Eleito presidente com 50,90% dos votos válidos, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de 77 anos, assume a partir de 1.º de janeiro de 2023 seu terceiro mandato como presidente da República, 12 anos depois de deixar o cargo. Seu vice é o ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSB).
No registro da candidatura no TSE, a equipe do então candidato apresentou um plano de governo com diretrizes genéricas sobre temas diversos que devem nortear o futuro mandato. O documento traz poucos números e não se aprofunda em dados, como a indicação de fontes de financiamento para os programas que o novo presidente promete implantar.
O petista também foi cobrado, ao longo da campanha, a indicar quem comporá sua futura equipe, em especial no Ministério da Economia, para sinalizar de forma mais clara a política econômica que pretende adotar, mas optou por não anunciar qualquer nome.
Apesar disso, com base no plano de diretrizes e em uma série de declarações públicas feitas por Lula em reuniões, comícios, entrevistas, redes sociais e nas propagandas eleitorais de rádio e TV, é possível ter uma ideia de o que esperar do novo governo em algumas áreas.
Lula quer revogar teto de gastos
A política econômica do novo governo ainda tem pontos que precisam ser esclarecidos. Uma das mais reiteradas promessas de Lula, desde a pré-campanha, é a revogação do teto de gastos, principal âncora fiscal do país, criada no governo de Michel Temer (MDB), em 2016. O mecanismo limita o crescimento anual das despesas do governo à inflação medida pelo IPCA.
A ideia de extinguir o teto, no entanto, é criticada por Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda de Temer e criador do dispositivo. Ex-presidente do Banco Central durante os dois primeiros mandatos de Lula, Meirelles aderiu à campanha do petista ainda na campanha para o primeiro turno, em meados de setembro, e chegou a ser cotado para assumir algum cargo no governo.
Com projeções de grave desajuste fiscal para 2023, economistas ligados à campanha de Lula querem um “waiver”, espécie de licença para aumento de gastos, no início do novo mandato. A autorização teria duração de seis meses e um limite de despesas equivalente a 1% do PIB, até que esse novo regime fiscal estivesse instituído.
No plano de governo registrado na Justiça Eleitoral antes do embarque do ex-ministro, a campanha de Lula diz considerar a regra “atualmente disfuncional e sem credibilidade” . O documento fala na criação de um novo regime fiscal, “que disponha de credibilidade, previsibilidade e sustentabilidade”, uma espécie de mantra do ex-presidente.
A autonomia do Banco Central (BC), aprovada no atual governo de Jair Bolsonaro (PL), não será revista. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, já garantiu, além disso, que o presidente do BC, Roberto Campos Neto, permanecerá no cargo até 31 de dezembro de 2024, quando se encerra seu mandato.
Maior participação do Estado com retomada do PAC e suspensão das privatizações
Apesar da adesão de nomes ligados ao liberalismo, como Meirelles e Alckmin, Lula defende para seu terceiro mandato uma política econômica desenvolvimentista. Nesse sentido, prometeu a retomada do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que engloba um conjunto de políticas de investimento público em infraestrutura com o objetivo de estimular o desenvolvimento econômico do país.
Nas duas etapas conduzidas no passado pelos governos petistas, no entanto, o PAC foi criticado em razão da falta de planejamento, que acabou por deixar diversas obras inacabadas, gerando desperdício de recursos.
Seu plano de governo fala na necessidade de “proteger o patrimônio do país” e de “recompor o papel indutor e coordenador do Estado e das empresas estatais”, que seriam responsáveis pelo processo de desenvolvimento econômico e pelo progresso “social, produtivo e ambiental do país”.
Ele afirmou que vai suspender o processo de privatização dos Correios, da Petrobras e da Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), cujos trâmites tiveram início no atual governo. Meses atrás, deu a entender que reverteria a venda do controle da Eletrobras à iniciativa privada caso eleito, mas posteriormente negou ter falado em rever privatizações.
Além disso, em um comício em Recife no último dia 14, prometeu construir refinarias para garantir a autossuficiência do país em derivados de petróleo, revertendo a atual estratégia da companhia de se desfazer da maior parte de seus parques de refino.
Já no período de campanha do segundo turno, um relatório da consultoria norte-americana Eurasia apresentou declarações em que o próprio Meirelles se mostrava reticente em relação à área econômica do futuro governo Lula, afirmando haver predominância de ideias de economistas estatizantes.
Depois da divulgação do documento, o ex-ministro disse ter havido ruídos na interpretação de suas falas e assegurou que, em sua opinião, o novo governo priorizará as responsabilidades fiscal e social.
Reforma tributária deve ser "fatiada"; isenção do IRPF pode ir para R$ 5 mil
No programa de governo que registrou no TSE, Lula defende uma reforma tributária “solidária, justa e sustentável”, que simplifique tributos e em que “os pobres paguem menos e os ricos paguem mais”.
No documento, propõe a redução da tributação sobre consumo, o que, segundo ele, garantirá progressividade tributária e restaurará “o equilíbrio federativo”. Também diz que o modelo deve contemplar “a transição para uma economia ecologicamente sustentável” e aperfeiçoar a tributação sobre o comércio internacional, de modo a desonerar progressivamente produtos com maior valor agregado e tecnologia embarcada.
Em mais de uma entrevista, no entanto, o petista disse que as mudanças devem ser feitas de forma “fatiada”. “Eu não acredito em uma reforma tributária ampla. Você tem que fazer por pontos o que você quer mudar a cada momento”, disse Lula, no dia 21 de setembro, em entrevista ao Canal Rural.
Em julho, em entrevista ao portal UOL, ele mencionou a possibilidade de um imposto único sobre consumo e defendeu a taxação de lucros e dividendos. “Política tributária pode ser um IVA [imposto sobre valor agregado]”, disse.
Um modelo de IVA em substituição aos atuais PIS, Cofins, ICMS e ISS já tramita no Congresso na proposta de emenda à Constitiução (PEC) 110/2019, que está parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado desde o início do ano. O texto pode ser aproveitado pelo governo de Lula, segundo já indicaram membros de sua campanha.
Ele também prometeu atualizar a tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), elevando a faixa de isenção, que atualmente abrange quem ganha até R$ 1.903,98 mensais. Embora o partido defendesse R$ 3 mil como teto para isenção, por determinação de Lula, sua campanha anunciou, no último dia 11, a promessa de liberar o imposto para quem recebe até R$ 5 mil.
Reforma administrativa: máquina pública deve aumentar
Já nas vezes em que foi questionado sobre reforma administrativa, Lula foi mais vago em relação a seu plano. “Essas coisas não me preocupam, porque muitas vezes o que é gasto, na sua cabeça, para mim, é investimento”, disse na entrevista ao Canal Rural, no fim de setembro, quando o tema foi mencionado.
Em agosto, durante sabatina na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o petista disse que uma reforma administrativa seria necessária para equilibrar os salários das diferentes categorias do funcionalismo. “Tem pouca gente ganhando muito, e muita gente ganhando pouco”, afirmou. “É preciso tentar fazer um equilíbrio, e aí vamos ter que pensar direitinho.”
O plano de governo do PT registrado no TSE fala em uma “reforma do Estado”, “que traga mais transparência aos processos decisórios, no trato da coisa pública de modo geral, direcionando a esfera pública e a ação governamental para as entregas públicas que realizem os direitos constitucionais”. Também cita “o respeito e compromisso com as instituições federais” e com “a retomada das políticas de valorização dos servidores públicos”.
Em diferentes ocasiões, o agora presidente eleito indicou que deve inflar a máquina pública, aumentando o número de ministérios dos atuais 23 para, pelo menos, 32. Se cumprir declarações feitas ao longo dos últimos meses, o Ministério da Economia será desmembrado nas pastas do Planejamento, da Fazenda e da Pequena e Média Empresa. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por sua vez, dará lugar a três diferentes estruturas: da Mulher, dos Direitos Humanos e da Igualdade Racial.
Passarão a ser independentes ainda o Ministério da Segurança Pública, hoje sob a mesma estrutura do da Justiça, e o da Previdência Social, atualmente unido ao do Trabalho. A Secretaria da Cultura, por ora no organograma do Turismo, deve reassumir status de ministério, assim como a Secretaria da Pesca, que atualmente está no âmbito da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Além disso, Lula já afirmou que recriará uma pasta específica para a Pequena e Média Empresa, como existiu entre 2013 e 2015, e inaugurará o Ministério dos Povos Originários.
Lula defende revisão das reformas trabalhista e previdenciária
O petista também defendeu, ao longo de sua campanha, a revisão de pontos da reforma trabalhista de 2017 e da reforma previdenciária de 2019. Seu plano de governo fala em revogar “marcos regressivos da atual legislação trabalhista, agravados pela última reforma”, referindo-se às mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) aprovadas no governo de Michel Temer (MDB).
Sugere ainda estender a proteção social “a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho”, citando mais especificamente trabalhadores autônomos, domésticos, em home office e mediados por aplicativos e plataformas, e reestabelecer o acesso gratuito à Justiça do Trabalho.
“Esse pessoal que trabalha com aplicativo, esses caras precisam ter uma regulação. Eles têm que ter jornada de trabalho, têm que ter descanso semanal remunerado, têm que ter algum direito, porque inventaram que eles são empreendedores, mas eles não são empreendedores”, disse o petista recentemente ao podcast Flow. “A gente precisa fazer uma regulação em que a gente garanta às pessoas um mínimo de seguridade social”.
A criação de um Código Nacional do Trabalho, com regulamentação de funções intermediadas por aplicativos e a revogação de trechos da reforma trabalhista que retirariam direitos dos trabalhadores foram algumas das condições colocadas pelo ex-adversário Ciro Gomes (PDT) para apoiar Lula no segundo turno das eleições.
A reforma da Previdência, aprovada no governo Bolsonaro, também deve passar por revisão, no que depender do novo presidente. No mês passado, ao jornal Folha de S.Paulo, o então candidato declarou, em nota, que pretende rever pontos considerados controversos, como a idade mínima para aposentadoria e os redutores da pensão por morte, que podem até mesmo ser revogados.
Seu plano de governo fala ainda em buscar um modelo previdenciário “que concilie o aumento da cobertura com o financiamento sustentável”, incluindo “milhares de trabalhadores e trabalhadoras hoje excluídos”.
Petista quer reforma política que aumente representatividade e participação popular
O PT defende uma reforma também no sistema político, voltado principalmente à ampliação de instrumentos de representatividade e participação popular. “Um déficit democrático alarmante é a absurda discrepância da representação feminina e negra nas instituições”, diz trecho do programa do partido.
Em debate realizado pelas emissoras Band e Cultura, jornal Folha de S. Paulo e portal UOL no fim de agosto, no entanto, ao ser questionado pela então adversária Simone Tebet (MDB), ele não quis se comprometer a indicar mulheres para pelo menos metade de seu ministério.
Já na campanha para o segundo turno, para receber o apoio da emedebista, afirmou que terá o maior quadro feminino possível no primeiro escalão do governo. “Quero dizer a vocês que no meu governo vai ter muita mulher no ministério, muita”, disse em um discurso em Maceió.
O plano de governo diz ainda que é preciso “retomar o processo coletivo e participativo de construção de políticas públicas por meio da restauração de todas as instâncias de participação social extintas pelo atual governo, aprimorando sua composição e fortalecendo sua institucionalidade.”
Segundo o texto, serão constituídas novas instâncias de participação popular direta, inclusive na elaboração do Orçamento, com o uso de recursos digirais.
Volta do Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e Mais Médicos
Na agenda social, a principal promessa de Lula é a volta do Bolsa Família, programa que marcou sua primeira gestão e que acabou rebatizado de Auxílio Brasil por Bolsonaro em 2021. Além da retomada do nome, o petista diz que vai renovar e ampliar o programa “para garantir renda compatível com as atuais necessidades da população”.
Ele garante que tornará permanente a parcela mensal de pelo menos R$ 600 por família, previsto, por ora, apenas até dezembro – o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023 não prevê a manutenção do valor.
Também é sua promessa pagar um adicional de R$ 150 para cada criança de até 6 anos integrante das famílias cadastradas. Hoje, o Auxílio Brasil paga um benefício de R$ 130 para crianças de até 3 anos incompletos, e de R$ 65 para as de 3 a 17 anos, ou de 18 a 21 matriculados na educação básica.
Em seu plano de governo, Lula diz ainda que o novo Bolsa Família será orientado por “princípios de cobertura crescente, baseados em patamares adequados de renda”, e que o programa viabilizará a transição, por etapas, rumo a um sistema universal e uma renda básica de cidadania. O Auxílio Brasil atende atualmente 20,65 milhões de famílias.
Se atender outra das condições que Ciro Gomes impôs para apoiá-lo no segundo turno, pode criar ainda um programa de renda mínima de R$ 1 mil, que fundiria o atual Auxílio Brasil, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o segundo-desemprego e a aposentadoria rural. A ideia é originalmente de Eduardo Suplicy (PT), mas inicialmente foi rejeitada pelo programa da campanha petista.
Entre outras políticas sociais, está prevista ainda a criação dos programas Empreende Brasil, que dará crédito a juros subsidiados a empreendedores, e Desenrola Brasil, de renegociação de dívidas de famílias com o nome em serviços de proteção ao crédito. Ambas as iniciativas devem ser oferecidos por meio de bancos públicos e privados.
“Além de gerar emprego e acabar com a fome, vou renegociar a dívida de 80 milhões de pessoas nesse país. Temos praticamente 80% das pessoas endividadas, com dívida de no máximo até R$ 4 mil, e que as pessoas não podem pagar mais”, afirmou o então candidato, no último dia 13, durante passagem por Aracaju.
“Vamos criar condições de fazer crédito mais barato, como o crédito consignado no meu tempo. Não sei se vocês foram pedir dinheiro à Caixa Econômica, ao Banco do Brasil, mas era 1,7% ao mês, o que já era muito caro. Mas os outros bancos cobravam 8%, 9% ao mês. O Estado serve para isso, para ser indutor e facilitar a vida das pessoas para ter acesso a tudo, inclusive a crédito e financiamento”.
Para receber o apoio de Simone Tebet, prometeu ainda sancionar a lei que impõe equidade salarial entre homens e mulheres na mesma função. A proposta foi aprovada pelo Congresso e chegou a ir à sanção presidencial em abril do ano passado, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pediu de volta o texto alegando que mudanças feitas no Senado haviam sido de mérito, o que exigiria nova análise dos deputados.
Ainda na área social, ele promete a retomada da política de valorização do salário mínimo, o fortalecimento o Sistema Único de Assistência Social (Suas) e a volta de “um amplo programa de acesso à moradia”, em referência ao Minha Casa, Minha Vida, de subsídio à aquisição da casa ou apartamento próprio para famílias de baixa renda. Na gestão Bolsonaro, o programa foi rebatizado de Casa Verde e Amarela.
Na saúde, Lula diz que vai retomar o Farmácia Popular, criado em seu primeiro mandato para fornecer medicamentos de uso comum gratuitamente e que teve o orçamento para 2023 cortado em 60%. Em compromisso com Simone Tebet, disse ainda que vai zerar a fila de consultas, exames e cirurgias represadas no Sistema Único de Saúde (SUS) durante a pandemia de Covid-19.
Também afirma que voltará o programa Mais Médicos, que levou profissionais para periferias de grandes cidades e regiões do interior do Brasil, mas foi alvo de críticas por trazer médicos cubanos sem a mesma qualificação exigida de homólogos brasileiros.
Em junho, à Gazeta do Povo, o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), ministro da Saúde do primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), defendeu a contratação de profissionais da ilha caribenha. Segundo ele, médicos de Cuba estão “em mais de 80 países pelo mundo” e a atuação deles foi essencial para que a pandemia de Covid-19 causasse menos efeitos em “países europeus e asiáticos”.
No início de agosto, no entanto, o senador Humberto Costa (PT-PE), ministro da Saúde entre 2003 e 2005, disse, em entrevista à rádio CBN, que a prioridade da nova fase do programa será a contratação de brasileiros.
Novo Procurador-Geral da República não deve ser indicado a partir de lista tríplice
Com mandatos passados marcados por escândalos de desvio de dinheiro público, Lula fez poucas sinalizações à pauta do combate à corrupção. Por diversas vezes, ao ser questionado, lembrou iniciativas em suas gestões anteriores que fortaleceram a transparência e a fiscalização da gestão pública.
Seu plano de governo diz, sem citar a Lava Jato, que “vai assegurar, com base nos princípios do Estado Democrático de Direito, que os instrumentos de combate à corrupção sejam restabelecidos, respeitando o devido processo legal, de modo a impedir a violação dos direitos e garantias fundamentais e a manipulação política”. O PT defende a tese de que a força-tarefa de Curitiba o perseguiu e violou seus direitos.
Diz ainda que irá “reabrir o governo, resgatar a transparência e garantir o cumprimento da Lei de Acesso à Informação”. Lula prometeu, em mais de uma ocasião, acabar com o sigilo de cem anos decretado pela gestão Bolsonaro sobre diversas informações consideradas sensíveis ao governo.
No fim de agosto, em entrevista ao Jornal Nacional, da Rede Globo, não se comprometeu a escolher um procurador da lista tríplice para a Procuradoria-Geral da República (PGR), divergindo da prática adotada nos quatro governos do PT, em que sempre era escolhido o primeiro nome indicado. Disse que, em vez disso, fará reuniões com o Ministério Público para discutir critérios de seleção que precisam ser justos para ele e para o Brasil.
“Eu não quero procurador leal a mim. O procurador tem que ser leal ao povo brasileiro, ele tem que ser leal à instituição [...]. Para mim, o que precisa é dar segurança para o povo, como eu dei quando era presidente”
Lula quer retomar Estatuto do Desarmamento, mas admite armas no campo
Na segurança pública, uma das principais mudanças em relação à política do atual governo deve ser a retomada de restrições à circulação de armas de fogo, defendida por Lula ainda antes da campanha eleitoral, quando ele afirmou que, se eleito, fecharia clubes de tiro para dar lugar a clubes de leitura.
Nas últimas semanas da campanha para o primeiro turno, em propagandas eleitorais de rádio e TV, o petista marcou sua discordância aos decretos do governo Bolsonaro que facilitaram a aquisição de armas utilizando vídeos antigos do pastor Silas Malafaia, apoiador do atual mandatário, com declarações antiarmamentistas.
Apesar disso, durante entrevista ao Canal Rural, ele disse ser legítimo que morador de áreas rurais tenham armas em casa para se defender. “Ninguém vai proibir que um dono de uma fazenda tenha uma arma, tenha duas armas. Agora, se ele tiver 20 já não é mais para defesa. Se tiver 30, pior ainda. É apenas o bom senso”
No fim de agosto, em evento com governadores, associações de policiais civis e militares e lideranças da área de segurança em São Paulo, Lula apresentou uma proposta que inclui a retomada do Estatuto do Desarmamento, vigente desde 2003 e flexibilizada por Bolsonaro.
Também está nos planos do presidente eleito a implantação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que integraria as forças policiais dos Estados e da União, além de mecanismos de fiscalização e supervisão da atividade policial, como o Ministério Público e a Defensoria Pública. Outra medida prometida é a recriação do Ministério da Segurança Pública, que existiu entre 2016 e 2018, no governo Temer, e hoje está integrada ao Ministério da Justiça.
Lula promete ainda valorizar o profissional de segurança pública, criando canais de escuta e diálogo com a categoria, além de “programas de atenção biopsicossocial” e ações de promoção e garantia do respeito da diversidade. Diz ainda que implantará a patrulha Maria da Penha em cooperação com guardas municipais, e fazer acordo com países vizinhos para combater o tráfico de drogas nas fronteiras.
Em relação às drogas, aliás, o PT defende uma nova política de enfrentamento, “intersetorial e focada na redução de riscos, na prevenção, tratamento e assistência ao usuário”, segundo consta no programa do partido. “O atual modelo bélico de combate ao tráfico será substituído por estratégias de enfrentamento e desarticulação das organizações criminosas, baseadas em conhecimento e informação, com o fortalecimento da investigação e da inteligência.”
O documento diz ainda que serão priorizados “a prevenção, a investigação e o processamento de crimes e violências contra mulheres, juventude negra e população LGBTQIA+”. “É fundamental uma política coordenada e integrada nacionalmente para a redução de homicídios envolvendo investimento, tecnologia, enfrentamento do crime organizado e das milícias, além de políticas públicas específicas para as populações vulnerabilizadas pela criminalidade”, diz trecho do texto.
Fim das emendas do relator, mas com toma-lá-dá-cá
Um dos principais desafios que deve ser enfrentado logo no início do governo, segundo o próprio Lula, será restringir as chamadas emendas de relator ao Orçamento, identificadas pela sigla RP9, e que ficaram conhecidas como “orçamento secreto”. O petista diz que pretende acabar com mecanismo, considerado hoje a principal moeda de troca do Planalto com o Congresso.
Em agosto, na entrevista ao Jornal Nacional, o então candidato disse que entre suas primeiras tarefas, caso ganhasse as eleições, estaria acabar com o orçamento secreto, que ele chamou de “usurpação de poder”. Segundo ele, isso será possível por meio de conversas com as diferentes lideranças do parlamento.
Por outro lado, ele não descartou formar aliança com o chamado centrão. “Nenhum presidente da República, em um regime presidencialista, governa se não estabelecer relação com o Congresso Nacional”, defendeu.
Em setembro, ao jornalista William Waack, da CNN Brasil, disse que indicações políticas para a cargos no Executivo – o chamado “toma-lá-dá-cá” – são normais em qualquer democracia e que, se eleito, daria o direito aos partidos de sua base a participar do governo.
“Eu agora tenho 10 partidos pequenos que fazem composição comigo. Se a gente ganhar as eleições, eles terão o direito de indicar aqui como indicaram na Alemanha, nos Estados Unidos, na França. Faz parte da democracia”, afirmou.
Duas novas indicações para o STF
Lula também diz que pretende estabelecer uma relação mais cordial com o Judiciário, que foi reiteradamente atacado por Bolsonaro no atual governo. “É necessário que seja estabelecido diálogo permanente com os atores do Judiciário, com respeito a sua independência, para estimular o aperfeiçoamento, em todos os níveis do sistema de justiça, da prevalência da cidadania e da soberania democrática”, diz trecho de seu plano de governo.
Em seu terceiro mandato, o petista indicará dois novos ministros para o Supremo Tribunal Federal (STF) após a aposentadoria de Ricardo Lewandowski, em maio de 2023, e de Rosa Weber, cinco meses depois. A Suprema Corte, formada por 11 ministros, continuará com sete indicados pelo PT, uma vez que Lewandowski foi nomeado pelo próprio Lula, enquanto Rosa entrou no governo de Dilma.
Em seus mandatos anteriores, Lula indicou ainda os atuais membros do STF Cármen Lúcia e Dias Toffoli, além de Cezar Peluzo, Ayres Britto e Joaquim Barbosa, já aposentados, e Menezes Direito, falecido em 2009.
Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin são indicações de Dilma. Alexandre de Moraes foi nomeado na gestão de Temer, enquanto Kássio Nunes Marques e André Mendonça são da cota de Bolsonaro. Gilmar Mendes, o decano da corte, foi indicado por Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Militares devem deixar a administração pública e voltar para os quartéis
Militares da reserva e da ativa que ganharam espaço no governo de Bolsonaro devem voltar para os quartéis no novo mandato de Lula. “Nós vamos ter que começar o governo sabendo que nós temos que tirar quase 8 mil militares que estão em cargos de pessoas que não prestaram concurso. Isso não pode ser motivo de bravata, tem de ser motivo de construção”, afirmou o petista em um encontro com a diretoria da Central Única dos Trabalhadores (CUT) ainda em abril.
Em setembro, durante comício em Curitiba, Lula defendeu que as Forças Armadas cumpram o papel de garantir a soberania do país e criticou a atuação de militares no processo de auditoria das eleições.
“As nossas Forças Armadas não tinham que estar preocupadas em fiscalizar urnas. Quem tem obrigação de fiscalizar é a Justiça Eleitoral, os partidos políticos e os candidatos”, disse.
“As Forças Armadas vão ter que cumprir com a sua função de garantir a soberania deste país contra possíveis inimigos externos. Tomando conta do nosso território, da nossa fronteira, do nosso espaço aéreo e da nossa fronteira marítima. Nós queremos nossas Forças Armadas preparadas, equipadas e bem formadas para ninguém se meter a invadir o Brasil”, acrescentou.
Aborto como questão de saúde, veto ao homeschooling e fim dos colégios cívico-militares
Outra grande diferença em relação ao atual governo diz respeito a posicionamentos ideológicos. Em abril, contrastando com o discurso de Bolsonaro, Lula defendeu que o aborto é “uma questão de saúde pública” a que “todo mundo teria direito”. Uma versão prévia do plano de governo do petista dizia que o Estado deveria “assegurar às mulheres o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.
Na versão final do documento, no entanto, o trecho acabou excluído em um aceno ao eleitorado mais conservador. Já na campanha do segundo turno, Lula afirmou em uma carta aos evangélicos ser contra o aborto, destacando que o tema compete ao Congresso Nacional. Ainda assim, é um sinal de que o assunto pode voltar ao debate público no próximo governo.
Na educação, Lula promete “resgatar e fortalecer os princípios do projeto democrático de educação, que foi desmontado e aviltado”. Uma das grandes mudanças promovidas no governo Bolsonaro foi a criação de uma nova Política Nacional de Alfabetização (PNA), que prevê que os programas devam ser fundamentados nos pilares da consciência fonêmica sistemática, e que a família participe do processo, em oposição à visão construtivista.
Para o PT, “é preciso fortalecer a educação pública universal, democrática, gratuita, de qualidade, socialmente referenciada, laica e inclusiva, com valorização e reconhecimento público de seus profissionais”.
O partido do presidente eleito também é contra a prática da educação domiciliar (homeschooling), à qual Bolsonaro é favorável. O programa de governo do atual mandatário, caso fosse reeleito, defendia “a premissa de que os pais são os principais atores na educação das crianças, e não o Estado”.
O modelo de escola cívico-militar, promovido por Bolsonaro, também deve ser descontinuado no novo governo Lula. “Quem tem que cuidar do processo educacional são os professores, a comunidade acadêmica”, disse o líder do PT na Câmara, Reginaldo Lopes, à rádio CBN, em julho. “A escola sempre tem que ser sempre pedagógica. Os militares não tem que fazer gestão do processo pedagógico.”
O próximo governo pretende ainda implantar “um amplo conjunto de políticas públicas de promoção da igualdade racial e de combate ao racismo estrutural”, termo questionado por membros da gestão de Bolsonaro, como o ex-presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo. E também a continuidade das políticas de cotas sociais e raciais.
Outras pautas identitárias previstas no plano de governo do PT incluem “a proteção dos direitos e dos territórios dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais” e a garantia de “direitos, o combate à discriminação e o respeito à cidadania LGBTQIA+ em suas diferentes formas de manifestação e expressão”.
Política internacional: foco em América Latina e demais países em desenvolvimento
Nas relações internacionais, o novo governo petista deve retomar a política que caracterizou os mandatos anteriores do partido. O programa do PT prevê, por exemplo, a integração da América do Sul, da América Latina e do Caribe com vistas ao desenvolvimento da região, e a cooperação internacional Sul-Sul, com América Latina e África.
Lula defende, mais especificamente, o fortalecimento dos blocos do Mercosul (Mercado Comum do Sul), da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Durante a campanha, a política externa do governo Bolsonaro foi duramente criticada por seu futuro sucessor. “O mundo está aberto ao Brasil. Agora, você tem um presidente que não recebe ninguém aqui e que não viaja para ninguém, que não gosta de conversar”, disse, em entrevista ao Canal Rural. “Vem o presidente da França, ele vai fazer a barba e não atende; vem o presidente de Portugal, ele zomba do presidente e não atende.”
Também está no programa do partido o estabelecimento de parcerias “que forem as melhores para o país, sem submissão a quem quer que seja”, em referência ao Ocidente, representado por Estados Unidos e União Europeia. O documento defende a construção de uma nova ordem global, comprometida com o multilateralismo e que contemple os interesses dos países em desenvolvimento.
“Retomaremos e ampliaremos as políticas públicas para a população brasileira no exterior e seus direitos de cidadania a partir de acordos bilaterais, em condições de reciprocidade, para reconhecimento de direitos e uma vida melhor para as populações migrantes”, diz ainda o texto.
Defesa da Amazônia com exploração sustentável
A plataforma de governo do PT já dedica espaço relevante para a pauta ambiental, mas a agenda foi ampliada na negociação para atrair o apoio da ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede), à campanha de Lula. A então candidata à deputada federal condicionou a adesão à candidatura, anunciada no dia 12 de setembro, à incorporação de um conjunto de 26 compromissos ligados à causa.
O presidente eleito comprometeu-se a desenvolver uma política ambiental transversal e integrada em seu governo. Consta da pauta ainda itens como a conclusão da demarcação de terras indígenas e territórios quilombolas; a criação da Autoridade Nacional de Segurança Climática; a retomada e atualização dos planos de prevenção e controle do desmatamento da Amazônia e do Cerrado; e a recomposição e ampliação de quadros técnicos e de orçamentos de órgãos como Ministério do Meio Ambiente, Ibama, ICMBio e Serviço Florestal Brasileiro (SFB).
No plano do PT apresentado originalmente à Justiça Eleitoral, o partido defende o compromisso com a sustentabilidade social, ambiental e econômica e com o enfrentamento das mudanças climáticas. “Isso requer cuidar de nossas riquezas naturais, produzir e consumir de forma sustentável e mudar o padrão de produção e consumo de energia no país, participando do esforço mundial para combater a crise climática.”
No fim de agosto, em reunião com eurodeputados e representantes de partidos europeus de esquerda, Lula defendeu parcerias com a União Europeia para a exploração sustentável da Amazônia. “A Amazônia é de interesse de sobrevivência da humanidade e, portanto, todos têm responsabilidade para ajudar a cuidar dela. A gente não quer transformar a Amazônia num santuário da humanidade, a gente quer explorar da Amazônia aquilo que a biodiversidade pode oferecer”, afirmou o então candidato.
Em entrevista à Rádio Mais Brasil FM, de Manaus, ele disse que é possível conciliar o desenvolvimento econômico da região com a preservação ambiental. “Nós temos que saber que é plenamente possível não fazer mais desmatamento, não fazer mais queimada, e tentar explorar cientificamente a biodiversidade existente em toda a Amazônia. Para que a gente possa tirar dessa riqueza o fortalecimento da indústria na área de fármacos, na área de cosméticos”, disse.
Ele afirma ainda que, em seu governo, o agronegócio caminhará junto com o meio ambiente. Na entrevista que concedeu ao Jornal Nacional, em agosto, chegou a chamar parcela do setor de “fascista”, mas disse que “empresários sérios” que tem comércio com a Europa e com a China não querem desmatar e querem preservar rios e a fauna.
Regulação dos meios de comunicação
Uma das propostas mais controversas que Lula pretende levar adiante é a chamada regulação dos meios de comunicação, que, para seus opositores, abriria espaço para censura prévia da informação.
Em entrevista ao apresentador Ratinho, do SBT, no dia 22 de setembro, ele argumentou que a medida não é prerrogativa do presidente, mas do Congresso Nacional. Segundo ele, a ideia é regulamentar a comunicação eletrônica “de acordo com o interesse da sociedade”.
“É importante a gente lembrar que a última regulação foi de 1962; a gente ainda vivia no tempo do telégrafo. Então é preciso adaptar a legislação à realidade contemporânea que estamos vivendo”, disse.
Seu plano de governo registrado na Justiça Eleitoral apresenta aspectos gerais da proposta, que abrange liberdade de expressão, neutralidade da rede, combate a “fake news” e democratização do acesso às mídias digitais, entre outros assuntos.
“A liberdade de expressão não pode ser um privilégio de alguns setores, mas um direito de todos, dentro dos marcos legais previstos na Constituição, que até hoje não foram regulamentados”, explica o programa. “Esse tema demanda um amplo debate no Legislativo, garantindo a regulamentação dos mecanismos protetores da pluralidade, da diversidade, com a defesa da democratização do acesso aos meios de comunicação.”
“É preciso, ainda, fortalecer a legislação, dando mais instrumentos ao sistema de Justiça para atuação junto às plataformas digitais no sentido de garantir a neutralidade da rede, a pluralidade, a proteção de dados e coibir a propagação de mentiras e mensagens antidemocráticas ou de ódio. Paralelamente, é dever do Estado universalizar o acesso à internet de qualidade, garantindo a democratização de seu uso por toda a população, especialmente na rede pública de educação básica.”
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Pesquisa aponta que 47% dos eleitores preferem candidato que não seja apoiado por Lula ou Bolsonaro
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