“Combater a corrupção é defender os princípios e a ética que estão na Bíblia, que estão nas outras grandes religiões, e que nos orientam a proteger e defender e a cuidar dos vulneráveis da nossa sociedade. O combate à corrupção foi a causa com que Deus me chamou para servir a sociedade e cuidar dos vulneráveis.” Essas foram algumas palavras usadas por Deltan Dallagnol (Podemos-PR), ex-coordenador da força-tarefa da Lava Jato, durante o discurso de sua filiação partidária, em dezembro, que marcou sua entrada formal na carreira política.
Em vários momentos, Deltan fez questão de ligar a corrupção a um desvio de caráter dos políticos e gestores públicos que resulta em má prestação de serviços públicos, como saúde e educação, especialmente para a população pobre. Na fala, o ex-procurador da República disse ter sido impactado pelas palavras do profeta bíblico Isaías, que disse que os governantes de sua época eram “rebeldes, amigos e ladrões, todos eles amam o suborno e andam atrás de presentes, não defendem o direito do órfão e não tomam conhecimento da causa da viúva”.
A junção entre moralidade religiosa, combate à corrupção e atenção à população pobre indica uma chave com a qual o ex-juiz Sergio Moro, filiado ao mesmo partido de Deltan (o Podemos), poderá buscar votos de uma parcela do eleitorado considerada decisiva: a complexa e diversa comunidade evangélica – cerca de 30% da população do país, mais de 60 milhões de pessoas, segundo estimativa de 2020 do Instituto Datafolha. Decisivo em 2018 para eleger Jair Bolsonaro, esse eleitor continua sendo essencial para o projeto de reeleição do presidente.
A Gazeta do Povo ouviu algumas pessoas que observam atentamente os evangélicos para entender se, por que, como e em que medida Bolsonaro pode perder parte do apoio que recebeu dos fiéis evangélicos na disputa deste ano, seja para Moro ou mesmo para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O tema do combate à corrupção, por exemplo, pode atrair parte desse público para o ex-juiz, nome mais bem posicionado na chamada terceira via? Por outro lado, a piora das condições econômicas (inflação alta, principalmente) pode atrair evangélicos das classes C, D e E para Lula?
O que diz um conselheiro de Moro sobre os evangélicos
Para dialogar com as igrejas, Moro escalou para sua campanha o advogado Uziel Santana, ex-presidente e fundador da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure), que se notabilizou nos últimos anos pela defesa dos valores cristãos junto aos três Poderes.
Para ele, os principais fatores que levaram a maior parte dos evangélicos (dois terços, segundo o Datafolha) a votar em Bolsonaro em 2018 foram: 1) a promessa de aprofundar o combate à corrupção; e 2) a chamada pauta moral de costumes (defesa da família tradicional, proteção das crianças, discurso antiaborto e contra as drogas, por exemplo).
Hoje, Uziel avalia que Bolsonaro traiu o primeiro compromisso e deixou a desejar no segundo. “Bolsonaro representa hoje, infelizmente, muito daquilo que a gente repelia em 2018. Foi eleito sobretudo dentro da agenda de combate àquela corrupção endêmica e institucionalizada criada pelo PT. Mas não houve avanço, porque ele trouxe de volta o patrimonialismo e o fisiologismo na aliança com o Centrão. Sobrou a pauta moral, mas uma das propostas para os conservadores, o homeschooling [ensino domiciliar], por exemplo, até hoje não foi aprovado”, critica.
Uziel entende que, apesar de a população evangélica ser bastante heterogênea, o tema do combate à corrupção é fundamental para todos os fiéis. Na doutrina cristã, diz ele, a corrupção não é um conceito estritamente jurídico – um crime de pagamento de propina – mas tem um sentido amplo, ligado ao pecado, e que afeta todas as pessoas.
“O cristianismo, em si, é uma luta contra a corrupção que existe na pessoa, no seu entono e no mundo. Em geral, a defesa do combate à corrupção vai do crente evangélico mais pobre ao mais rico, a partir da ideia de que Cristo veio combater a corrupção, no sentido de que os pecados são perdoados e o caráter da pessoa é transformado. Um crente de verdade, mesmo da periferia, membro da igreja, não vai pagar R$ 100 para um policial da blitz liberar seu carro sem o IPVA pago, porque sabe que isso é pecado”, afirma.
Uziel reconhece, porém, que o combate à corrupção fala mais alto com evangélicos de classe média e alta das igrejas tradicionais ou pentecostais (presbiteriana, batista e Assembleia de Deus, por exemplo) e não é um tema central para evangélicos de classe baixa recém-convertidos.
“A pessoa que ouviu, num programa de tevê neopentecostal, que seus problemas serão resolvidos, vai para igreja para ser ajudado. E aí esse tema é mais importante para ela. Por isso que o PT criou esse assistencialismo institucional, que tem muitos adeptos, porque boa parte dessas igrejas neopentecostais é formada por essas pessoas, que recebem cesta básica”, diz ele. Para Uziel, vota no PT somente a pessoa que não é membro fiel de uma igreja, “que vai de manhã para receber uma ajuda e de tarde volta para o botequim”.
Uziel pondera, no entanto, que evangélicos mais simples, moradores de periferia, mas que são membros ativos e frequentam a igreja há mais tempo, defendem um papel limitado do Estado e não são votos certos para Lula. “O mais pobre, quando precisa, é ajudado pela própria igreja. Só espera do Estado segurança e saúde, e que não intervenha sem sua vida privada”, afirma.
Desde novembro, Moro já conversou pessoalmente com mais de 40 líderes evangélicos de igrejas tradicionais e pentecostais. À exceção do bispo RR Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, ainda não se reuniu com neopentecostais.
Ao contrário de Bolsonaro, no entanto, o pré-candidato do Podemos mantém discrição nesses encontros, sem divulgá-los nas redes sociais. O objetivo é conhecer melhor como essas denominações atuam na filantropia e estudar formas de apoiar esses projetos. “Não é fazer púlpito de palanque. A gente sabe que o braço do Estado não é suficiente para atender tudo na educação, saúde e assistência”, diz Uziel.
O que diz um pastor e deputado da frente anticorrupção sobre Moro
Pastor há 35 anos da igreja pentecostal O Brasil Para Cristo, que já presidiu nacionalmente, o deputado federal Roberto de Lucena (Podemos-SP) comanda a frente parlamentar de combate à corrupção da Câmara. Ele concorda que o tema é importante para os cristãos de forma geral. Mas considera que, em 2022, questões econômicas e sociais terão mais importância para definir o voto da parcela dos evangélicos que votou em Bolsonaro em 2018.
“O primeiro tema é a economia. Em seguida vem o emprego. Depois, a crise social profunda, pois temos 110 milhões de pessoas com nível de insegurança alimentar e 19 milhões que passam fome. Depois, temos as questões ligadas à agenda dos conservadores, que interessam não só aos evangélicos, mas a católicos e espíritas, que é a defesa da família. A sociedade vai cobrar, especialmente o segmento evangélico, o combate à corrupção, mas não será como em 2018 foi, quando estava no topo da agenda”, diz o parlamentar.
Ele diz que a defesa da família e o combate à corrupção foram suficientes em 2018 para convencer boa parte do eleitorado evangélico a votar em Bolsonaro, na forma de reação ao governo do PT – que, em sua visão, impunha pautas progressistas ao Congresso e à sociedade e protagonizou os maiores escândalos de corrupção. Mas Lucena ressalva que a opção por Bolsonaro não “bolsonarizou” a igreja evangélica e seus membros. “Esse eleitor se identificou com a agenda com a qual Bolsonaro se comprometeu. O cristão conservador defende uma agenda e tem uma visão de mundo que orienta suas escolhas”, diz.
E, segundo Lucena, é isso que falta a Moro. “O eleitor evangélico tem a expectativa de ouvir do Moro posicionamento e compromisso público com os pontos dessa agenda de defesa da família e da vida. Ele já falou sobre a questão social, economia, sustentabilidade, mas nada sobre isso. Está faltando que ele seja claro”, afirma o deputado e pastor.
Quanto ao combate à corrupção, Lucena diz que a bancada evangélica no Congresso também deveria se empenhar mais fortemente nessa agenda. Ele atribui a rejeição de parte do pacote anticrime, proposto por Moro quando era ministro da Justiça e Segurança Pública, à falta de diálogo e articulação por parte do governo. “Grande parte da bancada evangélica apoia o governo, mas principalmente por ter a agenda de costumes como prioridade. Penso que deveria se empenhar mais firmemente na bandeira anticorrupção, assim como na bandeira da justiça social”, diz.
O que diz um bispo de uma grande igreja que apoia Bolsonaro
O bispo Robson Rodovalho é ex-deputado federal, pelo DEM e PP, mas atualmente dedica-se integralmente à igreja neopentecostal que fundou, a Sara Nossa Terra, sediada em Brasília e presente em vários estados do país e no exterior. É um dos maiores apoiadores de Bolsonaro no meio evangélico e considera que a grande maioria desse segmento permanecerá com o presidente.
Ele confirma que o combate à corrupção é de “supra importância” para os cristãos protestantes, tanto quanto a preservação da vida contra o aborto e o casamento entre homem e mulher. E argumenta que o governo Bolsonaro já possui “boa prática e bons resultados” nesse campo.
“A plataforma de Moro, até agora, aborda apenas a questão da corrupção. A pauta anticorrupção hoje está contemplada pela plataforma e pela prática do governo Bolsonaro, do qual Moro fez parte por causa desse conceito. Mesmo após ele deixar o Ministério da Justiça, a pasta e a Polícia Federal seguiram o caminho que foi traçado pelo presidente”, diz Rodovalho.
Ele diz ser possível que uma parte menor dos evangélicos migre para Moro por causa de alguma contrariedade ou decepção com o governo Bolsonaro – “o que a meu ver é algo normal, porque ninguém consegue agradar a todo mundo”. “Mas a grande maioria da nossa base se mostra satisfeita com a condução do governo pelo presidente Bolsonaro. Vamos ver, no andar da carruagem, como vai se acomodar isso”, disse à reportagem.
Quanto à possibilidade de evangélicos apoiarem Lula, o bispo diz que caberá ao PT explicar os fatos recentes no âmbito da Lava Jato envolvendo o ex-presidente. “Vamos ver como a sociedade brasileira vai julgar isso, compreender ou interpretar todos esses acontecimentos. Inclusive o próprio Moro, ex-juiz, também vai passar pelo mesmo olhar, o mesmo crivo, de sua avaliação de sua conduta como juiz e também como eventual candidato.”
O que diz um antropólogo que conviveu com evangélicos numa periferia
O historiador e antropólogo Juliano Spyer conviveu com famílias de evangélicos durante um ano e meio, entre 2013 e 2014, num bairro de periferia em Salvador (BA).
Após estudar a história das igrejas que mais crescem no país e conversar com especialistas, publicou, no ano passado, o livro Povo de Deus (Geração Editorial), que se tornou, em pouco tempo, uma obra de referência para entender a visão de mundo e o comportamento dos evangélicos, confrontando estereótipos e levando em conta a diversidade interna que existe na população protestante.
Ele também entende que o evangélico de classe baixa não é, necessariamente, um eleitor do atual presidente. “Venho falando recentemente acerca do preço alto que o evangélico paga por defender o Bolsonaro, que é grosso, rude, destemperado e perde a cabeça”, diz. Ele acrescenta que algumas pautas defendidas pelo presidente, por exemplo, não contam com o apoio de evangélicos de periferia, como o maior acesso às armas.
Quanto a Moro, Spyer diz que poderia haver uma identificação pelo fato de o ex-juiz se apresentar como alguém que busca realizar a justiça, e por isso é perseguido. Mas diz que ainda não vê efeito disso nas intenções de voto.
“Ele [Moro] se encaixa bem dentro da narrativa bíblica de uma pessoa que é perseguida, que quer fazer a coisa direita e por conta disso é punido. Fiquei na expectativa de que faria sentido, que esse eleitorado evangélico mais pobre, que está decepcionado com o Bolsonaro, migrasse para o Moro. Mas isso não aconteceu, ao que parece. Não observei algum tipo de dado quantitativo que sustentasse essa narrativa. Tenho impressão que ele não abraçou suficientemente o cristão como o Bolsonaro”, disse.
Com a ressalva de não ser um analista político, Spyer considera mais provável que o eleitorado evangélico, em sua maioria, divida-se entre Bolsonaro e Lula. “Tem um cara que vai nos cultos, que é casado com uma evangélica, e do outro lado tem a pessoa que trouxe prosperidade para o pobre”, afirma o pesquisador.
O que diz um jornalista que escreveu sobre a relação de Bolsonaro com as grandes igrejas
Jornalista com mais de 20 anos de experiência e passagem por importantes veículos de comunicação, Ricardo Alexandre também é evangélico e membro da Igreja Batista há mais de 30 anos. Em 2020, publicou o livro E a verdade os libertará: Reflexões sobre religião, política e bolsonarismo (Editora Mundo Cristão), em que tenta entender por que grandes igrejas e pastores influentes aderiram a Bolsonaro em 2018 e convenceram parte considerável das classes C, D e E a votar nele.
Ricardo Alexandre rejeita a ideia de que exista “um voto evangélico”, devido à enorme diversidade dentro da população que frequenta as diferentes igrejas protestantes. Bolsonaro ganhou a disputa, diz ele, por conquistar o eleitorado de faixas de renda mais baixas – embora, para isso, tenha contado com o apoio de líderes evangélicos que influenciam pessoas desse estrato social.
Para ele, a pauta anticorrupção, “uma causa justíssima”, pode atrair alguns setores dentro do movimento evangélico, mas pode não fazer tanta diferença em favor de Moro. “O Lula também vai dizer que é contra a corrupção. O Ciro [Gomes] vai dizer. O Moro vai dizer muito. Todos eles vão dizer e ninguém vai falar que é a favor [de desvios de recursos públicos].”
O jornalista diz não acreditar que o evangélico médio se identifique ou seja parecido com Bolsonaro, que considera uma pessoa “vulgar” e “agressiva”. Mas diz que, dentro de praticamente todas as correntes evangélicas, ele tem a vantagem de reconhecer e legitimar duas grandes preocupações: a perda de liberdade religiosa e a preservação da família tradicional.
“A primeira é a ideia, equivocada ou não, de que os evangélicos estão sob cerceamento de espaço. Existe no meio evangélico o discurso de que a esquerda não gosta dos evangélicos e que não tarda o momento em que pastores podem ser presos por pregarem a ortodoxia, as doutrinas mais tradicionais do evangelho. Só vejo a bancada evangélica ou o Bolsonaro falando sobre isso. Quando esse assunto surge, outros candidatos ligados à esquerda não entendem a pergunta, de tão descolados que estão dessa discussão”, diz Ricardo Alexandre.
“O outro ponto é a preservação da família, que pode ser artificializada ou não. Mas existe a ideia de que a família está sob desmoralização cultural e que não há ninguém disposto a defendê-la. E aqui a gente está falando de um público para quem a família é tudo que a pessoa tem: é sua rede de apoio e é seu patrimônio”, completa o jornalista.
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