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Autor do livro "Biografia do abismo" discute as consequências da calcificação política na Bienal do Livro, em São Paulo
Autor do livro “Biografia do abismo” discute as consequências da calcificação política na Bienal do Livro, em São Paulo| Foto: Divulgação/Bienal do Livro

A eleição presidencial mais concorrida da história da democracia brasileira consolidou o processo de polarização no país em torno dos líderes políticos Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2022. Naquele ano, diferente das eleições com votações diretas desde 1989, o resultado das urnas transbordou para a sociedade com repercussões em relacionamentos e nas escolhas diárias da população.

Dois anos depois, o fenômeno da polarização nacional pode ser decisivo nas eleições municipais pela primeira vez, com peso equivalente às propostas locais apresentadas nas campanhas a prefeito. Em entrevista à Gazeta do Povo, o cientista político e sócio-fundador da Quaest, Felipe Nunes, afirma que os candidatos apoiados ou identificados com Bolsonaro e Lula podem disputar cerca de 50% dos votos nas maiores cidades do Brasil, conforme as pesquisas eleitorais do instituto.

“Há uma demanda de aproximadamente metade do eleitorado de todas as grandes capitais brasileiras por candidatos aliados a Lula ou a Bolsonaro. Ou seja, nós estamos falando de eleições municipais, que em tese, são sobre buracos de ruas, escolas e postos de saúde, mas que metade [dos eleitores] diz que tem preferência por um lulista ou por um bolsonarista”, comenta Nunes, que é autor do livro "Biografia do abismo" (Editora Harper Collins), que trata do ápice da calcificação política no país, escrito em parceria com o jornalista Thomas Traumann.

O cientista político ressalta que a tendência sofre variação conforme o eleitorado de cada capital, identificado mais ou menos com Lula e com Bolsonaro. “Por exemplo, em Cuiabá (MS), você tem uma demanda grande por um prefeito aliado ao Bolsonaro, enquanto em Recife (PE) a preferência é maior por um prefeito aliado ao Lula”, acrescenta.

De acordo com a Quaest, entre 21 capitais pesquisadas, o ex-presidente tem maior influência em nove cidades, enquanto o presidente petista lidera na preferência como cabo eleitoral em três capitais. Nas demais, houve empate técnico.

Lançado no final de 2023, o livro "Biografia do abismo" apresenta como a polarização política entre PT e PSDB se transformou no acirramento social entre os grupos identificados com Bolsonaro e com Lula a partir de 2018, transbordando a opção do eleitor da urna para as decisões cotidianas, como com quem se relacionar na família e no trabalho, quais serviços e produtos consumir, como criar os filhos e a escolha pelos locais a frequentar, entre eles, restaurantes, escolas e igrejas.

“É claro que o buraco da rua aparece mais na eleição municipal do que na nacional. Não é todo mundo que está votando conforme essa identidade, mas é um processo, uma tendência que parece que veio para ficar. Cada vez mais, as pessoas se comportam de acordo com essas identidades”, analisa o cientista político, que apresentou o livro na Bienal de São Paulo, realizada entre 6 e 15 de setembro.

O comportamento do eleitor no voto não é o partido. É a identidade que o candidato carrega. O que importa é o que ele representa e quais os valores que ele defende. É isso que está em jogo

Felipe Nunes, sócio-fundador da Quaest

A realidade impõe a necessidade de adaptação das campanhas eleitorais, apesar de muitos candidatos ainda negarem a influência da polarização exacerbada nas eleições municipais deste ano. “Muita gente ainda está sem saber como fazer essa conexão. A questão não é você ser apoiado pelo Lula ou pelo Bolsonaro, a questão é se você é mesmo alguém que o eleitor identifica como candidato que carrega aqueles valores.”

Felipe Nunes cita o exemplo do candidato a prefeito de São Paulo Pablo Marçal (PRTB), que passou a disputar o voto da direita com o candidato à reeleição Ricardo Nunes (MDB). Enquanto o prefeito tem o partido de Bolsonaro na chapa, Marçal usa o discurso antissistema nas redes sociais e contra o establishment da política tradicional para representar o eleitorado apoiador de Bolsonaro.

“Os eleitores de direita procuraram um candidato que fosse, de verdade, de direita. Mesmo que o Bolsonaro tenha indicado um outro nome, a candidatura do Marçal se impôs, pois ela é uma candidatura que, realmente, se identificou com eleitor de direita. Essa calcificação é relevante, está presente e o caso de São Paulo é o mais eloquente neste sentido”, compara.

Pesquisa: índice de polarização afetiva é o maior das eleições em 20 anos

Antes política e limitada ao pleito presidencial disputado por tucanos e petistas, a temperatura da polarização afetiva subiu nas ruas e nas eleições pelo país. “Essa é uma nova tendência na política brasileira, exatamente pelo processo que a gente descobriu no livro. Agora, o eleitor tem posição, tem identidade e virou um torcedor, assim como os de times de futebol. Tem camisa, tem cor e é apaixonado. A política deixou de ser apenas uma questão racional para virar um tema de afetos”, alerta Nunes.

De acordo com o livro, os pesquisadores Mario Fuks e Pedro Henrique Marques estudaram a polarização afetiva no país com os dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) e identificaram a mudança de comportamento nas eleições de 2018, quando o indicador apontou para o acirramento acima da média dos pleitos presidenciais da era PT x PSDB, monitorados a partir de 2002.

O índice é calculado com base na escala 0 a 10 após o eleitor responder o quanto gosta ou não dos dois principais candidatos à Presidência da República, sendo 0 “não gosta de jeito nenhum” e 10 “gosta muito”. Ou seja, se um eleitor de direita responde com um 8 para Bolsonaro e 1 para Lula, a pontução é de 7 pontos. Depois disso, a média geral da amostragem aponta para o indicador de polarização.

Na última eleição presidencial entre petistas e tucanos, em 2014, o índice foi 4,42 no pleito que teve como resultado à reeleição de Dilma por 3,2% de diferença sobre Aécio Neves. Com Bolsonaro assumindo o posto de antagonista ao petismo, o indicador subiu para 5,61 em 2018, quando o candidato de direita bateu Fernando Haddad com uma diferença maior que 10% dos votos válidos.

Em 2022, o duelo entre presidentes com os dois maiores líderes políticos da história recente do país teve um índice de polarização afetiva de 6,92 na eleição mais apertada nas urnas desde 1989: Lula venceu com ligeira vantagem de 1,8% dos votos.

Em junho de 2022, a pesquisa Genial/Quaest usou um método de institutos internacionais para medir o grau de polarização ao perguntar aos eleitores como se sentiriam se tivessem um filho ou uma filha casada com um adepto do grupo político contrário, sendo que as respostas “infeliz” ou “muito infeliz” indicam a tendência de distanciamento de pessoas que votam em oposição ao candidato escolhido pelo entrevistado.

Entre lulistas, o percentual foi de 26% e o número chegou a 28% nas respostas dos eleitores de Bolsonaro. “O Brasil está tão polarizado afetivamente quanto os Estados Unidos, onde 38%, segundo a pesquisa Ipsos, se sentiriam infelizes com o casamento de seus filhos com alguém do grupo rival”, comentam os autores de "Biografia do abismo".

Conservadores cristãos são maioria entre eleitores de Bolsonaro

O livro divide o espectro de eleitores de Bolsonaro em quatro identidades, sendo que 29% do eleitorado é formado pelos “conservadores cristãos”. O maior grupo entre os apoiadores do ex-presidente vive nas áreas urbanas e defende as instituições tradicionais, como família, segurança pública e direitos de propriedade.

Nunes e Traumann lembram que Bolsonaro foi o primeiro presidente desde a redemocratização a defender abertamente esses valores, em alinhamento à maioria dos evangélicos e parte dos católicos. “Os conservadores cristãos enxergam no PT o avanço das pautas progressistas e uma quebra de autoridade de pais, professores e policiais”, apontam os autores.

Formado pela classe média, proprietários de pequenas e médias empresas, localizadas principalmente no Sul e no Sudeste, o grupo dos “empreendedores” corresponde a 4% dos eleitores do ex-presidente. Segundo o livro, os operadores do mercado também integram esse perfil, que considera o Estado corrupto e ineficiente e defende a redução de impostos.

“Os empreendedores defendem valores liberais e se tornaram radicalmente antipetistas a partir do governo Dilma. Para eles, o PT é sinônimo de atraso, corrupção e recessão.” Além disso, pesquisas realizadas pela Quaest estimam que 14% dos eleitores de Bolsonaro fazem parte da identidade chamada de “agro” pelos autores do livro. De acordo com eles, os eleitores vivem em regiões dominadas pela cultura sertaneja e beneficiadas economicamente pelo “boom” das exportações de commodities.

A associação do PT ao Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é considerada uma ameaça. “Bolsonaro se aproximou do grupo com sua defesa intransigente da posse e do uso de armas, seus ataques às invasões de terra e sua política de governo contra legislações ambiental e indígena”, comentam Nunes e Traumann. O menor grupo dentro do espectro político é dos radicais, com 2% de representação.

Entre os eleitores de Lula, o grupo “D/E” corresponde a 30% do eleitorado, formado por dependentes de serviços estatais e beneficiados por programas sociais, que vivem principalmente no Nordeste. Outros dois segmentos são chamados de “petistas” e “progressistas”. O primeiro equivale a 8% do eleitorado de Lula com “sentimento de revanche histórica” pelo impeachment de Dilma.

Com 10% dos lulistas em 2022, os progressistas defendem pautas da esquerda em oposição à agenda de Bolsonaro. O último grupo é dos “liberais”, com apenas 3%, mas considerado fundamental para vitória de Lula nas urnas pela articulação com outros partidos e nomes como Geraldo Alckmin (PSB) e Simone Tebet (MDB).

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