A criação de um novo benefício para caminhoneiros, bem como o pagamento de valores maiores do Auxílio Brasil e do vale-gás para famílias pobres, embute o risco de responsabilização do presidente Jair Bolsonaro (PL) no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com base na lei eleitoral vigente. No limite, a depender de como essas benesses sejam distribuídas e anunciadas, abre-se uma brecha para que seja condenado por abuso de poder político e econômico na campanha, condutas que podem levar à cassação de seu registro de candidatura e, em caso de reeleição, à perda do novo mandato.
É o que dizem advogados especializados em direito eleitoral e constitucional consultados pela Gazeta do Povo a respeito da PEC 16, proposta de emenda à Constituição em discussão no Senado e de interesse do governo. A PEC busca atenuar o impacto do aumento do preço dos combustíveis, não apenas sobre o setor de transporte, mas também no bolso da população pobre, mais prejudicada pela inflação, que também cresce com a alta do diesel, por exemplo.
Inicialmente, o plano do governo federal era pressionar os estados a reduzir o ICMS sobre o diesel, o gás de cozinha e o etanol, oferecendo a eles, como contrapartida, um repasse de R$ 26,9 bilhões até o fim do ano. Diante de resistência de grande parte dos governadores, e de um efeito incerto na redução do preço final para o consumidor, senadores governistas mudaram a PEC.
O novo texto, em elaboração, cria um benefício de mil reais, que seria pagos todo mês, até dezembro, para 900 mil caminhoneiros autônomos, a um custo total de R$ 5,4 bilhões. Além disso, a PEC aumentaria o Auxílio Brasil, que passaria de R$ 400 para R$ 600 até o final do ano, gerando despesa de R$ 21,6 bilhões. O vale-gás passaria de R$ 50 para R$ 120, pagos a cada dois meses para famílias pobres, ao custo de R$ 1,5 bilhão.
Da redação inicial, seria mantida apenas a compensação aos estados pela redução a 12% das alíquotas de ICMS para o etanol, com custo de R$ 3,8 bilhões para os cofres federais. Por fim, os estados ainda levariam R$ 2,5 bilhões para compensar a gratuidade dos idosos no transporte público. Tudo isso só valeria até o final deste ano e custaria, no total, R$ 34,8 bilhões, que seriam liberados pelo governo fora do teto de gastos.
Uma das principais preocupações, no entanto, é com os limites da lei eleitoral (nº 9.504/97), que proíbe a União em seu artigo 73 de transferir recursos para estados e municípios de forma voluntária nos três meses que antecedem as eleições, bem como a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios em ano eleitoral.
A própria lei eleitoral, no entanto, traz exceções. Os repasses federais para entes subnacionais podem ser feitos para cumprir “obrigação formal preexistente” ou “atender situações de emergência e de calamidade pública”. Da mesma forma, a distribuição de benesses diretamente para a população – ou segmentos dela – pode ocorrer em casos de calamidade pública, estado de emergência ou dentro de programas sociais que já eram executados no ano anterior.
E é com base nessas ressalvas que os senadores governistas tentarão blindar Bolsonaro. Relator da PEC, o senador Fernando Bezerra (MDB-PE) disse, na última sexta-feira (24), estar mais seguro em relação à possibilidade de aumentar o valor de benefícios sociais já existentes, casos do Auxílio Brasil e do vale-gás. Mas, em entrevista à imprensa, afirmou estar mais preocupado com a criação do auxílio para caminhoneiros – ele disse que a consultoria do Senado e a Advocacia-Geral da União (AGU) estudam uma forma de contornar essa vedação.
O artifício já anunciado é que a PEC declare um “estado de emergência”, relacionado aos transportes e à logística, em razão da crise global no fornecimento de combustíveis, que fez os preços aumentarem no mundo todo.
“Nós estamos vivendo, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, uma emergência do ponto de vista dos gargalos logísticos [...] Existe um reconhecimento de que a situação que estamos enfrentando no setor de transporte, como um todo, mas de forma particular no transporte de carga, é emergencial. Os Estados Unidos estão inclusive utilizando a força aérea americana para transportar produtos, para evitar desabastecimento”, afirmou Bezerra, na sexta, a jornalistas.
Não há blindagem total a Bolsonaro, dizem juristas com base na lei eleitoral
Ainda assim, segundo advogados ouvidos pela reportagem, não haveria blindagem total a Bolsonaro. Eles alegam que, se o TSE entender que durante a campanha o presidente usou esses benefícios para se projetar e captar votos, haveria um desequilíbrio na disputa, que justificaria uma condenação por abuso de poder político e econômico.
“O que a Constituição quer? Ela pretende um jogo limpo entre competidores”, disse o constitucionalista Saul Tourinho. Para ele, caso a PEC seja aprovada, obviamente que Bolsonaro estaria obrigado a cumprir seus comandos, repassando os recursos e distribuindo os benefícios. Mas, ainda assim, ele poderia, no ato dos pagamentos, “exorbitar, dar finalidade distinta do que se imaginou à que serviria aquela lei ou emenda constitucional”.
“Pode dar um ar de comício para isso, pode dar um ar de promessa indevida eleitoral para isso” afirma, o que poderia levar o TSE a puni-lo. Uma cassação de registro ou de candidatura, por suposto abuso de poder, poderia ser pedida por um partido ou pelo Ministério Público.
Tourinho também não descarta a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal (STF) ou mesmo o TSE, caso provocado pela oposição, considerar que não estaria caracterizada situação de emergência, condição para a concessão de novos benefícios.
É o que também entende Carlos Enrique Caputo Bastos, advogado e doutor em direito. Ele cita julgamentos recentes em que o TSE condenou governadores que também alegaram alguma situação emergencial, seja para conceder aumentos a policiais – Luiz Fernando Pezão, do Rio de Janeiro, declarado inelegível em 2018 – ou para doar cabras a pequenos pecuaristas em situação de pobreza – Jackson Lago, do Maranhão, cassado em 2009.
“Eu não tenho dúvida de que o mérito em relação ao critério adotado, como de emergência, poderá ser analisado pelo TSE. E custo a crer que eventual contingência econômica que venha a ser verificada, por conta de fatores externos que atinjam indiretamente a questão energética, dificilmente será considerada emergência para os fins das leituras da lei eleitoral. Essa questão do aumento do combustível, da guerra, são contingências econômicas previsíveis, ou pelo menos antecipáveis em relação a seus efeitos”, diz o advogado.
Para a advogada Isabel Mota, coordenadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), há risco para o presidente Bolsonaro mesmo em relação ao aumento de benefícios já existentes. Poderia haver tolerância em relação a reajustes que impliquem apenas em atualização monetária, para correção de valores pela inflação. O que for além disso poderia representar um abuso, especialmente se for usado para desequilibrar a disputa eleitoral.
“O Auxílio Brasil não foi criado recentemente, foi uma transformação de um programa que já existia há muito tempo, o Bolsa Família. E quando houve alteração do nome, já se previa que poderia ser um valor maior. Então, pode ser indicado que a atualização desse benefício para manter poder de compra era necessário. Agora, nesse valor, talvez exorbite dessa atualização monetária, em que pese a gente estar num quadro de inflação bem galopante no país”, diz.
Parecer sobre a PEC dos combustíveis será apresentada nesta terça
Nesta terça-feira (28), o relator Fernando Bezerra deverá apresentar seu parecer para a PEC, que está pautada para votação no plenário do Senado na quarta-feira (29). A expectativa é que o texto apresente uma justificativa bastante sólida para a configuração do estado de emergência. Outra forma de blindar Bolsonaro é o fato de a PEC ser de autoria de senadores, não do próprio presidente, que apenas estaria obrigado a cumpri-la.
Desde a semana passada, o senador tem consultado informalmente ministros do TSE para garantir que não haja punição a Bolsonaro ou aos autores e apoiadores da proposta. Desde o ano passado, o presidente mantém uma relação tensa com a Corte, acusando-a de fraudar as eleições. Por isso, vários ministros já sugeriram a possibilidade de cassar a candidatura do presidente à reeleição caso essas acusações afetem a normalidade do pleito.
Também para reduzir esse quadro de insegurança jurídica, Bolsonaro editou um decreto estabelecendo que a AGU seja obrigatoriamente consultada sobre propostas de atos normativos do governo que possam gerar dúvidas de desconformidade com a legislação eleitoral e financeira aplicável ao final do mandato. A AGU é chefiada pelo ministro Bruno Bianco, que é um homem de confiança do presidente. O texto foi publicado no Diário Oficial desta segunda-feira (27).
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