contrapõe ambientalistas e o governo, e o Supremo decide, um dos lados fica insatisfeito. Portanto, para bem ou para mal, nosso papel acaba sendo sempre o de desagradar alguma parcela da sociedade. De modo que a eficiência, a qualidade, a institucionalidade de um tribunal não podem ser julgadas em pesquisas de opinião, porque a gente está sempre desagradando alguém. O nosso papel é aplicar a Constituição. Nós não fazemos parte de um torneio de simpatia, e, portanto, aqui e ali, você tem que desagradar, é inevitável. Eu considero isso como um fato normal da democracia”, completou em seguida.
Novo ministro da Justiça também será relevante no diálogo com o STF
Por tudo isso, auxiliares de Lula no campo jurídico consideram essencial que ele nomeie um ministro da Justiça com capacidade política e sólida formação jurídica. Uma referência sempre lembrada nesse sentido é Márcio Thomaz Bastos, titular da pasta entre 2003 e 2007.
Um nome já cogitado para o posto é o ex-juiz federal e ex-governador do Maranhão Flávio Dino, que, assim como Thomaz Bastos, reuniria qualidades como experiência e amplo leque de relações no mundo político e jurídico. É algo que os próprios ministros do STF gostariam, pois consideram que o atual ministro, o delegado Anderson Torres, não tem diálogo com eles e é visto como alguém a serviço de Bolsonaro em seus conflitos com a Corte.
Outra escolha estratégica para azeitar a relação é a dos dois indicados para substituir Ricardo Lewandowski, que se aposenta em maio, e Rosa Weber, que deixa a Corte em outubro de 2023. É dado como certo que Lula consultará Lewandowski para definir seu sucessor. Mas é possível que apresente a ele nomes do mundo jurídico bastante conceituados no campo progressista e na academia – um diferencial é já ter relações consolidadas no STF.
Quem está cotado para assumir as duas novas vagas que surgirão no STF
Oficialmente, a campanha de Lula nega qualquer discussão, dele mesmo, acerca das escolhas. Mas na bolsa de apostas, hoje, estão bastante cotados o advogado de Lula, Cristiano Zanin, que o livrou de todos os processos criminais; o criminalista e professor da USP Pierpaolo Bottini, acadêmico de referência no direito penal; e o advogado e doutor em filosofia Silvio Almeida, teórico prestigiado na esquerda pela militância contra o chamado “racismo estrutural”.
Para a vaga de Rosa Weber, é bastante provável que Lula escolha outra mulher. Um nome já falado entre apoiadores é da advogada criminalista Dora Cavalcanti. De perfil garantista, foi sócia de Thomaz Bastos e, como advogada da Odebrecht, se notabilizou por criticar desde o início os métodos da Operação Lava Jato – assim como Zanin, sua posição prevaleceu no fim.
Além dela, estão cotadas a desembargadora Kenarik Boujikian, conhecida pela atuação notória no campo dos direitos humanos e oriunda, na academia, da PUC-SP, um reduto de forte influência do PT no mundo jurídico. Outro nome cogitado é o da ministra do Superior Tribunal Militar (STM) Maria Elizabeth Rocha – além de contemplar as mulheres, agradaria também o segmento militar, que nos últimos anos tomou distância de Lula e do PT.
Caso Lula opte por nomes muito ligados ao partido, observadores preveem alguma dificuldade para aprová-los no Senado, que ficou mais conservador nesta eleição. “O Senado nunca negou indicações, mas agora pode criar dificuldades. Pode haver algum problema”, diz o professor Adilson Dallari.
Fora o esforço por aproximação com STF, deixando as críticas relacionadas à Lava Jato para trás, Lula sabe que há uma considerável insatisfação popular com a Corte, impulsionada por Bolsonaro. Pessoas próximas a ele dizem que não partirá dele qualquer iniciativa de constranger ou alterar o tribunal – como no apoio a pedidos de impeachment ou de proposta para aumentar o número de ministros.
Mas se a ampliação no número de ministros ganhar força no Congresso, ele não deve se negar a participar do debate, afinal seria diretamente beneficiado com a indicação de novos integrantes.
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