O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou em 14 de dezembro do ano passado uma resolução que diz ser “vedada a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinja a integridade do processo eleitoral”. Essa norma é uma novidade em relação a eleições anteriores, e valerá durante as eleições de 2022.
O mesmo dispositivo diz que essa proibição se aplica a conteúdo considerado falso ligado à “votação, apuração e totalização de votos”. Se isso ocorrer, diz o texto, um juiz eleitoral deverá, a requerimento do Ministério Público, “determinar a cessação do ilícito” – o que, na prática, implica na remoção daquele conteúdo na internet ou nas redes sociais.
A regra está contida no artigo 9º-A da Resolução 23.671/2021, que trata da propaganda eleitoral nas eleições deste ano. Ela foi proposta pelo atual presidente da Corte, Edson Fachin, e aprovada por unanimidade no plenário do TSE, composto por outros seis ministros.
A resolução ainda diz que, após a retirada do material do ar, ainda caberá apuração de “responsabilidade penal, abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação”. Ou seja, o responsável poderá ser processado criminalmente e ainda responder por ilícitos eleitorais que, no caso de políticos, podem levar à cassação do mandato.
A resolução não define de forma mais detalhada o que são “fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados” relacionados à votação eletrônica. Segundo advogados ouvidos pela reportagem, isso deverá ser definido melhor pela própria Justiça Eleitoral no tratamento individual de casos particulares que chegarem aos juízes e tribunais.
O precedente já existe. Em outubro de 2021, o TSE cassou o deputado estadual do Paraná Fernando Francischini (União Brasil) porque, durante uma transmissão ao vivo pelo Facebook, no dia da eleição de 2018 e pouco antes do fim da votação, ele disse que algumas urnas eletrônicas no Paraná estavam fraudadas e impediam o voto em Jair Bolsonaro, então candidato a presidente. Por 6 votos a 1, o ministros do TSE condenaram Francischini por abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação. O vídeo foi retirado do ar, ele perdeu o mandato e está inelegível por oito anos.
O advogado e professor de direito eleitoral Marcelo Weick, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), prevê que a Justiça Eleitoral deverá aplicar essas mesmas sanções em casos de “desinformação chapada, evidente, aquela que você olha e vê que é mentira”.
Segundo ele, a Justiça Eleitoral já está habituada a aferir e punir a emissão de notícias sabidamente inverídicas relacionadas a candidatos, mas ainda não relativas às urnas. “Essa possibilidade de começar a tolher manifestações com desinformação contra o sistema eleitoral de fato é uma inovação. A gente não tem precedentes antes do caso Francischini, por ataque não a adversário, mas ao sistema eleitoral”, diz.
Ainda segundo Weick, a remoção de conteúdo contra as urnas eletrônicas poderá ocorrer ainda antes do período oficial de campanha, que começa em 16 de agosto. Uma ordem do tipo, por exemplo, foi determinada recentemente pelo ministro do TSE Alexandre de Moraes. Mas, nesse caso, se tratava de postagens que relacionavam o PT ao PCC, ou seja, contra um partido. Na decisão, ele também enquadrou o conteúdo como “sabidamente inverídico”.
Norma do TSE ainda não está na lei eleitoral
As novas regras do TSE, relativas a conteúdos falsos relacionados ao sistema de votação, ainda não estão explícitas na legislação eleitoral. Elas chegaram a ser discutidas e aprovadas no ano passado pelos deputados no âmbito do projeto que cria um novo Código Eleitoral. Mas a proposta ainda não virou lei, pois precisa ser aprovada pelo Senado e depois sancionada pelo presidente da República.
O Código Eleitoral atualmente em vigor, que relaciona crimes que podem ser cometidos em eleições, prevê punição para o ato de “divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado”.
Essa conduta foi criminalizada numa lei aprovada no ano passado pelo Congresso. Trata-se do novo artigo 323 do Código Eleitoral, que prevê punição de dois meses a um ano de detenção, com possibilidade de aumento da pena até a metade, caso a divulgação ocorra por meio da imprensa, rádio, televisão, internet, redes sociais ou transmissão ao vivo.
O texto, porém, fala sobre a divulgação de conteúdo falso contra candidatos e partidos, não contra o sistema de votação. Os advogados consultados pela reportagem, no entanto, consideram que o crime também poderá ser imputado a quem divulga ou compartilha conteúdos falsos sobre as urnas na internet. “Essa regra traz uma mudança significativa no cenário eleitoral, porque prevê a punição de eleitores que divulguem informações sabidamente falsas contra candidatos, partidos, ou que influenciem nas eleições”, diz Rodrigo Pedreira, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral (Abradep).
Quanto à punição eleitoral de inelegibilidade por oito anos e/ou perda do mandato (essa última sanção poderia ser aplicada a um político eleito) por abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação, como também prevê a resolução do TSE, Pedreira diz que ainda existe uma divergência doutrinária sobre a caracterização desses ilícitos.
“Alguns entendem que a divulgação não precisaria alcançar muitas pessoas nem implicar claramente um desequilíbrio da disputa. Por si só, ela poderia ser considerada grave pelas imputações inverídicas à Justiça Eleitoral. Foi o que ocorreu no caso do Fernando Francischini, que apontou fraude nas urnas nos últimos minutos da eleição de 2018, durante uma transmissão ao vivo. O TSE entendeu que, mesmo num tempo curto, houve influência no processo eleitoral e aquela informação era grave em si para caracterizar abuso”, diz.
Limitação também pode atingir eleitores
A mesma resolução do TSE também limita a disseminação de conteúdo falso sobre as urnas por parte de eleitores. O parágrafo 1.º do artigo 27 tem a seguinte redação: “A livre manifestação do pensamento de pessoa eleitora identificada ou identificável na internet somente é passível de limitação quando ofender a honra ou a imagem de candidatas, candidatos, partidos, federações ou coligações, ou divulgar fatos sabidamente inverídicos, observado o disposto no art. 9º-A desta Resolução”.
Na prática, o TSE diz que é possível restringir não só manifestações de eleitores na internet que ofendam políticos, partidos e alianças, mas também que divulguem “fatos sabidamente inverídicos” relacionados à votação eletrônica, como diz o artigo 9º-A.
Rodrigo Pedreira diz que a remoção do conteúdo é uma medida que pode ser tomada de forma rápida, bastando um requerimento do Ministério Público. Segundo o advogado, se a publicação chegar ao conhecimento do juiz eleitoral por iniciativa de eleitores ou de partidos, o MP será instado a se manifestar. “Se o eleitor souber de desinformação nas redes sociais, ele pode encaminhar essa denúncia no aplicativo Pardal, do próprio TSE, e o Ministério Público deverá encaminhar uma representação para retirada daquele conteúdo. Já quando a propaganda for irregular em razão de sua forma, não do conteúdo em si, o juiz terá poder de polícia para suspendê-la de pronto. Exemplo é quando a propaganda estiver em site de pessoa jurídica ou tiver sido impulsionada nas redes por um terceiro que não seja candidato”, diz o advogado.
Para Rodrigo Pedreira e Marcelo Weick, o texto da resolução possibilita que, assim como os políticos, eleitores também sejam punidos por crime eleitoral e, eventualmente, inelegibilidade, caso se prove que foram responsáveis pela divulgação ou compartilhamento dos “fatos sabidamente inverídicos” relativos ao sistema de votação.
“Mas entendo que o objetivo não é atuar no varejo, mas contra o eleitor que propaga desinformação sobre as urnas de forma massiva, que tem número de seguidores considerável, e que está trabalhando para interferir no processo eleitoral. A Justiça Eleitoral, para mim, não vai ficar atrás da ‘tia do WhatsApp’. Se não, entra num terreno complicado do cerceamento da liberdade de manifestação do pensamento. E ainda vai enxugar gelo, não vai conseguir se tornar censora de 200 milhões de brasileiros”, diz Weick.
As origens da norma do TSE
Essas novas regras, introduzidas no ano passado pela resolução do TSE, já eram defendidas por juristas que participaram da elaboração do novo Código Eleitoral. O projeto de lei foi aprovado na Câmara no ano passado, mas travou no Senado.
O texto aprovado na Câmara diz que constitui crime eleitoral “divulgar ou compartilhar, no âmbito da propaganda eleitoral, a partir do início do prazo para a realização das convenções partidárias, fatos sabidamente inverídicos para causar atentado grave à igualdade de condições entre candidatos no pleito ou embaraço, desestímulo ao exercício do voto e deslegitimação do processo eleitoral”.
A proibição de discursos falsos contra as urnas ficaria embutida no trecho final, que considera irregulares propagandas que embaracem ou desestimulem o voto e deslegitimem o processo eleitoral.
No âmbito do TSE, essa proibição foi sugerida formalmente durante uma audiência pública realizada em 22 de novembro do ano passado, mês anterior à aprovação da resolução. A audiência contou com representantes de redes sociais, ativistas políticos, além de associações e institutos que se dedicam a estudos propostas na área do direito eleitoral. Estavam presentes, por exemplo, advogados do Google, Facebook e Twitter, além de um diretor do movimento Sleeping Giants.
Um dos participantes foi o advogado Caio César Vieira Machado, representante da Associação Vero de Pesquisa e Educação em Tecnologia e Comunicação Digital. Partiu dele a recomendação de criar uma regra que, segundo ele mesmo disse na audiência, faria uma “vedação expressa às manifestações dolosas [intencionais] que alvejam a integridade do nosso sistema eleitoral”. Seria aplicada, em suas palavras, para “casos de desinformação cujo efeito é particularmente gravoso” e para “comportamento doloso que ataca instituições democráticas”.
Caio Machado é diretor do Instituto Vero. Em seu site na internet, a entidade diz ser formada por “pesquisadores e influenciadores digitais comprometidos com a proteção da democracia, a promoção do discurso online e a construção de soluções para o combate à desinformação”. O site também informa que um de seus cofundadores e conselheiros é o youtuber Felipe Neto. Ele também aparece no relatório de atividades de 2021 do instituto como um dos “apoiadores”, que são “parceiros estratégicos, que aportam recursos financeiros para a realização de atividades de pesquisa-ação”. Outros apoiadores são a Open Society Foundations, fundada e presidida pelo investidor húngaro George Soros; o WhatsApp; a International Fact-Checking Network (que reúne mais de 80 agências de checagem de notícias); e também o Internet Lab, centro de pesquisas brasileiro sobre direito e tecnologia.
Caio Machado é graduado em direito pela USP, com mestrado em direito digital pela Universidade de Sorbonne, e doutorado em andamento na Universidade de Oxford sobre “Desinformação Anti-Ciência e o Debate Público Online no Brasil”. Ele disse, na audiência, que vem usando esse conhecimento para propor “soluções jurídicas”. E também afirmou ter participado das discussões para elaboração, no Congresso, dos projetos de lei das fake news e também do novo Código Eleitoral. Na quarta-feira passada (20), ele participou de um seminário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre desinformação.
Ao propor a regra para limitar a divulgação de conteúdos inverídicos sobre o sistema de votação, ele citou a decisão de outubro, do TSE, que cassou Fernando Francischini. A Corte o condenou por entender que suas declarações promoveram “ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia”. Para Caio Machado, a decisão trouxe à tona os “limites da liberdade de expressão e a falsa narrativa durante a propaganda eleitoral”.
Sua sugestão original para a regra foi a seguinte: “É vedada a disseminação de conteúdos que o emissor saiba inverídicos e que aleguem, sem comprovação, fraudes nos seus resultados eleitorais ou que incitem a rejeição dos resultados para causar graves danos individuais ou coletivos no período da propaganda eleitoral”.
O TSE também registrou a participação, na audiência, de Victor Carnevalli Durigan, coordenador de relações institucionais do Instituto Vero. Formado em Direito pela USP, tem experiência em políticas públicas e relações institucionais em Brasília e São Paulo.
Essa sugestão, que depois se transformou no artigo 9º-A da resolução sobre a propaganda eleitoral, não estava na minuta inicial da proposta, elaborada pelo próprio Fachin e divulgada antes da audiência.
Mais à frente, na audiência, apresentou-se para falar Roberto Vasques de Campos Araújo, na condição de “eleitor cidadão”. Foi ele quem, durante sua participação, propôs o parágrafo 1.º do artigo 27 da resolução, que permite a limitação da divulgação, por eleitores, de “fatos sabidamente inverídicos” sobre as urnas eletrônicas. Essa regra também não estava prevista na proposta inicial de Fachin, conforme mostram documentos oficiais do TSE.
Em sua fala, Roberto Araújo disse que a tese que levou à cassação de Francischini poderia ser “plasmada” para a resolução, de modo a “dissuadir, por completo, aqueles que possam querer atentar contra as regras do jogo democrático”. Antes, sem referir-se explicitamente a nomes, ele acusou um “grupo de inclinação autoritária” de adotar estratégia para “minar a confiança do eleitorado e da população no sistema eleitoral e na legitimidade do pleito”.
“Essa estratégia tem o intuito deliberado de semear a desconfiança sobre os resultados eleitorais para, no caso de não agradarem os seus propositores os resultados, haver constituído um estado de opinião pública majoritário, disposto a não reconhecer o resultado das urnas, sem os quais podem nos levar ao risco do surgimento de uma espiral de violência política sem precedente na história do nosso país”, afirmou Araújo.
Na audiência do TSE, Roberto Vasques Araújo não detalhou suas atividades. Com base em documentos oficiais, a reportagem apurou que, na eleição de 2020, a empresa Kyrion, aberta naquele mesmo ano e na qual ele está registrado como sócio na Junta Comercial de São Paulo, recebeu R$ 927,7 mil da campanha do então candidato a prefeito Guilherme Boulos (Psol). Foi a empresa que mais recebeu recursos de Boulos naquela campanha, segundo dados do TSE. A empresa também recebeu R$ 44 mil da campanha do senador Jean Paul Prates (PT-RN) para a prefeitura de Natal, e R$ 9 mil para a campanha do deputado estadual Luiz Fernando Mainardi (PT-RS) para a prefeitura de Bagé.
Na época, Boulos explicou, no Twitter, o papel da Kyrion: “presta serviços de planejamento e acompanhamento de pesquisas quantitativas e qualitativas contratadas pela campanha, monitoramento e análise diária de redes sociais e gestão de comunidades digitais”. Ele também escreveu sobre Roberto Vasques Araújo: “um dos sócios da Kyrion é Beto Vasques, profissional com mais de 20 anos de experiência e comunicação política e trabalhos no Brasil e no exterior. Até março de 2020, Vasques morava e trabalhava com comunicação digital na Espanha, onde também tem cidadania”.
No voto em que propôs o texto da resolução, Fachin registrou ter acolhido as sugestões apresentadas na audiência por Araújo, Durigan e o Instituto Vero. “Acatadas, parcialmente, sugestões de Victor Durigan, Roberto Araújo e Instituto Vero, resultando em alterações no art. 9º-A, para ajustá-lo ao posicionamento desta Corte Superior quanto à divulgação de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral”, escreveu no voto.
“O § 1º do art. 27, por seu turno, foi revisitado na esteira de indicação apresentada por Roberto Araújo, designadamente para aclarar que ataques às instituições eleitorais baseados em afirmações sabidamente inverídicas extrapolam o exercício legítimo da livre manifestação do pensamento”, diz outro trecho do voto de Fachin.
Esses trechos, que registram a origem da regra, não foram verbalizados oralmente por Fachin na sessão do dia 14 de dezembro do ano passado. Na ocasião, ele apenas leu, em cerca de 10 minutos e sem debates com outros ministros, uma versão resumida do voto.
Ao final, ao anunciar que o voto dele foi aprovado por unanimidade, o então presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, fez o seguinte esclarecimento: “Apenas esclareço, a quem esteja nos assistindo, que as resoluções são distribuídas aos gabinetes, que oferecem as suas sugestões, há um debate interno e, normalmente, quando vem a Plenário já há um consenso do Tribunal”.
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