Ex-secretário do consumidor, Luciano Timm colabora com Sergio Moro na busca de soluções que deem mais eficiência à Justiça, com base em “evidências e dados científicos”| Foto: José Cruz/Agência Brasil
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Desde que defendeu, durante uma visita à Paraíba, um Judiciário “mais eficiente e menos custoso”, o ex-juiz Sergio Moro, pré-candidato à Presidência pelo Podemos, viu crescer contra si a ira de advogados, juízes e procuradores. Rapidamente vieram à tona críticas de membros da elite da advocacia de Brasília, de associações de magistrados e de membros do Ministério Público, segundo as quais ele nunca poderia, caso eleito presidente, propor uma reforma do Judiciário, iniciativa que caberia tão somente às próprias instituições deste poder.

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Pouco foi revelado, no entanto, sobre que ideias o ex-juiz vem discutindo sobre o assunto, e boa parte da desaprovação se deu sobre o que é ainda desconhecido. Além da frase citada no início desta reportagem, o que Moro mais tem dito em entrevistas recentes, e que envolve a Justiça, são críticas pontuais a decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), sem relação com o Judiciário como um todo.

Em suma, ele tem repetido que a Corte cometeu um grande “erro judiciário” ao anular as condenações de Lula, em razão de questões “meramente formais”; defendeu a volta da execução das penas após condenação em segunda instância e o fim do foro privilegiado. Ainda em dezembro, numa conversa fechada com empresários, falou na fixação de mandatos fixos para ministros do STF e em transformá-lo num tribunal estritamente constitucional (que apenas julga leis, para aferir se são ou não compatíveis com a Carta de 1988).

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Desde o ano passado, porém, Moro reuniu um grupo de juristas para discutir mudanças na Justiça sob uma perspectiva mais ampla, para enfrentar problemas mais complexos e que afetam a maioria dos tribunais do país.

A Gazeta do Povo apurou que o objetivo das discussões não é formular propostas de mudanças estruturais profundas no Judiciário, o que, de fato, exigiria projetos de lei oriundos do próprio poder. As ideias em discussão – e que poderão ser futuramente integradas ao programa de governo de Moro – tratam sobretudo de mudanças de gestão pública e no aperfeiçoamento regulatório para tornar mais ágil, previsível e menos custosa a tramitação dos processos.

As principais preocupações se relacionam à sobrecarga de ações individuais a cargo dos juízes, com grande variação na solução de casos semelhantes, o que gera insegurança jurídica e prejudica diretamente o dinamismo da economia e a vida de cidadãos que aguardam a solução de seus problemas.

Das conversas, não sairão somente ou necessariamente projetos de lei, tampouco para reformar o Judiciário, mas soluções ou direções que podem ser implementadas a partir do próprio Executivo. Há também análise sobre propostas já em tramitação no Congresso e que deveriam ganhar força. E, no futuro, poderão surgir sugestões que precisarão de articulação política para serem apresentadas a órgãos do Judiciário – a exemplo do Conselho Nacional de Justiça – para poderem avançar.

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O objetivo da maior parte das ideias em discussão é dar mais eficiência ao Judiciário. A soluções passam por resolver mais fácil e rapidamente disputas, seja entre particulares ou destes com o Estado, inclusive reduzindo a enorme quantidade de ações que a União leva adiante nos tribunais sem chances de vitória, na área tributária, por exemplo.

Na visão do grupo que assessora Moro, há espaço para: ampliar a resolução de conflitos por meio da arbitragem, fora, portanto, dos tribunais; reforçar o sistema de precedentes e estimular a solução dos casos de forma coletiva; aprimorar a atuação das agências reguladoras; facilitar a entrada de novos players no mercado, especialmente empresas que desenvolvem serviços digitais; impulsionar a regularização fundiária e garantir o direito à moradia; avançar na adoção, pelas empresas, de programas de conformidade (“compliance”) e de inserção no modelo ESG (“environmental, social and governance”), de práticas socialmente responsáveis, sustentáveis e corretamente gerenciadas.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Quem está na equipe de Moro

“Fui contatado para dar sugestões acadêmicas para aperfeiçoamento do sistema de Justiça no Brasil a partir de evidências e dados científicos. É dever republicano contribuir com o aperfeiçoamento das nossas instituições. Minhas áreas de pesquisa envolvem políticas públicas judiciais, métodos alternativos de solução de disputas, regulação econômica”, disse à reportagem o advogado empresarial Luciano Timm.

Secretário nacional de Direito do Consumidor entre 2019 e 2020, durante a passagem de Moro pelo Ministério da Justiça, Timm é mestre e doutor pela UFRGS, com especialização e pesquisas em direito econômico nas universidades americanas de Warwick e Berkeley, e atualmente dá aulas na Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.

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Além dele, integram o grupo Joaquim Falcão, professor de direito constitucional da FGV Rio. PhD pela Universidade de Genebra e mestre em Harvard, está entre os mais renomados especialistas em Justiça no país; e é também membro da Academia Brasileira de Letras. Completa o time Vladimir Passos, desembargador aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), doutor em direito de Estado pela UFPR, professor na PUC do Paraná, e ex-secretário nacional de Justiça durante a gestão de Moro no Ministério da Justiça.

O tamanho do problema

Estudos já realizados por integrantes do grupo ou colegas de academia, com base em dados oficiais, apontam uma realidade perniciosa, na qual o Judiciário consome um grande volume de recursos públicos, pagos por toda a população, para julgar, em grande parte, processos que envolvem o próprio Estado ou um número reduzido de grandes empresas.

Em 2020, o Judiciário brasileiro consumiu R$ 100 bilhões, segundo o último relatório Justiça em Números, do CNJ – para efeito de comparação, no período, o governo federal investiu R$ 788 milhões em saneamento básico, segundo dados do Portal da Transparência.

O mesmo ano terminou com 75,4 milhões de processos em tramitação. Destes, 27,1 milhões (36%) são processos de execução fiscal, dívidas tributárias não pagas pelo contribuinte pela via administrativa, junto aos próprios órgãos públicos. Esses processos são considerados pelo CNJ os grandes vilões do inchaço e da sobrecarga do Judiciário.

“Historicamente as execuções fiscais têm sido apontadas como o principal fator de morosidade do Poder Judiciário [...] Acabam chegando ao Judiciário títulos de dívidas já cobradas por outras vias e, por consequência, com menor probabilidade de recuperação [...] De cada cem processos de execução fiscal que tramitaram no ano de 2020, apenas 13 foram baixados”, diz o relatório Justiça em Números, lançado no ano passado pelo órgão.

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Cada processo deste dura, em média, 8 anos 1 mês no Judiciário (10 anos e 11 meses na Justiça Federal, quando envolvem a União; e 7 anos e 10 meses na Justiça Estadual). Estudos independentes calculam que o custo total médio de um processo como esse é de R$ 3 mil, durante todo o período de tramitação.

Possíveis soluções

Para o grupo que assessora Moro, para reduzir essa grande quantidade de processos, uma das soluções possíveis é não levar adiante ações nas quais já existe jurisprudência consolidada para resolver aquele conflito tributário, seja em favor do Estado ou contra ele.

A Advocacia-Geral da União (AGU), nesse sentido, não deveria continuar recorrendo em casos que já está claro que tende a perder. Por outro lado, já nos casos em que precedentes apontam que tende a ganhar, a saída é tentar fazer acordos com os devedores – atualmente o Estado só recupera em média 15% dos créditos que busca na Justiça após o fim do longo litígio. Um acordo entre as partes poderia elevar esse percentual e encerrar mais rapidamente o caso.

Outra solução já tramita no Congresso: trata-se do projeto de lei 4.257, de 2019, proposto pelo então senador e atual ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Antonio Anastasia, que permite ao devedor optar por um tribunal de arbitragem para discutir a cobrança dos tributos, o que não só desafoga os tribunais, mas permite uma solução mais rápida.

O mesmo projeto propõe um rito de execução para pagamento de dívidas tributárias incidentes sobre imóveis e veículos fora da Justiça, no qual o próprio poder público pode tomar e leiloar esses bens em caso de inadimplência, como ocorre com bancos que não recebem parcelas de um financiamento imobiliário, por exemplo, sem precisar acionar o Judiciário.

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Para o grupo de juristas chamados por Moro, ainda há outras iniciativas possíveis para reduzir a sobrecarga e os custos do Judiciário. Uma delas é reforçar o sistema de precedentes no país e ampliar as ações coletivas – que reúnem milhares ou até milhões de casos idênticos, muito comuns, por exemplo, na área de direito do consumidor – com soluções uniformes, mais abrangentes e rápidas, também conforme jurisprudência consolidada nos tribunais superiores.

Hoje, a maioria dessas ações é ajuizada pelo Ministério Público, mas falta incentivo e segurança para que elas também sejam apresentadas por entidades civis (associações, institutos ou mesmo ONGs) representativas de um grande número de empresas ou pessoas com o mesmo problema.

E quando grandes empresas ignoram essas soluções e optam por ir até o fim dos processos, apresentando os inúmeros recursos possíveis na Justiça? Uma ideia aqui é cobrar delas custas judiciais diferenciadas e maiores e também fixar honorários de sucumbência (pagamento a advogados da parte que venceu) mais altos.

Para dinamizar a economia e facilitar a vida de pequenas e médias empresas e empreendedores, a equipe de Moro também estuda maneiras de aperfeiçoar a regulação das agências reguladoras, de modo a evitar que elas sejam manipuladas por grandes players do mercado que tentam sufocar novos concorrentes.

Há também planos para procedimentos mais simples e unificados de atendimento ao consumidor, reunindo em um só canal, por exemplo, reclamações de serviços como água, telefonia, energia, etc. A ideia, novamente, é evitar que problemas triviais, para os quais as normas já favoreçam o consumidor, cheguem ao Judiciário.

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O que fazer com a sobra de recursos?

Se planos como esses se tornarem realidade, o que fazer com o tempo e os recursos que sobrarem? O grupo de Moro entende que eles devam ser aplicados no próprio Judiciário, para ampliar o atendimento a pessoas mais pobres que têm dificuldades para acessar a Justiça ou para acelerar os processos daquelas que batalham anos a fio para assegurar direitos e ou buscar soluções na primeira e na segunda instância.

Nos próximos meses, o grupo ainda vai aprofundar discussões que envolvam outras áreas socialmente sensíveis – como a de regularização fundiária, entendida como importante para assegurar o direito de propriedade de famílias e produtores rurais, por exemplo –, bem como em setores de ponta, que interessam a empresas que investem em inovação tecnológica e em práticas sustentáveis. Tratam-se de temas em que Joaquim Falcão e Vladimir Passos estão mais concentrados.

Tudo depois será submetido a Moro para eventual inclusão no programa de governo. O passo seguinte será discutir como implementar essas ideias em caso de vitória num eventual governo. A avaliação inicial é que será preciso muito diálogo e estratégia, para um esforço que envolva todos os órgãos afetados.