Diz a Constituição que os três poderes da República são “independentes e harmônicos entre si”, mas, se há algo que se tornou difícil de encontrar nos últimos tempos, é essa independência e harmonia entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Da troca de insultos à interferência pura e simples, parece que se perdeu completamente a noção de que o governo é um trabalho coletivo, em que eventuais divergências a respeito de como determinados assuntos devem ser conduzidos não justificam a confusão total sobre o papel de cada poder na ordem democrática.
A cultura de desconfiança que se instalou no país nos últimos anos deixou a tripartição de poderes “à brasileira” completamente disfuncional. O Poder Judiciário, por exemplo, assumiu um protagonismo na vida política nacional que não corresponde à sua função, especialmente quando se trata do Supremo Tribunal Federal (STF), o guardião da Constituição. Não falamos apenas do hábito dos ministros de falarem com frequência “fora dos autos”, em inúmeras entrevistas e palestras nas quais dão suas opiniões sobre praticamente tudo, mas do uso de decisões judiciais para fazer “avançar a história”, como defende o ministro Luís Roberto Barroso.
Assim, o Judiciário faz as vezes de Legislativo, como quando inventa crimes – foi o caso da equiparação da homofobia ao racismo – ou quando cria exigências ausentes da Constituição, como a necessidade de aprovação de lei para toda privatização, embora a Carta Magna só preveja tal necessidade para o estabelecimento de uma companhia pública, não para sua venda. Ou, ainda, toma o lugar do Executivo quando define política tributária ou sanitária. Mais recentemente, a corte começou até mesmo a agir por conta própria, como no caso do abusivo inquérito das fake news, deixando de lado o princípio segundo o qual o Judiciário só age quando provocado, ao contrário dos outros dois poderes.
E mesmo essa “provocação” tem seus limites, como afirmou o ministro Luiz Fux quando tomou posse na presidência do STF. Naquela ocasião, ele criticou a frequência com que atores políticos buscavam o Supremo para resolver controvérsias cuja discussão deveria se dar no campo político, não jurídico. É comum que partidos nanicos, com bancada minúscula, reflexo de sua baixa representatividade, recorram ao STF para conseguir no Judiciário aquilo para o qual não têm votos no parlamento. Mas, se isso se tornou um hábito, foi apenas porque os ministros do Supremo se dedicaram com gosto a esse papel – e continuaram assim mesmo depois do puxão de orelhas de Fux.
No entanto, a resposta do Poder Executivo sob o atual governo tem servido apenas para acentuar a disfuncionalidade. O Supremo se tornou alvo de ataques e ameaças que foram muito além da crítica veemente, que é um direito dos governantes e que seria plenamente justificada, dado o comportamento recente da corte. Desde a referência ao “cabo e soldado” feita por Eduardo Bolsonaro ainda antes do segundo turno das eleições de 2018 até as insinuações de desrespeito a decisões judiciais e referências a “ultimatos” ao STF por meio de manifestações populares, raras têm sido as ocasiões de necessária distensão; a retórica do confronto tem prevalecido de forma muito preocupante.
Não basta ao Executivo, no entanto, que apenas reveja sua retórica em resposta a excessos do Judiciário. É urgente que o presidente da República e seus ministros recuperem seu papel fundamental de coordenação geral na definição e aplicação de políticas públicas – um papel, por exemplo, de que o Executivo federal praticamente abriu mão durante a pandemia de Covid-19, alegando (erroneamente) que o STF lhe havia retirado todo o poder, delegando-o a estados e municípios. Já o Legislativo tem a obrigação de escolher bem suas prioridades, combinando tanto a pauta do governo escolhido pela maioria da população quanto outros projetos que sejam essenciais para a nação, em vez de priorizar interesses corporativistas ou os próprios privilégios, como tem ocorrido no caso das emendas de relator, ou do bilionário fundo eleitoral.
O respeito ao papel institucional de cada poder exige, primeiro, um olhar para dentro: cada um tem de saber o que pode ou não fazer. Ministros do Supremo, por exemplo, não são “editores de um país inteiro”, não são legisladores, nem formuladores de política pública. Depois, exige consciência sobre a forma de se resolver divergências dentro de uma democracia – não pela bravata, nem pela ameaça, nem pelo “tapetão”, mas pelo diálogo e, quando necessário, pelo sistema de freios e contrapesos, que já prevê meios suficientes de interação entre os poderes para impedir que um deles se torne um “superpoder”. O país precisa de representantes eleitos no Legislativo e no Executivo – que, por sua vez, escolhem e aprovam os membros dos altos escalões do Judiciário – que, mesmo discordando entre si sobre temas importantes, estejam comprometidos com o bom funcionamento da tripartição de poderes.