Ao menos desde o ano passado, quando deixou claro que disputaria novamente o Palácio do Planalto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem usado como mote de campanha o "restabelecimento" da democracia no Brasil. O discurso tem sido ecoado por políticos aliados, pela militância, parte da classe intelectual, dos artistas e da imprensa.
Mas há ao menos três fatos, incontestáveis na história dos governos de Lula, que depõem contra a defesa da democracia. O primeiro são os escândalos de corrupção que marcaram as gestões petistas, notadamente o mensalão e o petrolão, cuja finalidade era a compra de apoio político no Congresso. O segundo é a notória simpatia e o suporte financeiro dado a regimes e líderes autoritários mundo afora. E o terceiro são as tentativas de “regulamentar” os meios de comunicação, incluindo agora a internet e as redes sociais.
Para entender como e em que medida essas práticas e planos comprometem o pleno funcionamento de uma democracia liberal, a Gazeta do Povo ouviu três acadêmicos que observam há anos o que o PT diz e o que efetivamente faz. São eles: Catarina Rochamonte, doutora em filosofia e autora do recém-lançado “Introdução à Filosofia Política: Democracia e Liberalismo”; Adriano Gianturco, coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec, professor de ciência política e autor de “A Ciência da Política”; e Christian Lohbauer, professor, cientista político e um dos fundadores do partido Novo, pelo qual se candidatou a vice-presidente em 2018.
1. Corrupção
Quando o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) condenou Lula na segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do triplex, os desembargadores consideraram um agravante o fato de, na época, ele ter usado do cargo de presidente da República para permitir a nomeação de diretores na Petrobras que dividiam propina com dirigentes partidários que, em troca, davam apoio ao governo.
Os desembargadores concluíram que os recursos desviados em favor dos partidos e políticos não fragilizaram apenas a Petrobras, mas todo o “processo político brasileiro”, uma vez que o dinheiro também servia para bancar milionárias campanhas eleitorais, por meio de caixa 2.
“A par de vantagens em benefício próprio, censuráveis e graves não somente os bilhões de reais desviados, mas também a colocação em xeque da própria estabilidade democrática em razão de um sistema eleitoral severamente comprometido”, registrou o acórdão.
“Boa parte dos valores foram utilizados para deturpar o processo político eleitoral e, nessa perspectiva, vulnerar o próprio Estado Democrático de Direito, pois milhões de reais foram objeto de doações eleitorais ilícitas, fragilizando o equilíbrio na disputa eleitoral”, diz o trecho seguinte.
Em abril de 2019, quando o caso foi novamente analisado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), os cinco ministros que confirmaram a condenação de Lula não fizeram reparos a essas conclusões. Ao contrário, reforçaram que isso elevava a culpa de Lula. “Trata-se de ex-presidente da República que recebeu valores em decorrência da função que exercia e do esquema de corrupção que se instaurou durante o exercício do mandato, com o qual se tornara tolerante e beneficiário”, afirmou o relator do caso no STJ, Felix Fischer, seguido por outros quatro ministros.
Nada disso foi revisto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na anulação das condenações de Lula no ano passado. Isso só ocorreu porque, após cinco anos, a maioria dos ministros considerou que o ex-juiz Sergio Moro não tinha competência nem imparcialidade para analisar e julgar os processos no âmbito da Lava Jato.
Catarina Rochamonte diz ser uma “obviedade o caráter essencialmente antidemocrático de um partido ou de um líder partidário e presidente que compra o apoio político do Congresso com dinheiro de propina, de corrupção”. A democracia, afirma ela, não é apenas “o poder do povo”, mas um modelo de governo que busca a justiça, por meio de leis escritas e do pressuposto que todos sejam iguais perante elas.
“A democracia surge, pois, como contraposição à tirania, ao arbítrio dos poderosos. Seus pressupostos são vários, mas dentre eles destaca-se o respeito ao Estado de Direito, às leis, a Constituição (porque é a lei que garantirá a igualdade e a ausência de privilégios), além, claro, da autonomia das instituições e do equilíbrio entre os poderes”, afirma.
“Lula também não pode salvar a democracia porque ele foi o maior agente da corrupção da história da nossa República: o mensalão foi criado com o objetivo imediato de corromper a democracia através da compra de parlamentares; a locupletação pessoal dos agentes foi efeito colateral. O petrolão foi a expansão do mensalão além Congresso e além fronteiras, com efeitos devastadores para a democracia no Brasil e em alguns países vizinhos”, completa.
Ela também lembra que a democracia implica em alternância de poder. “Se os representantes corrompem-se para se manter no poder ou são corrompidos para que outros no poder se perpetuem, os próprios políticos liquidam a democracia.”
2. Apoio a ditaduras
O governo Lula também foi marcado por apoio explícito a regimes autoritários. Os exemplos mais notáveis são as alianças com Cuba e Venezuela, na América Latina, e os elogios aos regimes de China e Coreia do Norte, na Ásia.
A simpatia ao regime cubano vem desde os anos 1980, quando Lula conheceu Fidel Castro. Sua morte, em 2016, foi lamentada pelo petista “como a perda de um irmão mais velho, de um companheiro insubstituível, do qual jamais me esquecerei.”
O apoio ao governo de um partido só também é recente. Em julho do ano passado, quando a população cubana saiu às ruas para protestar contra o governo do atual presidente Miguel Díaz-Canel, Lula jogou a culpa no embargo dos Estados Unidos, velha desculpa usada pela esquerda.
“O que está acontecendo em Cuba de tão especial pra falarem tanto?! Houve uma passeata. Inclusive vi o presidente de Cuba na passeata, conversando com as pessoas. Cuba já sofre 60 anos de bloqueio econômico dos EUA, ainda mais com a pandemia, é desumano”, postou Lula no Twitter.
Na Venezuela, Lula sempre expressou apoio a Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Nas eleições de novembro do ano passado, o PT, em nota, saudou a vitória do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). “O processo eleitoral ocorreu em total respeito às regras democráticas.”
Nos governos do PT, a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil. Em março do ano passado, em entrevista à agência oficial de notícias Xinhua, Lula disse que o governo de Xi Jinping era um “exemplo de que é possível cuidar da população por meio de um governo sério e com responsabilidade para com seu povo” – o regime é conhecido por aplicar duras restrições à circulação de pessoas na pandemia, persegue minorias étnicas, reprime opositores e tem um rígido controle, por meio da tecnologia, sobre o comportamento social dos cidadãos.
Lula ainda elogiou o Partido Comunista da China, o único permitido no país. “A China tem um partido, que é resultado da revolução de 1949 do Mao Tsé-Tung. A China tem poder, um estado forte que toma decisões e que as pessoas cumprem. Coisas que não temos no Brasil”.
Em novembro do ano passado, Lula minimizou a ditadura de Daniel Ortega na Nicarágua. “Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não?”, disse, em entrevista ao El País. Ortega venceu uma eleição em que seus rivais estavam presos ou exilados. Para o PT, o pleito foi “uma grande manifestação popular e democrática”.
Adriano Gianturco diz que o discurso a favor da democracia, concomitante ao apoio a ditaduras, não é apenas uma hipocrisia. “É funcional. Eles falam de democracia para poder apoiar e se aliar a ditaduras. O objetivo é aquele. O objetivo é o poder. O discurso, a retórica, o marketing, esse slogan de falar bem da democracia, é o meio. Porque se eles só se aliassem a ditaduras sem o discurso fácil por trás, ficaria na cara, pegaria mal, ficaria evidente [que não são democratas]. Mas fazer essa retórica limpa tudo, até porque as pessoas, majoritariamente, olham mais o discurso, as supostas e declaradas intenções, que os fatos”, diz o professor.
Gianturco ressalva que, em várias situações, é necessário a um chefe de Estado ter de lidar com autocratas que governam países não democráticos. Isso se dá por fatores econômicos, geográficos, políticos. Mas não significa que, nesses casos, deva haver um apoio explícito aos líderes e à forma autoritária com que governam.
“Hoje em dia há uma crítica da esquerda a Bolsonaro no mesmo sentido: ‘ah, ele conversa com a monarquia absolutista da Arábia Saudita’. É verdade, mas não me lembro de defesas ideológicas daquele sistema. Essa é a grande diferença. Não me parece que esse governo defenda que lá não existe uma monarquia absoluta, que lá exista democracia demais e que não seja um sistema autoritário”, diz.
O professor ainda critica a forma simplória como Lula e o PT definem democracia, confundindo o termo com algo parecido a uma democracia popular direta, como se todas as decisões importantes fossem feitas pelo povo. Nem tudo, acrescenta, tem de ser “democratizado”.
“Há uma mania recente de que tudo tem que ser ‘democratizado’, o que quer que isso signifique. Então, defende-se uma ‘praia democrática’, um ‘restaurante democrático’, etc. É o que Jason Brennan chama de fetiche da democracia. Nem todas as instituições, os sistemas, as arenas da sociedade são melhor organizadas de forma democrática. As famílias não são democráticas, o mercado, as lojas, os restaurantes não são democráticos. Internamente têm uma estrutura hierárquica e o mercado, como um todo, é uma arena competitiva e não democrática.”
Ele acrescenta que nos países com democracias consolidadas, o discurso político não se resume ou não dá a relevância, como o PT faz agora, a defender a democracia e acusar adversários de serem antidemocráticos. “Geralmente é quem é menos democrático que mais usa esse termo e de forma vazia. Quem é democrático mesmo, não precisa se dizer. Eu distinguiria democracia como fato, como regime político, de democracia como retórica, como arma de campanha eleitoral”.
3. Controle da mídia
Lula já disse que um dos arrependimentos que guarda é de não ter avançado com que o chama de “democratização dos meios de comunicação”. Nessa campanha, ele voltou a defender uma regulamentação da mídia, e também das redes sociais, para interferir no conteúdo do que é veiculado por emissoras de rádio e televisão, principalmente, que são concessões públicas.
O ex-presidente nunca detalhou, exatamente, o que pretende fazer nesse campo. Em geral, defende que haja mais diversidade na programação e mais rigor na concessão de direito de resposta. Em várias entrevistas, já demonstrou ressentimento pela forma como grandes canais e jornais cobriram a Lava Jato, dando tempo e espaço maior para as acusações.
“Eu vi como a imprensa destruía o Chávez. Aqui eu vi o que foi feito comigo. Nós vamos ter um compromisso público de que vamos fazer um novo marco regulatório dos meios de comunicação”, disse o petista numa entrevista coletiva em São Luís (MA), no ano passado.
Durante seus governos, Lula tentou avançar com algumas propostas, sem sucesso. Em 2004, por exemplo, ele enviou ao Congresso projeto de lei para criar um Conselho Federal de Jornalismo, com a finalidade de “orientar, disciplinar e fiscalizar” o exercício da profissão, o que poderia incluir punições.
Em 2009, no final do segundo mandato de Lula, o governo elaborou um anteprojeto para proibir monopólios e oligopólios na radiodifusão e a concessão de emissoras a juízes e políticos. O texto também visava acabar com propagandas religiosas na mídia eletrônica e impor conteúdo mínimos de produção regional. O objetivo era que a ex-presidente Dilma Rousseff encampasse o projeto, mas ele acabou engavetado na sua gestão.
Para Christian Lohbauer, o PT tem um conceito próprio de democracia, inclusive no que diz respeito à liberdade de opinião. Ele diz que, quando a atual campanha fala em salvar a democracia, se refere somente aos próprios petistas e partidos aliados.
“O partido e aqueles que estão em sua órbita podem desfrutar de livre opinião, desfrutar de favorecimentos oriundos dos recursos públicos, e os meios de comunicação e redes sociais devem ter conteúdo livre desde que seja aquele que comungue das ideias e visão de mundo dos seus iluminados membros e simpatizantes”, diz o cientista político.
Ele nota, no entanto, que o próprio PT, internamente, não é democrático. “Basta ver o grau de debate que existe em relação ao que Lula diz e faz: nenhum. São todos seguidores incondicionais de seu grande líder, que ninguém contesta.”
Em relação ao persistente desejo de regular os meios de comunicação, Lohbauer diz tratar-se de uma prática inexistente em qualquer democracia consolidada.
“O caráter autoritário do pensamento do PT o convence que o controle do Estado em várias instâncias da vida social é o caminho para o fortalecimento da sociedade. Errado. A manifestação de opiniões sem medo de represálias é o que faz uma sociedade forte”, afirma.
“O que eles propõem é um universo orwelliano, um 1984 bolivariano. É uma proposta indigesta. Para preservar a tolerância é preciso ser intolerante com aqueles que propagam o fim das liberdades públicas. Isso é Karl Popper: é necessário exigir em nome da tolerância o direito de não tolerar os intolerantes. Do contrário, os tolerantes serão destruídos e a tolerância junto com eles. O PT e seu discurso ‘democrático, inclusivo e pregador da diversidade’ tolera tudo menos a opinião que diverge da deles.”
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