No ano passado, as manifestações do 7 de Setembro foram tachadas por muitos formadores de opinião e meios de comunicação de “antidemocráticas”. Inicialmente, essa classificação não foi de todo imerecida: nas convocações via redes sociais que precederam o evento, houve, por exemplo, quem defendesse a invasão do Congresso e do Supremo ao chamar o povo às ruas. Mas, ao final, um clima pacífico e de respeito à democracia prevaleceu nos protestos. Ainda assim, o título de “atos antidemocráticos” acabou vingando posteriormente em grande parte dos meios de comunicação e no discurso de autoridades públicas, como se o desprezo à democracia realmente tivesse sido a tônica das manifestações.
No dia 8 de setembro de 2021, na esteira dos atos do dia 7, caminhoneiros começaram a bloquear estradas no Brasil para apoiar reivindicações semelhantes às dos manifestantes do dia anterior, além de causas próprias, como a redução nos impostos sobre combustíveis e a melhoria das condições das estradas. Para defender suas bandeiras, os caminhoneiros não consideraram o impacto negativo na vida de milhões de brasileiros, ao violarem o direito de ir e vir e ameaçar o país de desabastecimento de insumos básicos em plena crise da pandemia.
Os acontecimentos de setembro do ano passado revelaram diferentes matizes de um grave problema nacional: a ausência de cultura democrática. É cada vez menos clara para alguns brasileiros, em primeiro lugar, a gravidade de ameaças à democracia, que podem fragilizar a única forma de governo que respeita plenamente a dignidade humana; depois, que a violação de direitos alheios jamais é instrumento legítimo para qualquer reivindicação, por mais nobre ou justa que ela possa parecer; e, finalmente, que distribuir levianamente a adversários políticos a pecha de “antidemocráticos” é um desserviço à democracia.
O primeiro desses fatos, sobre a gravidade das ameaças à democracia, sempre foi relativizado por setores mais radicais da esquerda, tradicionalmente coniventes com a ideia de colocar causas ideológicas acima da valorização da dignidade de cada pessoa; mas, infelizmente, também parece estar ficando menos evidente para o segmento da sociedade que costuma ser classificado como conservador. Embora sejam poucos os que cheguem a defender um golpe de Estado, percebe-se entre os conservadores uma atmosfera de ceticismo em relação à capacidade do regime democrático de contribuir para uma sociedade melhor, que favoreça o pleno desenvolvimento das potencialidades do ser humano. Tal engano só pode ser consequência de um entendimento pobre da democracia.
Não houve, na história da humanidade, nenhuma forma de governo mais capaz de salvaguardar valores tão caros a esse grupo, como a defesa da vida, a importância da família e as liberdades individuais. A democracia tem como fundamento o valor inestimável de cada vida humana; ao mesmo tempo, reconhece certos direitos inalienáveis sobre os quais o projeto da maioria nunca pode avançar. É verdade que a atual situação das democracias no mundo pode testemunhar o contrário, em muitos casos. Mas isso se deve justamente à crise da autêntica cultura democrática, e não a um problema presente na essência da democracia.
Uma transformação desejável para o Brasil nos próximos anos é o fortalecimento da cultura democrática. A existência de elementos como eleições periódicas e independência entre poderes, por si só, é insuficiente para se dizer que o país tenha uma democracia sólida e madura. São os cidadãos que formam as instituições democráticas, e é preciso que eles estejam convencidos dos valores que constroem uma sociedade justa.
Ao longo dos últimos anos, segmentos influentes na sociedade mudaram radicalmente sua visão sobre questões que, há não muito tempo, desfrutavam de grande consenso. Foi comum ver relativizada, por exemplo, a importância da liberdade de expressão e do combate à corrupção. Também se insinuou com frequência, como já apontamos, a tentação de soluções revolucionárias e antidemocráticas para corrigir defeitos das instituições. Em todos esses casos, há um mesmo problema de fundo: o temor quase neurótico de que grupos políticos adversários ganhem prevalência na sociedade.
Para o bem da democracia, nos próximos anos, precisamos reassentar no Brasil algumas convicções básicas sobre o que nos pode unir mesmo nas diferenças. É preciso recordar, sobretudo, a importância de colocar o bem comum acima de conveniências individuais. Relativizar a importância da honestidade, das liberdades individuais e da própria ordem constitucional em nome de bandeiras políticas é abrir as portas para que o poder seja assaltado por tiranos.
Mas um assentimento abstrato a certos valores democráticos não é suficiente. O fundamento da democracia é a confiança no valor intrínseco de cada pessoa. Por isso, não há cultura democrática sem valorização de todas as vidas, especialmente das mais frágeis e socialmente marginalizadas. Também é antidemocrática a atitude de colocar convicções políticas acima do respeito pela pessoa. O crescimento da cultura democrática no Brasil depende não só de uma mudança de mentalidade daqueles que detêm cargos políticos ou participam mais ativamente da vida pública, mas também de uma transformação nas relações interpessoais, que precisam estar pautadas por lealdade e confiança mesmo em meio a grandes divergências de ideias.
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