O candidato a presidente da República Luiz Inácio Lula Silva (PT) tem recorrido ao chamado "princípio de autodeterminação dos povos" para justificar por que não critica ditaduras latino-americanas de esquerda, tais como Cuba, Venezuela e Nicarágua. Na semana passada, em entrevista ao Jornal Nacional (JN), o ex-presidente usou esse argumento quando questionado pelo jornalista Willian Bonner se o apoio a ditaduras de esquerda não soa como contradição a um democrata.
"Primeiro, para [ser] um democrata, a gente precisa respeitar a autodeterminação dos povos. Cada país cuida do seu nariz. É assim que eu quero para o Brasil e é assim que eu quero para os outros", disse Lula, antes de afirmar ser "favorável à rotação de poder". "Eu tenho na minha cabeça que não existe ninguém imprescindível e insubstituível. Quando o cara começa a pensar assim, ele está virando um ditador", completou.
A autodeterminação dos povos é um princípio do direito internacional concebido para garantir a soberania de uma nação, reconhecendo ao seu povo o direito de se autogovernar, de realizar suas escolhas sem intervenção externa, e de determinar soberanamente o próprio estatuto político.
Mas o princípio, diferentemente do que pensa Lula, não impede que regimes ditatoriais sejam criticados e, em casos de grave violação de direitos humanos, sofram intervenção externa aprovada pela comunidade internacional – o que já ocorreu.
Em 1941, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos aprovaram a Carta do Atlântico, na qual constava a autodeterminação dos povos, além das diretrizes a serem seguidas pelas nações no pós-guerra e definição de diversos princípios. Um ano depois, os países que formavam o bloco dos aliados também concordaram com o conteúdo da mesma carta.
No ano de 1945, com o fim da 2ª Guerra Mundial, 26 nações ratificaram as diretrizes ao assinarem a Declaração das Nações Unidas. Após esse acordo entre os países, a autodeterminação dos povos tornou-se um direito dentro dos âmbitos diplomáticos.
"Sob o ponto de vista de uma concepção idealista das relações internacionais, o princípio da autodeterminação dos povos está previsto no artigo 4º da Constituição do Brasil. É uma reprodução do que já está previsto no Artigo 1º da Convenção Internacional sobre Direitos, Econômicos, Sociais e Culturais da ONU [Organização das Nações Unidas], e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos no qual consta o seguinte: 'todos os povos têm o direito de autodeterminação'", explica o professor Cássio Faeddo, mestre em Direitos Fundamentais e especialista em Relações Internacionais.
Autodeterminação dos povos não é escudo para regimes ditatoriais
Em relação cenário internacional, Lula afirmou ainda durante a sabatina do JN que, se eleito, o Brasil voltará a ser "amigo de todo mundo". "Se eu ganhar as eleições, você vai ver a enxurrada de amigos que estão desaparecidos que vão visitar o Brasil porque o Brasil vai ser amigo de todo mundo. O Brasil não tem contencioso internacional", disse.
Perguntado sobre o cenário de polarização, Lula disse que ela existe “em tudo o que é lugar”, mas “não tem polarização no Partido Comunista Chinês, no Partido Comunista cubano”, já que há apenas uma corrente dominante.
Na mesma semana, em entrevista à imprensa estrangeira, Lula afirmou que é preciso respeitar a Venezuela. "Precisamos tratar a Venezuela com respeito, sempre desejando que a Venezuela seja o mais democrática possível. Eu defendo a alternância de poder não apenas para mim, mas para a Venezuela também", disse o candidato petista.
Para Leonardo Paz, professor do Departamento de Relações Internacionais da Faculdade Ibmec, Lula usa a autodeterminação dos povos para se defender das críticas que recebe pelos acenos feitos às ditaduras de esquerda. Contudo, para o professor, o princípio não elimina o direito de que o petista possa criticar governantes que desrespeitem os direitos humanos.
"Em princípio, ele não está errado, cada povo tem o direito de 'cuidar do seu nariz' sem ter outros países interferindo em seus assuntos internos. Mas isso não quer dizer que não se possa criticar ações concretas de outros governantes, como desrespeito a direitos humanos ou ações de violência. São coisas distintas", explica Paz.
Na mesma linha, Priscila Caneparo, doutora em Direito Internacional e autora do livro "Autodeterminação dos Povos e Direito das Minorias", explica que é preciso desmitificar as falas recentes do ex-presidente petista. "Quando ele [Lula] fala que o Brasil não deve se intrometer nas questões internas de outros Estados, ele deveria estar se referindo à soberania interna do Estado. Quando a gente analisa a ideia de autodeterminação dos povos, isso não está ligado ao governo, mas ela se atrela aos povos desse Estado", argumenta.
Princípio visa garantir direitos de minorias e povos tradicionais
Ainda de acordo com Caneparo, a fala do ex-presidente não está relacionada com o princípio da autodeterminação. "A autodeterminação dos povos está atrelada ao respeito para com as diferentes culturas e minorias étnicas e linguísticas que tem dentro desse Estado. O que ele [Lula] falou não está ligado à autodeterminação dos povos, mas sim à soberania interna", explica.
Além de não impedir críticas ou reações aos regimes ditatoriais, a autodeterminação dos povos surgiu como forma de garantir o direito de minorias ou povos tradicionais. Na avaliação do professor Cassio Faeddo, o princípio pode ser limitado quando há violações dos direitos humanos em determinada região.
"Para quem conheceu as graves violações de direitos humanos ocorridas em vários lugares do mundo, a exemplo de Ruanda, em 1994, situação de calamidade na qual milícias hutus exterminaram pelos menos 800 mil tutsis, tendo a ONU mero papel de espectador, o princípio da autodeterminação dos povos e de não intervenção, encontram limites na própria preservação dos direitos humanos", explica.
Após esse episódio de Ruanda, a ONU passou a utilizar as prerrogativas do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas que permite a intervenção em caso de desrespeito aos direitos humanos. "Como foi mesmo o caso ocorrido no Haiti sob o comando do Brasil", diz o professor. Em 2004, o Brasil liderou uma missão de paz organizada pela ONU no país caribenho.
Em 2021, um relatório da Missão Internacional Independente da ONU para a Venezuela indicou que a Justiça do país serviu durante anos para cometer graves violações aos direitos humanos contra opositores do regime de Nicolás Maduro. "No meio da profunda crise de direitos humanos, a independência do Poder Judiciário se vê profundamente corrompida, o que colocou em risco a função de distribuir justiça e salvaguardar os direitos fundamentais", disse a presidente da Missão, Marta Valiñas.
Na entrevista aos veículos estrangeiros, Lula cobrou que os demais países também tratem a Venezuela com respeito. "Espero que a Europa trate com respeito, espero que os Estados Unidos restabeleçam relações com a Venezuela. Só tem um jeito de restabelecer a convivência democrática: é você não tentando criminalizar as pessoas", disse.
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