Regra do teto de gastos foi instituída em 2016 e limita aumento das despesas públicas à inflação.| Foto: Pixabay
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Instituído em 2016, durante o governo de Michel Temer (MDB), o teto de gastos públicos, principal âncora fiscal do país, parece estar com os dias contados. A equipe econômica do presidente Jair Bolsonaro (PL), que no ano passado já promoveu uma série de “dribles” ao teto, estuda agora substituí-lo por outro dispositivo. Do outro lado, o ex-presidente e novamente candidato ao cargo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já afirmou publicamente que, se eleito, pretende revogar a regra. Ciro Gomes (PDT) também prega a extinção do mecanismo.

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Conforme a Emenda Constitucional 95/2016, o teto de gastos limita o crescimento das despesas do governo aos mesmos valores gastos no ano anterior, corrigidos pela inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Originalmente, a validade da medida era de 20 anos, mas poderia haver uma revisão, por meio de lei complementar, na metade desse prazo, ou seja, em 2026.

O governo Bolsonaro, no entanto, já arranjou algumas maneiras de contornar as restrições impostas pela regra. Em 2019, a chamada proposta de emenda à Constituição (PEC) da cessão onerosa permitiu que o governo não contabilizasse no teto cerca de R$ 46,1 bilhões relacionados à repartição de áreas do pré-sal que foram transferidos para estados e municípios. Em 2020, em meio à pandemia de Covid-19, o Congresso autorizou gastos de R$ 44 bilhões fora do teto para bancar uma nova rodada do auxílio emergencial.

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Em dezembro de 2021, a aprovação da chamada PEC dos Precatórios permitiu ao governo adiar o pagamento de dívidas do governo já transitadas em julgado, além de alterar cálculo para correção do teto, liberando R$ 108 bilhões para gastos em 2022, ano eleitoral. Em vez de considerar o IPCA acumulado em 12 meses até junho, o texto passou a prever o uso do índice de janeiro a dezembro.

Mais recentemente, no último mês de junho, para conceder um adicional temporário de R$ 200 aos beneficiários do Auxílio Brasil, entre outros benefícios sociais, até o fim do ano, ao base do governo conseguiu aprovar uma PEC que excluiu o custo de R$ 41,25 bilhões do pacote da regra do teto de gastos. As despesas serão bancadas com créditos extraordinários, como dividendos de estatais e recursos provenientes da privatização da Eletrobras.

O Orçamento de 2023 enviado ao Congresso prevê que o benefício médio do Auxílio Brasil será de R$ 405 no ano que vem, sem os R$ 200 adicionais, justamente por não existir um marco legal que permita a continuidade do pagamento mais alto. Porém, o governo afirma que fará "esforços em busca de soluções jurídicas e de medidas orçamentárias que permitam a manutenção do referido valor [R$ 600] no exercício de 2023 mediante o diálogo junto ao Congresso Nacional para o atendimento dessa prioridade".

Outrora defensor da âncora fiscal, o ministro da Economia, Paulo Guedes, reconhece que furou o teto, mas alega que as medidas foram necessárias para socorrer os mais frágeis durante a pandemia e em razão da guerra na Ucrânia.

“Vocês violaram o teto? A resposta é sim, nós violamos o teto”, disse o ministro no início do mês em palestra realizada em São Paulo. “Chega uma doença, eu tenho que transferir dinheiro para as pessoas. Eu estou fazendo o governo crescer? Não, eu estou dando um auxílio para os mais frágeis”, defendeu.

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Ministério da Economia estuda substituir teto de gastos por meta de dívida pública

Agora, o Ministério da Economia estuda abandonar de vez a regra e substituí-la por um modelo de meta para a dívida pública, com margens de flutuação para cima ou para baixo, de forma semelhante ao sistema de metas de inflação do Banco Central.

Segundo apurou o jornal O Estado de São Paulo, dependendo do nível da dívida e de sua trajetória, o governo poderia aumentar as despesas acima da inflação, desde que o endividamento mantivesse a tendência de queda. Se a dívida estiver subindo, por outro lado, as despesas teriam de ser cortadas.

Em 2020, primeiro ano da pandemia de Covid-19, a dívida bruta chegou a 88,6% do PIB. Para este ano, o governo projeta um endividamento de 78,2% do PIB, mas a equipe econômica acredita que o indicador ainda deve ser revisto para baixo até dezembro. Em uma das simulações feitas pelos técnicos do governo, haveria espaço para aumento real, acima da inflação, de 1,5% em gastos para 2023.

A nova regra teria como objetivo aproximar a relação dívida/PIB do patamar de 60%, nível médio de outros países emergentes. Fontes próximas às discussões relataram ao jornal Folha de São Paulo que a proposta deve ser concluída ainda este mês para ser entregue a Guedes.

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Economistas divergem sobre modelo de meta de dívida

O modelo de meta de dívida pública vem sendo defendido há tempos por economistas como José Roberto Afonso. Em abril de 2021, em um seminário virtual patrocinado pela Instituição Fiscal Independente (IFI) e pelo Tribunal de Contas da União (TCU), Afonso lembrou que a meta da dívida está sendo utilizada em vários outros países após a pandemia de Covid-19, a exemplo da Nova Zelândia.

“Gasto só pode ser âncora para estabilidade supondo que a receita está garantida e será crescente. Com recessão, inflação baixa e a receita indo ladeira abaixo, essa variável perde eficácia”, disse. “A âncora tem que ser a dívida, por teoria e pela experiência internacional. É só ver a literatura, inclusive a recente, reforça isso ainda mais”, diz ele. “Despesa é meta operacional acessória para âncora, que é de dívida, e, ainda assim, a meta de despesa quase sempre está atrelada a PIB potencial, e não à inflação.”

O economista Gabriel Leal de Barros, sócio e economista-chefe da Ryo Asset, considera a “ruim” a proposta em estudo pela equipe econômica, porque afetaria a credibilidade da política fiscal frente ao mercado. “O que o governo controla diretamente é a despesa, e regra crível precisa ser sobre o gasto primário, idealmente seguindo o modelo sueco, com metas de crescimento para as principais rubricas de despesa”, afirma em artigo publicado no dia 11.

“Ter uma meta de dívida pode ser bom se e somente se for para complementar uma âncora fiscal que seja uma regra de gasto. O mais correto seria ter uma meta de dívida bruta excluindo operações compromissadas, pois, assim, somente os fatores efetivamente fiscais seriam mensurados”, defende Barros.

Outras sugestões já foram colocadas à mesa. Em 2019, os economistas Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), publicaram um artigo em que já defendiam mudanças na atual regra do teto de gastos. No texto, eles propõem a criação de dois tetos – um para despesas totais, e outro para gastos correntes, que exclui investimento público –, com um pequeno aumento anual acima da inflação em ambos os limites.

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Para eles, a atual legislação, sem a aprovação de reformas estruturais, e com baixo crescimento anual, faz com que políticas de governo sejam “seriamente” afetadas por dependerem da existência de verbas adequadas.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Lula, Bolsonaro e Ciro defendem mudanças no teto de gastos. Tebet fala em "nova roupagem"

Em junho, em entrevista ao telejornal SBT News, Bolsonaro disse que pretende discutir alterações no teto, mas somente após outubro. “Algumas coisas você pode mexer no teto de gastos, como já houve propostas na própria equipe do Paulo Guedes. Mas a gente vai deixar para discutir isso depois das eleições”, afirmou.

O ex-presidente Lula, por sua vez, utilizou o próprio governo Bolsonaro para criticar o teto de gastos. “Eu fui contra o teto de gastos quando ele foi criado e sou contra agora. Até porque o teto de gastos agora é uma peça de ficção, porque o Bolsonaro o desrespeitou o tempo inteiro”, disse na segunda-feira (22), em entrevista a correspondentes internacionais que atuam no Brasil.

“Um governo que tem responsabilidade não precisa fazer uma lei limitando os gastos dele. O teto de gastos me parece uma coisa para garantir os interesses de quem? Do sistema financeiro? Dos credores do governo brasileiro? E do povo brasileiro, qual é o teto de investimento?”, questionou.

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Economistas ligados à campanha do ex-presidente têm defendido uma espécie de licença para aumento de gastos no início do eventual governo petista, em especial para bancar a manutenção do piso de R$ 600 no Auxílio Brasil, até que seja discutida e encaminhada à apreciação do Congresso uma nova métrica fiscal.

A ideia é semelhante à do chamado “Grupo dos Seis”, formado por economistas como Bernard Appy e Pérsio Arida, ex-presidente do Banco Central. Em um documento divulgado este mês, eles defendem que até enquanto não vier o novo regime fiscal, o governo possa gastar 1% do PIB, fora do teto, em medidas voltadas à produtividade e à sustentabilidade ambiental, sem aumento de carga tributária. Segundo o jornal "O Estado de S. Paulo", o grupo tem mantido interlocução com a campanha de Lula, que estaria considerando utilizar uma meta de gastos atrelada ao PIB, e não à inflação.

Ciro Gomes (PDT) também defende o fim do teto de gastos. Ele propunha a revogação da medida, com substituição por outro mecanismo de controle das despesas, já nas eleições de 2018. No livro “Projeto Nacional: O Dever da Esperança”, lançado no ano passado, Ciro afirma que o teto tende a diminuir o gasto real por habitante e defende mudanças para que a prestação de serviços públicos essenciais não seja comprometida.

Simone Tebet (MDB), que como congressista votou a favor da criação do teto, defende a manutenção do mecanismo, mas "com nova roupagem" e mais flexibilidade, conforme declarou nos últimos meses.