Impresso ou eletrônico, o voto de protesto revela a indignação dos brasileiros com a política tradicional desde as primeiras eleições diretas após o processo de redemocratização do país. Na antiga cédula, o voto nulo era acompanhado de frases de protestos, recados irônicos ou de manifestações humorísticas como a campanha eleitoral do Macaco Tião, “candidato a prefeito” nas eleições do Rio de Janeiro em 1988, quando o chimpanzé do zoológico carioca recebeu cerca de 400 mil votos.
No final da década de 1990, o sistema eleitoral iniciou a transição para o novo modelo, mas a “velha política” seguiu no alvo das chacotas dos brasileiros. Com 100% das eleições feitas com urnas eletrônicas a partir do pleito municipal de 2000, o voto nulo deixou de ser acompanhado pela manifestação de descontentamento escrita pelos eleitores, que encontraram nos candidatos “outsiders” uma nova forma de mandar um recado contra o sistema político-partidário.
Com o slogan de campanha “pior que tá não fica, vote Tiririca”, o palhaço cearense foi o candidato a deputado federal mais votado no Brasil com 1,3 milhão de votos no estado de São Paulo nas eleições de 2010. À época, o humorista filiado ao Partido da República (PR) se tornou o “puxador de votos” mais famoso das eleições proporcionais. Na campanha, Tiririca ironizava a própria falta de conhecimento sobre o papel de um parlamentar nas propagandas eleitorais.
“O que é que faz um deputado federal? Na realidade, eu não sei. Mas vote em mim que eu te conto.”
Tiririca na campanha eleitoral em 2010
No entanto, na última década, a partir das manifestações populares contra o governo Dilma (PT) em 2013, o voto de protesto deixou de ter uma conotação de sarcasmo e passou a ter um caráter de posicionamento contra o establishment. “Isso pode gerar uma mudança quando transforma a estrutura partidária do país, quando o sistema reage a essa insatisfação e isso aconteceu no Brasil”, explica o cientista político e professor do Ibmec Belo Horizonte Adriano Cerqueira, ao comentar a vitória nas urnas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2018.
“A dobradinha PSDB e PT, primeiro com o presidente Fernando Henrique Cardoso, depois com a consolidação do PT [vitórias de Lula e Dilma], gerou uma insatisfação no eleitorado. Ao longo dos anos 2010, outras legendas partidárias aparecem para capturar o voto antissistema e surge o fenômeno Bolsonaro. Ele não tinha um partido, escolheu o PSL que se tornou uma grande legenda, assim como ocorreu depois com o PL”, recorda.
A partir deste novo cenário eleitoral, Cerqueira afirma que os partidos tradicionais perderam o protagonismo na política nacional, espaço que passou a ser ocupado pelas siglas representadas por candidatos eleitos pelo movimento antissistema.
“O PSDB é muito menor do que já foi no passado. O MDB chegou a ser o maior partido da Câmara e também se apequenou. O antigo PFL virou DEM e não existe mais. Hoje, faz parte do União Brasil na fusão com o que sobrou do PSL após a saída de Bolsonaro. Os partidos que estão dominando a política brasileira não são mais os mesmos do início deste século. Houve uma reestruturação do sistema partidário que conseguiu capturar essa insatisfação contra aquele status quo político anterior”, avalia.
Ainda de acordo com o cientista político, as redes sociais foram fundamentais para reforçar os votos de protesto, pois são mais democráticas e trouxeram as insatisfações dos brasileiros para o debate público. “Tanto que a reação do sistema foi aumentar a censura e controle sobre as redes sociais. Ou seja, uma luta contra o que representa o voto de protesto com essa carga antissistema, que pode mudar, parcial ou totalmente, o próprio sistema.”
Para Cerqueira, a tendência é que a decepção com os políticos eleitos seja constante até pela proximidade dos pleitos eleitorais, a cada dois anos no Brasil, o que possibilita novas candidaturas de pessoas de fora da política com discurso combativo. “Agora, temos o fenômeno do Pablo Marçal que explora essa insatisfação e tenta se apresentar como o candidato dos insatisfeitos”, ressalta. “Inclusive, ele atrai parte do bolsonarismo de São Paulo por conta do apoio de Bolsonaro ao Ricardo Nunes [candidato à reeleição pelo MDB] como se o ex-presidente estivesse se aproximando da política tradicional. Então, esse é um movimento incessante”, comenta.
Voto de protesto chega com mais força nas eleições majoritárias
Na avaliação do cientista político e professor do Insper em São Paulo Leandro Consentino, as candidaturas para atender a demanda de votos dos insatisfeitos precisam apresentar planos de governos e projetos mais consistentes em médio e longo prazo. “Esses movimentos são muito efêmeros. Quem é o representante do antissistema em uma eleição, já não é na outra”, alerta.
Segundo ele, o voto de protesto também passou a ser uma manifestação do eleitorado nos pleitos majoritários pelo país, que definem os cargos de prefeito, governador e presidente. “Chegou ao Poder Executivo com a possibilidade de dar uma caneta e um orçamento na mão dessas pessoas. Talvez seja preocupante nesse sentido de que você dá a chave do cofre e, ao mesmo tempo, o condão de promover políticas públicas a um candidato eleito não porque é visto como a melhor opção, mas sim como uma forma de protesto”, pondera.
Anteriormente, o voto do eleitor insatisfeito estava mais concentrado nos cargos legislativos, escolhidos por meio do sistema proporcional, que passou por mudanças após votações expressivas dos “puxadores de votos”, como o deputado federal Tiririca (PL-SP).
Segundo o advogado Richard Campanari, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Política (Abradep), as eleições de 2020 marcaram a tentativa de reformar o sistema eleitoral brasileiro pela proibição das coligações partidárias para cargos proporcionais, medida introduzida pela Reforma Eleitoral de 2017. “O fenômeno dos ‘puxadores de votos’ frequentemente permitia que figuras de apelo popular colocassem no poder parlamentares sem qualquer representatividade real, o que gerava um efeito nocivo ao conceito de democracia representativa”, justifica.
Com a nova legislação, Campanari comenta que os partidos menores foram forçados a reavaliar as estratégias sem a possibilidade de "alavancagem eleitoral” por meio das coligações. “Os resultados não apresentaram benefícios claros para o sistema representativo brasileiro, especialmente em nível municipal. O fim das coligações proporcionou uma redução na fragmentação partidária, mas não resolveu totalmente os problemas de representatividade e confiança entre os eleitores e seus representantes”, avalia o advogado especialista em direito eleitoral.
Tiririca diz que teve “voto de confiança” do eleitor e não de protesto
Quatro vezes deputado federal por São Paulo, Tiririca foi o parlamentar eleito com menor votação no estado, nas eleições de 2022, quando recebeu 71.754 votos. Procurado pela Gazeta do Povo, ele respondeu que não considera que foi eleito pela primeira vez, em 2010, pelo voto de protesto, mas recebeu um “voto de confiança da população”.
“A brincadeira é apenas para aliviar o ritmo da vida, ou mesmo criticar algo que todos sabemos que não está certo. Mas o assunto aqui na política é sério e tratamos assim. Com seriedade mas com leveza também”, respondeu Tiririca por meio da assessoria do parlamentar.
Ele afirmou que considera o brasileiro “altamente politizado” e que a internet possibilita o acompanhamento da política com maior transparência pela população. “Claro que essa propagação também amplia o universo de candidatos. Tem candidato de todo o jeito, cada um com sua proposta, e o povo que avalia e julga o que é melhor pelo voto”, declarou.
Questionado sobre o uso da expressão “pior que tá não fica”, Tiririca disse que isso “não significa falta de compromisso com as pessoas” e argumenta que apresentou 45 projetos de lei. “Um exemplo é o projeto que estamos trabalhando agora para isentar circos e artistas de rua de taxas de energia e água. Esse pessoal leva alegria e divulga a cultura popular, principalmente no interior do Brasil”, completa.
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