A Gazeta do Povo está publicando uma série de reportagens sobre temas que impactam a sociedade e que são vitais para a qualidade de vida das pessoas, para o avanço dos negócios e para o desenvolvimento de todo o Paraná. O propósito é, com a proximidade das eleições, estimular o debate sobre questões prioritárias ao Paraná e à próxima gestão do governo estadual. O recorte aqui é a segurança pública.
Levantamento recente feito pela Gazeta do Povo mostrou que o leitor deseja que a gestão 2023-2026 do governo estadual priorize ações efetivas para área da segurança, que respondeu por 37% dos votos da enquete, à frente de infraestrutura (27%), educação (21%), saúde (8%) e funcionalismo (7%).
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Para fazer frente a esta demanda, qualificar os policiais, fazer melhor uso da tecnologia, dar respostas mais efetivas em situações de emergência, combater o crime organizado e propiciar a reinserção social de pessoas presas são alguns desafios do próximo governo na área da segurança.
E essas missões passam pelo caminho de trazer respostas satisfatórias e de incluir a população na tomada de decisões, pois não existe mágica para a questão. “Segurança pública não se resolve. A violência é social”, classifica o delegado aposentado da Polícia Federal José Mariano Beltrame, que esteve no comando da segurança pública do Rio de Janeiro por uma década e atualmente mantém uma empresa de consultoria na área privada.
É ele quem também resume: “sem segurança nada funciona, não tem estado de direito democrático”. Porém, uma possível “receita do bolo”, na visão de Beltrame, passaria pelo seguinte tripé essencial: combate ao crime organizado, atenção ao sistema penitenciário e manutenção de Corregedorias fortes e independentes.
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Efetividade e responsabilidade compartilhada
Para o ex-secretário de Segurança Pública, é necessário que o Estado tenha ações claras para que a população perceba o olhar atento dos gestores públicos às demandas, com divulgações periódicas do quadro criminal, com informações objetivas sobre o que está sendo planejado e executado na tentativa de reverter o panorama crítico que se apresente.
“O Estado não tem braço para dar conta de tudo. Não é um problema de Curitiba ou do Paraná. A dívida social [no Brasil] é muito grande”, aponta. E, apesar de as cobranças desaguarem em uma enxurrada descontrolada na área da segurança pública, as soluções passam por ações integradas e pela intersetorialidade.
“O Estado se faz através de políticas públicas, transparentes, objetivas e mensuráveis, nas quais a população possa efetivamente perceber que o Estado está do lado dela ou está fazendo um esforço para que isso aconteça. É um problema da América Latina, os países estão enfraquecidos e isso traz à população alguma descrença e até uma certa perda de legitimidade.”
Para melhorar a sensação de segurança, políticas públicas intersetoriais
Via de regra associada à polícia, Beltrame faz uma ressalva. “Quando a gente fala em segurança pública, a gente imediatamente associa à polícia. E a polícia não é a solução. Ela faz parte da solução, é uma ação reativa. Nós precisamos que o Estado aconteça como um todo”, opina.
Segundo ele, a segurança pública pode ter melhoras significativas com ações preventivas “não só do governo estadual, mas trazendo as responsabilidades de municípios e governo federal,” como aperfeiçoamento na iluminação pública e no sistema viário.
A opinião é compartilhada pelo pesquisador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Aknaton Souza. “Falar em segurança implica pensar em políticas públicas que sejam efetivas e eficazes e não serão policialescas, serão vinculadas a aumento da cidadania, da urbanização, com iluminação pública, saneamento, escolarização, trabalho e lazer. São medidas que melhoram a sensação de segurança da população e contribuem para o controle da violência”.
Luiz Fernando Ramos Aguiar, major da Polícia Militar no Distrito Federal e especialista em Segurança Pública, também destaca que a segurança pública não depende exclusivamente da atividade policial. “Existem diversos componentes sociais e ambientais que podem ser melhorados e que causam reflexos diretos na tranquilidade pública”, observa.
Ele cita como exemplo a melhoria nos equipamentos públicos e na infraestrutura dos bairros. A iluminação pública eficiente, a coleta de lixo regular, o saneamento básico e ruas pavimentadas permitem que a população ocupe os espaços públicos, aumentando a sensação de segurança.
Fortalecer o vínculo e o atendimento de emergência
Transparência e objetividade são conceitos-chave que Beltrame defende para assertividade na segurança pública, assim como uma boa comunicação direta com a população que precisa do serviço. Para ele, o problema se agrava quando o cidadão fica sem receber as respostas que espera ao se deslocar até uma delegacia ou ligar para o telefone de emergência 190, situação que contribui para a consolidação de uma sensação de descrença e coloca em xeque a legitimidade do Estado.
“A sensação de insegurança começa quando alguém liga para o 190 e a pessoa diz que não tem uma viatura. Você procurou o Estado e não obteve uma resposta no calor daquela agressão ou daquele dano”.
A apresentação periódica de como estão os índices criminais, a partir de um referencial com análise do panorama e metas a serem atingidas, com apresentação sobre como foram utilizados recursos financeiros, o que fez ou tentou fazer, é defendida como uma boa estratégia conjunta. “As coisas estão boas ou ruins em relação a outras coisas”, diz Beltrame.
Dentre os principais índices criminais, o Paraná tem apresentado queda nos últimos anos. O índice de homicídios dolosos (com intenção de matar) e de lesões seguidas de morte mantém-se praticamente estável no Paraná, em quatro anos. Foram 1.955 homicídios em 2018 e 1.1913 no ano passado, segundo dados oficiais da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp). No mesmo período, o Paraná viu os latrocínios (roubo seguido de morte) caírem mais da metade, passando de 94 para 41 casos.
Crimes contra o patrimônio tiveram aumento de 9,5% no Paraná, entre 2018 e 2021. Uma redução expressiva aconteceu no registro de crimes de roubo (com emprego de violência): o índice despencou 55,6%. O índice de furtos foi 8,7% menor. A mesma tendência é observada nos furtos de veículos (-34%) e nos roubos de veículos (-48,7%) no Paraná.
Possíveis resultados estratificados do trabalho das polícias, ações indicadas como tráfico de drogas subiram 5%, ao passo que a recuperação de veículos diminuiu em 42% no período de quatro anos analisados. De 2022, a Sesp só divulgou números referentes ao primeiro trimestre.
Comunidade participativa
Trazer a comunidade para participar das soluções que garantam mais sensação de segurança à população e reduzam os índices de criminalidade é uma prática recomendada. Isso é possível com o fortalecimento dos Conselhos de Segurança (Consegs) que, na opinião de especialistas, devem ser estimulados pelo poder público.
“Tem que haver uma ampliação, com participação maior. Incluir, sobretudo, a população mais vulnerável, escutar essas pessoas. É preciso uma escuta permanente da população”, defende o pesquisador da UFPR Aknaton Souza.
Essa mobilização social funciona como mecanismo auxiliar ao promover aproximação mais efetiva da comunidade com as forças policiais, analisa o jurista e pesquisador Fabrício Rebelo, que coordena o Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes).
“Mas o êxito vai depender da resposta que é dada pelo Estado. Em alguns locais a atuação é extremamente positiva, mas em outros, onde não há resposta, o conselho passa a ser mais figurativo”, observa Rebelo.
O major da PM no Distrito Federal Luiz Fernando Aguiar também considera que os Consegs podem ser um importante aliado dos gestores locais de segurança pública. Sobretudo por facilitar o acesso à informação, podendo se tornar referência para orientar as ações de policiamento preventivo.
“Um grande risco para os conselhos é o seu uso político e a participação reduzida da população local”, alerta Aguiar. Segundo ele, muitas vezes pessoas com aspirações políticas e grupos políticos organizados tentam, ou tomam, a liderança dos conselhos para usá-los como plataforma para projeção de futuras candidaturas. “Quando esse tipo de coisa acontece há um esvaziamento do conselho, principalmente pelo abandono dos gestores locais de segurança pública ou por uma presença apenas protocolar”.
Mirar no crime organizado é combater a corrupção
O ex-secretário de Segurança do RJ destaca a necessidade de olhos e ações de forma a atacar o crime organizado, que não se restringe ao tráfico de drogas e de armas. É atacar a cadeia criminal por trás da qual estão pessoas que pensam estrategicamente para lavagem de dinheiro, aponta Beltrame. “Cigarro não é só o sacoleiro. Quem vende? Quem compra?”, questiona.
Beltrame dá outros exemplos. “Se te roubam um cordão de ouro na rua, um bem que é seu, você se sente impotente. Podem falar que roubou para comprar droga. Será? Ele não vai revender para uma empresa que compra ouro? E essa empresa está vendendo para quem? Furto de celular, a mesma coisa. Será que não tem alguém desmontando, pegando chip, peça ou até fazendo outra coisa com isso?”.
“Quando você tem o crime organizado, você tem um braço do Estado. Então, quando eu falo de crime organizado, eu também estou falando em corrupção”, responde.
Bônus aos bons profissionais e olhar atento a desvios dos maus
Desenvolver políticas de integração (entre as polícias Civil e Militar) com bônus aos policiais, o que geraria uma concorrência positiva, é considerado um estímulo assertivo por Beltrame no trabalho diário do combate ao crime.
Na outra ponta, para coibir atividades ilegais e incompatíveis ao cargo de policial, o ex-secretário de Segurança defende uma Corregedoria não apenas reativa, mas independente. “Uma Corregedoria que possa investigar e que não seja um órgão reativo, que só receba o processo”, diz.
“Polícia prende, Judiciário solta”. Será?
Uma réplica bastante comum entre os policiais, quando surgem críticas à segurança pública, é de que o trabalho é feito, de forma incansável, todos os dias, mas que o encaminhamento dos presos em flagrante, soltos rapidamente por decisões do Poder Judiciário, interfere nessa percepção sobre a impunidade e como a população avalia o trabalho da polícia.
Sobre esta questão, Beltrame aponta dois pontos fundamentais. O primeiro é a necessidade de uma boa condução pela equipe policial, com circunstanciamento de provas e elementos formais. O segundo é a observação de que o Judiciário trabalha em cima de leis. “A âncora do Judiciário são as leis. E quem faz e pode mudar as leis são os congressistas que nós vamos eleger em outubro”
Também consultado sobre o assunto pela Gazeta do Povo, o jurista e pesquisador em Segurança Pública Fabrício Rebelo, que coordena o Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), evidencia o investimento na qualificação dos policiais para que se evitem erros. “Ao governo do Estado compete preparar melhor o policial”, diz.
Rebelo observa que a prática recorrente de a polícia prender e o Judiciário logo em seguida soltar acontece, em grande parte, por falhas na atuação policial. “Os criminosos são colocados em liberdade porque houve alguma falha, seja no processo de investigação, seja na prisão em flagrante”, pontua. "Quando se estabelece qualquer dúvida, isso acaba sendo usado em favor do preso”.
Fronteira é questão de soberania
Estado vizinho de Argentina e Paraguai, o Paraná enfrenta um cenário de criminalidade específico na região de fronteira, junto com uma informalidade nos negócios que não é efetivamente controlada. “Não é só tráfico de drogas. É a concorrência entre os mercados formal e informal e saúde pública (remédios), para citar somente o começo”
“A questão de fronteira transcende a questão policial, é uma questão de legitimidade. É uma questão da estratégia governamental e de soberania. Nós temos 16 mil quilômetros de fronteira no Brasil, mas e condições para cuidar?”, Beltrame pergunta. “As polícias sangram nessas fronteiras diuturnamente, fazendo o que podem, e está visto que esse problema tem que ser analisado de um aspecto totalmente diferente do que já foi feito, precisa envolver o Mercosul”.
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Ele também menciona comunidades que, por décadas e décadas, se desenvolveram desta forma na região. “Os filhos das pessoas que trabalham na informalidade não controlada já absorveram isso como natural. Não é um problema de fácil solução, que se possa jogar em cima de uma instituição ou de um governador”.
Pela dimensão do problema, a região de fronteira requer ações integradas entre as polícias estaduais e as forças federais, conforme aponta o jurista e pesquisador Fabrício Rebelo. “Não há como depositar apenas nas forças federais o patrulhamento das fronteiras, especialmente num país com as dimensões do Brasil. É fundamental um trabalho efetivo de inteligência para identificar rotas e estruturas criminosas e isso demanda integração”, defende Rebelo. “Sem isso, as ações serão apenas paliativas”, opina.
Os gargalos do sistema penitenciário
O questionamento a partir do qual se deve começar para buscar assertividade no sistema penitenciário, para Beltrame, é o seguinte: “O sistema penal hoje no Brasil recupera? E em cima dessa pergunta, começar a tentar fazer outras coisas. Não quero que entendam isso como uma crítica generalizada, porque eu fui e sou servidor público e sei do esforço. Mas ‘se a farinha é pouca, meu mingau primeiro’ não é uma saída das mais republicanas”.
Sobre o tema, o jurista Fabrício Rebelo cita o exemplo do estado de São Paulo que tem 13% do total da população brasileira e 40% da população carcerária do país. “O preso tem permanecido preso e isso tem se refletido na redução dos índices de criminalidade, nas taxas de homicídios mais baixas do país, reflexo de uma política adotada há 20 anos que encarou a segurança pública como prioridade”, acredita ele.
Estratégia nacional mira no crime organizado e no feminicídio
O crime organizado está no centro do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, projetado para esta década, assim como o enfrentamento ao feminicídio. Para além de ações de quem trabalha na linha de frente da segurança, novamente o pesquisador da UFPR ressalta o desenvolvimento de políticas públicas para casos de feminicídio, violência sexual e abuso sexual. “Nada foi feito, além de prender, devidamente não há dúvida, mas não há nenhuma política voltada a criar uma cultura entre os homens sobre o respeito, o consentimento, o processo de sexualidade feminina”, considera. “O Estado pega o criminoso quando ele já cometeu o crime e não tenta criar formas de prevenção, com práticas pedagógicas”, analisa.
O documento nacional também pontua a necessidade de se revisar as mortes causadas por intervenção de agentes do Estado, e que atualmente são computadas dentro do indicador homicídio. O governo federal reconhece que este cenário é inadequado, por representar um “universo próprio, com condições particulares que devem ser explicitadas”.
Atacar o problema da reincidência criminal é outro item prioritário no plano nacional, que propõe aumentar vagas, ofertas de trabalho e atividades educacionais no sistema prisional brasileiro em dez anos.
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