O presidente Jair Bolsonaro (PL) desembarca em Nova York, na noite desta segunda-feira (19), onde fará o discurso de abertura dos debates gerais da 77ª Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), na terça-feira (20) pela manhã. Por uma estratégia eleitoral, é esperado um pronunciamento voltado ao público interno em forma de uma "prestação de contas" à comunidade internacional.
O discurso terá como foco exaltar o legado do governo e deve contemplar diferentes pontos, como: a recuperação econômica e dos investimentos; os esforços ao combate à pandemia da Covid-19 e à guerra na Ucrânia; as ações do governo pela defesa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável; a importância do Brasil para a segurança alimentar mundial.
Além de um "balanço" sobre seu governo, Bolsonaro também tende a falar sobre temas da política externa. É esperada uma menção em defesa da democracia e dos direitos humanos, em uma referência a ditaduras na América Latina; uma defesa pela reforma do Conselho de Segurança da ONU; e um debate sobre a reação ao mundo pós-pandemia em meio a conflitos internacionais em curso.
Bolsonaro vai aos Estados Unidos depois de passar dois dias em Londres, onde acompanhou o funeral da rainha Elizabeth II. Em entrevista à rede de tevê SBT no domingo (18), o presidente foi indagado sobre o conteúdo do discurso que irá proferir na ONU e deu ênfase à questão ambiental.
"Hoje o Brasil é uma referência para o mundo na questão ambiental. Ninguém tem uma legislação como a nossa, ninguém tem dois terços do seu território preservado, [nosso território] se encontra da mesma forma que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil em 1500", afirmou.
"Pretendo falar alguma coisa sobre energia limpa, no caso hidrogênio verde, em especial o nosso Nordeste, uma potência. O Brasil, além do agronegócio, além de alimentar mais de um bilhão de pessoas ao redor do mundo, abriu-se uma porta enorme nas eólicas ditas 'offshore', ou seja, os nossos cataventos na costa do Brasil, em especial do Nordeste. Temos um potencial pra 50 Itaipu Binacional, não só vamos ter uma energia mais em conta, bem como poderemos ser exportadores de hidrogênio verde", completou.
Encontros bilaterais e agenda do chanceler
Os assuntos citados em seu discurso nortearão algumas reuniões bilaterais que Bolsonaro poderá ter em Nova York. A previsão é de que ele se reúna com os presidentes do Equador, Guillermo Lasso; da Guatemala, Alejandro Giammattei; da Polônia, Andrzej Duda; e da Sérvia, Aleksandar Vučić, e também, com o secretário-geral da ONU, António Guterres. Por incompatibilidade de agendas e pelo curto tempo que estará em Nova York, é improvável que ele se reúna com chefes de Estado das principais potências econômicas.
Na conversa com Guterres, o interesse é tratar de temas como o conflito na Ucrânia, a crise alimentar mundial, a recuperação das economias nacionais no período pós-pandemia e a reforma do Conselho de Segurança com participação permanente do Brasil. O país já participa do conselho neste ano e no próximo como membro não-permanente.
O ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto França, irá compor a comitiva e terá vários encontros bilaterais. Vai se reunir com os chanceleres de Japão, Rússia, Bielorrússia, El Salvador, Suriname, Emirados Árabes, Irã, Bahrein, Guiana, Camboja, Indonésia, Senegal e Turquia, além do secretário-geral da Liga Árabe.
O chanceler brasileiro também vai participar de uma reunião ministerial do "G4", o grupo formado por Japão, Alemanha, Brasil e Índia que discute a reforma do Conselho de Segurança; vai a uma reunião com os chanceleres de Rússia, Índia, China e África do Sul no âmbito dos Brics; terá uma reunião com representantes de Índia e África do Sul no âmbito do Ibas, o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul; e um café da manhã com os ministros da Secretaria-Geral Ibero-Americana.
Economia e corrupção: que acenos Bolsonaro fará ao eleitorado na ONU
Assim como em 2021, o discurso econômico deve ganhar um destaque especial. Sobre esse tema, são esperadas falas de Bolsonaro sobre como sua gestão trabalhou para mitigar os impactos da guerra na Ucrânia ao Brasil e colocou o país em uma trajetória de resgate dos investimentos e de crescimento econômico.
É previsto que o presidente enalteça ações sociais, como a criação do Auxílio Brasil e do auxílio emergencial, e tributárias, como a redução de impostos. O objetivo é se apresentar como o responsável por evitar um colapso do tecido econômico e uma escalada dos custos após as crises globais, e como isso possibilitou a geração de empregos e uma desaceleração da inflação a projeções inferiores às dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Alemanha.
Também são esperadas falas de Bolsonaro de que, em seu governo, não houve corrupção, e sobre como sua gestão atuou para fortalecer a promoção da integridade e o combate a malfeitos na administração pública. Outro comentário que deve estar presente é a crítica à crise política, econômica e humanitária gerada pela "ditadura bolivariana" venezuelana, como disse nos últimos dois discursos.
A fim de evitar um discurso mais político e eleitoral, interlocutores do núcleo político da campanha de Bolsonaro afirmam não esperar uma menção nominal a países como Argentina, Colômbia e Chile. As três nações foram citadas ao longo das eleições dentro de um contexto integrado às estratégias eleitorais de Bolsonaro. Críticas veladas às ditaduras da Venezuela e Nicarágua, porém, não são descartadas.
O secretário de Assuntos Multilaterais Políticos do Itamaraty, embaixador Paulino Franco, admite que é possível que o presidente faça algum discurso em defesa à democracia, mas desconhece se haverá referências nominais a países específicos. "Em relação à democracia, poderemos reiterar que a democracia é representativa. A liberdade de imprensa e as liberdades individuais são fundamentais para qualquer país. Acho que poderá ser a nossa linha de argumentação", declarou na última quinta-feira (15), durante coletiva de imprensa sobre a Assembleia-Geral da ONU.
O que esperar das falas sobre meio ambiente e sustentabilidade na ONU
Além do hidrogênio verde e do potencial eólico da costa nordeste do Brasil, Bolsonaro deve destacar o crescimento sustentável do agronegócio brasileiro e como o setor alimenta o mundo com uma agricultura de baixo carbono, mesmo com uma parcela baixa de área agricultável do território nacional. Como nos discursos dos três anos anteriores, ele deve ressaltar que só a região amazônica equivale à área da Europa Ocidental.
O secretário de Assuntos Multilaterais Políticos do Itamaraty acredita que o discurso deve reiterar o compromisso firmado na última Cúpula do Clima (COP 26), quando apresentou seu compromisso de reduzir as emissões de gases de efeito estufa em até 50% em 2030 — tomando como base o ano de 2005 —, chegar à neutralidade climática em 2050 e atingir o desmatamento "zero" em 2030.
Também é possível que seja destacado os esforços de redução das emissões de metano e uma série de compromissos internacionais assumidas. "Alguns de caráter político, outros de caráter vinculante. A NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada] é um exemplo, e queremos seguir adiante nessa área", disse Paulino Franco.
O secretário também imagina possa ser reafirmado pelo presidente a necessidade de garantir a segurança alimentar do mundo pela promoção e intensificação do uso sustentável da terra e da produção agropecuária. São esperadas menções a subsídios agrícolas que auxiliam a produção sustentável. O discurso também deve destacar a matriz energética brasileira como uma das mais limpas do mundo entre as grandes economias mundiais.
Sobre a Amazônia e a preservação ambiental, o presidente deve destacar os esforços de combate ao desmatamento ilegal, diz Paulino. "E sempre tomando as coisas nas suas devidas proporções, que o combate à mudança do clima é um esforço coletivo, global", afirmou. "Há países que têm uma responsabilidade bem maior que o Brasil, aqueles que emitem mais gases de efeito estufa por conta do uso intensivo de energias fósseis", complementou.
O que pode ser dito sobre Conselho de Segurança, OCDE, Ucrânia e Covid-19
Ao longo do discurso de Bolsonaro, ele reforçará a defesa pela reforma do Conselho de Segurança da ONU e também falará sobre os esforços do Brasil para a ascensão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o grupo dos países mais desenvolvidos.
"O governo de um modo geral tem reiterado e dito publicamente sobre a nossa prioridade atribuída à nossa entrada à OCDE. E que, para tanto, nós temos feito e já iniciamos um exercício complexo e que toma tempo. Demorará pelo menos dois anos de preparação à nossa ascensão. Continua sendo uma prioridade, é muito provável que seja mencionado no texto do presidente da República", disse o secretário de Assuntos Multilaterais Políticos do Itamaraty.
Sobre a reforma do Conselho de Segurança, ele reiterou que o Itamaraty defende essa pauta há muito tempo e entende que há uma necessidade do organismo ser mais "representativo" para que possa ser mais "legítimo". "E que a sua atuação e as respostas que possa fornecer tenham um caráter mais eficaz. É o nosso propósito", destacou. "Dito isso, todos sabemos também que é um processo muito lento, com pouquíssimos avanços e não há, até onde eu sei, a perspectiva de que isso possa ser resolvido no curto prazo", acrescenta.
Em relação à guerra na Ucrânia, o objetivo é que Bolsonaro reitere no discurso o desejo do Brasil de buscar uma solução duradoura para a crise no Leste Europeu. "As Nações Unidas têm de ter um papel — o Conselho de Segurança especialmente — preponderante na resolução desse conflito", disse. O discurso também deve defender a integridade territorial dos países e que o conflito tem que ser resolvido rapidamente e "pelos meios" à disposição na ONU.
A respeito da Covid-19, Bolsonaro deve reiterar o debate sobre como os países vão reagir ao mundo pós-pandemia e defender a necessidade de cooperação no plano multilateral, especialmente no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS). Paulino destacou que o Brasil tem atuado de forma ativa no debate e que o país representa as Américas em um grupo seleto de negociadores cujo propósito é chegar a um tratado sobre pandemias.
Como o discurso pode se diferenciar em relação aos últimos três na ONU
A se confirmar a previsão de um discurso mais voltado ao público interno, o pronunciamento de Bolsonaro se diferenciará em relação aos dos últimos três anos. É provável, porém, que tenha um tom mais próximo ao do ano passado, o primeiro que foi aconselhado pela equipe do chanceler Carlos França.
O discurso de 2021 foi focado em um Brasil da retomada dos investimentos e do crescimento econômico mesmo diante do enfrentamento da pandemia. Já o discurso de 2020 foi voltado a prestar contas sobre o enfrentamento à pandemia. Em 2019, foi mais duro e centrado sobre como o Brasil esteve à "beira do socialismo", com direito a críticas nominais aos regimes ditatoriais cubano e venezuelano.
A hipótese de um discurso eleitoral feito por Bolsonaro não seria uma situação inédita. Em 2014, durante sua campanha à reeleição, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) exaltou seu governo e ações adotadas ao longo de sua gestão. O pronunciamento a levou a ser questionada pela imprensa se ela teria ido à ONU como candidata. A petista rebateu e disse que o discurso foi parecido com o dos anos anteriores.
O embaixador Paulino Franco diz que cabe ao presidente decidir qual linha seguirá e entende que ele não pode deixar de ser um candidato à reeleição. O secretário do Itamaraty cita que outros países também estão em eleições e não descarta que seus chefes de Estado façam um discurso eleitoral, a exemplo das eleições legislativas nos Estados Unidos. "O presidente Biden estará lá também e defenderá sua política externa e até interna, e imagino que falará dos êxitos que ele entende que tem tido na primeira metade do seu mandato", diz.
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