“É imperioso que o novo governo retome vigorosamente a bandeira da desburocratização do Brasil (...) É certo que estamos diante de um processo muito antigo, com raízes profundas em nosso passado colonial, que não deve ser debitado ao atual governo, nem aos que o precederam. Mas é imperioso que se dê início à sua reversão.”
Por atuais que pareçam, essas palavras têm mais de quatro décadas. São do economista Hélio Beltrão em julho de 1979, em palestra a integrantes do primeiro escalão da prefeitura do Rio de Janeiro. Ministro do Planejamento por dois anos no fim da década anterior, Beltrão vinha insistindo na necessidade de o Estado eliminar a “asfixia burocrática” e “retornar às suas fronteiras”. Em palestras e entrevistas, Beltrão dizia que “a iniciativa privada é uma ilha cercada de governo por todos os lados” e que este vinha interferindo em setores da atividade humana que caminhariam melhor sozinhos.
Sabe-se há muito tempo que o estabelecimento de um ambiente de negócios amigável, com regras simples e previsíveis, segurança jurídica e facilidade para empreender é fundamental para que o setor privado – o verdadeiro motor do crescimento econômico – possa gerar emprego e renda. Mas o país ainda tem muito o que fazer para tirar as amarras de quem produz riqueza e finalmente abandonar o estigma de Estado cartorial.
Semanas depois daquela palestra no Rio, Beltrão seria nomeado ministro da Desburocratização do governo de João Figueiredo, encarregado de executar o Programa Nacional de Desburocratização. O objetivo: reduzir a interferência do Estado “na atividade do cidadão e do empresário, e abreviar a solução dos casos em que essa interferência é necessária”. Uma das decisões do ministro foi retomar uma antiga e esquecida resolução que eliminava o reconhecimento de firma em documentos exigidos por órgãos federais.
Beltrão ficou quatro anos no cargo, teve dois sucessores e o Ministério da Desburocratização foi extinto em 1986. À exceção de Itamar Franco, todos os presidentes da redemocratização adotaram alguma iniciativa para reduzir a burocracia. E nem por isso os brasileiros podem, tanto tempo depois, se considerar plenamente livres para trabalhar, empreender, exercer suas aptidões.
Exemplo disso é que, em 2017, dentre um conjunto de iniciativas para simplificar o atendimento aos “usuários dos serviços públicos”, um decreto do então presidente Michel Temer teve de ratificar – 38 anos após a iniciativa de Hélio Beltrão – a dispensa do reconhecimento de firma e autenticação de cópia em documentos destinados a “fazer prova” a órgãos do Executivo federal. A exceção é “se existir dúvida fundada quanto à autenticidade ou previsão legal”, subjetividade que mantém a brecha para arbitrariedades.
O monstro indomável de leis, normas e regras do país se alimenta da presunção de má-fé, da ideia de que o cidadão pretende, antes de mais nada, ludibriar e tirar vantagem. Incapaz de tratar adequadamente os infratores, o Estado introduz mais e mais controles, prejudicando quem busca fazer o certo e erguendo obstáculos ao crescimento econômico, ao desenvolvimento social e à melhoria do padrão de vida da população.
Na última edição do extinto relatório Doing Business, publicada em 2019 pelo Banco Mundial, o Brasil ocupou a 124.ª posição dentre 190 países no ranking de facilidade para fazer negócios, com classificações ainda piores em quesitos como registro de propriedades (133.º lugar), abertura de empresas (138.º), obtenção de alvarás de construção (170.º) e pagamento de impostos (184.º).
O Doing Business foi encerrado pelo Banco Mundial, e o governo de Jair Bolsonaro argumenta que as melhorias implantadas de 2019 para cá colocariam o país na 65.ª posição do relatório ao fim de 2021, perto da meta de figurar entre os 50 melhores países para se fazer negócios até o fim de 2022.
De fato, houve avanços. Segundo a última divulgação do Ministério da Economia, o tempo médio para abrir uma empresa no país caiu quase 70% nos últimos anos, de cinco dias e oito horas, em janeiro de 2019, para um dia e 19 horas, em março de 2022. O avanço se deve à integração digital das Juntas Comerciais dos estados, com um sistema de Balcão Único que unifica a coleta de dados de todas as esferas de governo, e medidas de simplificação como a difusão da assinatura digital pelo portal gov.br.
Ainda em setembro de 2019, foi sancionada a Lei de Liberdade Econômica. Entre outras coisas, ela acaba com a exigência de alvará de funcionamento, sanitário e ambiental para atividades de baixo risco; limita o poder do Estado, com a criação da figura do abuso regulatório; e reafirma princípios do livre mercado.
Muitos entraves, porém, persistem. Empresários argumentam que a Lei de Liberdade Econômica é questionada na Justiça e não garante segurança jurídica para seus negócios. Eles propõem que seus princípios sejam inscritos na Constituição, acima da legislação ordinária, de forma a garantir sua implementação plena. Um sintoma do surrealismo normativo do país: são necessárias várias camadas de legislação para que pessoas e empresas simplesmente possam trabalhar em paz.
Um dos pais da Lei de Liberdade Econômica, o ex-secretário de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia Paulo Uebel aponta algumas das medidas necessárias para os próximos anos:
- Criar “balcões únicos” de atendimento (on-line e presenciais), para que o cidadão possa resolver tudo em um único endereço;
- Garantir a interoperabilidade de sistemas do Poder Público, para que o cidadão não precise fornecer a mesma informação em diversos lugares;
- Definir prazos para atendimento em todos os órgãos públicos, com uma norma geral para aqueles que não especificarem prazo diferente;
- Adotar a assinatura eletrônica do portal gov.br em todas as interações do cidadão com o Poder Público;
- Adotar meios de pagamento digitais (inclusive Pix) para todos os pagamentos ao Poder Público, sem necessidade de comparecimento a guichês;
- Exigir que obrigações acessórias estejam previstas em lei, de modo a não serem criadas por ato infralegal.
O rol tem outras sugestões e, entre elas, chama atenção a necessidade de finalmente pôr em prática aquilo que já se tentou tantas vezes nas últimas décadas: acabar com toda e qualquer exigência de reconhecimento de firma e de cópias autenticadas, substituindo por declaração de próprio punho.
Nenhum esforço para reduzir a burocracia, porém, estará completo sem uma reforma tributária que não apenas altere a estrutura de impostos do país, mas que também simplifique as chamadas obrigações acessórias do contribuinte.
A edição de regras tributárias é um esporte nacional: desde a Constituição de 1988, os governos de todas as esferas já editaram mais de 443 mil normas fiscais, uma média de 53 por dia útil, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT). Numa prova da aflitiva rotatividade da legislação, em que uma regra substitui a anterior para logo ser renovada por outra, somente 4,6 mil dessas estão em vigor.
Uma simplificação nessa área liberaria tempo, dinheiro e recursos humanos nas empresas e no próprio Estado, que assim poderiam se concentrar em seus objetivos mais importantes.
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