Os últimos dois anos foram marcados por um retrocesso global em diversas liberdades fundamentais, da econômica à religiosa, mas podemos dizer com toda a certeza que poucas liberdades foram tão atacadas quanto a liberdade de expressão. Este fenômeno – que a Gazeta chegou a classificar como um “apagão” –, no entanto, não nasceu com a pandemia; ele já vinha se manifestando antes do surgimento da Covid-19, e foi apenas potencializado por ela. O terreno perdido foi muito grande e recuperá-lo é uma urgência para o Brasil dos próximos quatro anos.
É um trabalho dificílimo, pois são muitas as frentes em que a liberdade de expressão foi relativizada ou agredida. A sociedade como um todo, grupos organizados e até as instituições do poder público trabalharam, cada um a seu modo, para instaurar um clima de quase censura ou de autocensura.
Pensemos, por exemplo, na resposta ao fenômeno das fake news, um problema real cujo combate saiu totalmente do controle e escancarou um déficit teórico avassalador a respeito da própria natureza dos discursos. O que deveria ser um esforço para se conter a difusão de afirmações factuais comprovadamente falsas acabou se transformando na perseguição pura e simples a opiniões e críticas que destoassem de supostos consensos elevados à categoria de verdades inquestionáveis. Os adeptos de tais consensos no Poder Judiciário e nas Big Techs passaram, então, a usar seu poder para suprimir tanto tais discursos quanto seus autores, com o aplauso de todos os demais adeptos desses consensos na sociedade civil e entre formadores de opinião – o que, ironicamente, inclui muitos dos que deveriam estar na linha de frente da batalha pela liberdade de expressão.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal merece um capítulo à parte nesta história da erosão da liberdade de expressão no país. Seus inquéritos claramente abusivos, além de violarem formalmente uma série de outros princípios, como a ampla defesa, são marcados pela mais completa confusão conceitual – não apenas a manifestação de opiniões e a exposição de ideias se transformam em fake news (expressão que deveria descrever apenas afirmações factuais errôneas), como críticas legítimas são transformadas em injúrias e em outra palavra da moda, “ataques”, que são criminalizados e sujeitam seus autores a punições que vão da desmonetização e suspensão de perfis até a prisão.
Outra frente de demolição da liberdade de expressão, e que também conta com participação importante do STF, é a criação de tabus, assuntos que já não podem ser discutidos. A equiparação da homofobia ao racismo, graças a decisão de 2019 do Supremo, é um desses casos, em que a incapacidade dos ministros de distinguir entre duas situações diversas levou a um vácuo legal, do qual a militância identitária se aproveita para perseguir judicialmente brasileiros por críticas a comportamentos – classificadas como “discurso de ódio” –, em um tipo de repressão que nenhuma sociedade democrática madura aceitaria. E, quando a perseguição não ocorre pela via institucional, ela vem pela chamada “cultura do cancelamento”, em que milícias digitais organizadas, ou surgidas no calor do momento, buscam transformar em um inferno a vida de quem quer que ouse contrariar o politicamente correto.
A recuperação da liberdade de expressão no Brasil passa por um Supremo Tribunal Federal que tenha ministros efetivamente capazes de diferenciar discursos e entender corretamente quais deles são passíveis de responsabilização jurídica e quais deles devem ter livre trânsito; por parlamentares que tenham a coragem de servir de contrapeso aos desmandos de membros do STF que insistam na pretensão de serem “editores” da sociedade, na infeliz expressão de Dias Toffoli; por um marco legal para a atuação das Big Techs que impeça arbitrariedades; por autoridades que recuperem a importância da civilidade diante das divergências, servindo de exemplo para que também a sociedade saiba elevar o nível de seus debates. A mentira, a calúnia, a injúria, o preconceito e o ódio não devem ter lugar em nosso país; mas o combate a tais atitudes, seja pela repressão legal (quando for o caso), seja pela condenação social, não pode jamais servir de pretexto para se coibir o livre fluxo de ideias e o direito de criticar e questionar.
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