A primeira coisa que pensei ao entrar no complexo de energia nuclear onde estão as usinas Angra 1 e 2, no estado do Rio de Janeiro, foi: “Isso aqui é seguro mesmo?” Confesso. Mesmo sabendo que nunca houve um caso grave no Brasil, é inevitável não lembrar o caso de explosão das usinas nucleares de Fukushima, no Japão e Chernobyl, na Ucrânia. Até hoje não se sabe exatamente a extensão dos danos causados.
Mas, considerando que Angra 1 e 2 estão funcionando desde 1985 e 2001, respectivamente, e centenas de pessoas trabalham lá há décadas, me pareceu razoável a visita. Até porque a curiosidade é maior em conhecer uma usina por dentro e saber como ela funciona. Especialmente no Brasil, onde só existem essas duas em operação – e a terceira é um elefante branco.
No mundo são 436 usinas nucleares em funcionamento e 57 em construção, das quais 21 estão sendo erguidas na China. Por aqui, a terceira unidade em construção é Angra 3 – mas isso já faz quase 40 anos.
A visita foi feita dentro da usina Angra 2, a maior do complexo. Com potência de 1.350 megawatts (MW), pode atender ao consumo de uma cidade com mais de dois milhões de habitantes, como Belo Horizonte. Ao lado fica Angra 1, cuja potência é de 640 MW, energia capaz de abastecer uma cidade como Porto Alegre.
Ambas são operadas pela Eletronuclear, subsidiária da ENBPar, estatal criada para gerir Itaipu e Eletronuclear após a privatização da Eletrobras. O complexo que as abriga fica em Angra dos Reis e se chama Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, em homenagem ao militar e cientista que foi um dos principais articuladores do programa nuclear brasileiro.
A produção é enviada para o Sistema Interligado Nacional (SIN) que conecta as redes de energia elétrica de quase todo o país.
O complexo abriga também Angra 3, que começou a ser construída na década de 1980, mas até hoje só teve 65% das obras concluídas.
Problemas com licitações e restrições orçamentárias são algumas das razões dos atrasos. O último foi em 2015, em decorrência de investigações da Operação Lava Jato. A nova previsão de entrega é 2029. Além dos R$ 7,8 bilhões já aplicados, a Eletronuclear estima que sejam necessários cerca de R$ 20 bilhões para a usina ficar pronta.
Celulares para fora, radiação e catracas
A visita dentro de Angra 2 é técnica, aberta apenas para grupos de empresas e escolas, e deve ser agendada. O público geral pode conhecer mais da história no planetário onde são apresentadas as etapas e dados do complexo.
Na primeira parte da visita técnica são passadas algumas informações teóricas sobre como a energia nuclear é produzida, sua capacidade e potência, especificações gerais das três usinas e estudos para usar o hidrogênio verde que já é produzido por ali e de reatores modulares menores.
Este é um caminho que vem sendo costurado em outros países, porém incipiente no Brasil. Economicamente mais viáveis, as "miniusinas nucleares" também podem ajudar resolver um dos principais problemas do setor: o medo da população de um acidente com explosão. O impacto seria menor, e por isso acredita-se que a aceitação a projetos desse tipo poderia ser maior.
A energia nuclear é considerada uma fonte relevante na transição energética, visto que dispensa fontes fósseis, como carvão e petróleo, e pela grande capacidade de produção com quantidade relativamente pequena de matéria. Hoje, essa fonte é responsável por 1% da matriz energética no país.
A energia contida em uma pastilha de 7 gramas de urânio (do tamanho de um chiclete) equivale à de uma tonelada de carvão ou 22 caminhões de óleo diesel. O principal ponto negativo são os resíduos tóxicos e radioativos, que exigem tratamento cuidadoso.
Para entrar de fato na usina Angra 2, visitantes têm de deixar o celular do lado de fora. Há muitos dados confidenciais que não podem ser expostos ali.
Os funcionários podem levar smartphones, mas a internet nem sempre funciona. Na sala dos reatores nem adianta tentar: o uso é proibido porque o aparelho pode ficar ficar contaminado com radiação. O acesso ao local exige roupa especial de proteção.
Para evitar ataques hackers ao sistema, o prédio não tem conexão com a internet. A comunicação é feita por rádio, telefone e intranet, o que leva a sala de reuniões de emergências a reforçar o contato por meio de cinco modelos de telefones – inclusive um fax, aparelho que eu não via há muito tempo.
(Para quem já nasceu na era da internet rápida, fax é uma espécie de print do WhatsApp, uma comunicação impressa entre dois telefones fixos. Algo como um iPhone 15 Pro Max dos anos 1990.)
Na sala também estão todos os procedimentos documentados em papel e informações recentes dos últimos problemas. Ou seja, no caso de algum problema no circuito há como recorrer ao modelo “analógico”.
A sala de operações é composta por 10 mil botões e 7,5 mil alarmes. Os operadores, todos homens, se revezam em turnos. Eles passam por testes periodicamente e precisam refazer provas a cada dois anos.
São funções bem específicas e com grande responsabilidade, cujo salário chega a R$ 50 mil. O assédio de outras empresas é grande, tamanho o conhecimento deles, diz um dos executivos. Ao lado das usinas há vilas onde moram alguns dos funcionários. São alguns dos benefícios.
Entre sinalizações, catracas e avisos, a impressão é de que a parte operacional é semelhante a dirigir um veículo: você acelera, freia, dá a seta, conduz o carro, mas tudo no “automático”. A atenção mesmo é voltada para evitar acidentes. O motorista fica mais preocupado com o carro da frente, a moto que corta do lado direito, o ciclista que aparece de repente do que, de fato, dirigir, porque se não controlar o seu redor para minimizar possíveis acidentes, o resultado pode ser fatal.
Na área controlada e de acesso ainda mais restrito estão as turbinas (as estruturas verdes da foto do início do texto). Elas são movimentadas pelo vapor gerado após a fissão nuclear. Ali também está o gerador, que converte em eletricidade e a envia para o SIN.
Passamos por, pelo menos, quatro catracas fechadas de cima a baixo, portas, corredores, passarelas. Em todas foi necessário apresentar o crachá recebido na entrada que continha a identificação de cada um, com dados repassados previamente. É preciso usar capacete e óculos de segurança.
Gustavo Souza Pinheiro dos Santos, instrutor de simulador de Angra 2, diz que as usinas brasileiras “não correm o risco de explodir”, como aconteceu em Fukushima, no Japão. Os sistemas são diferentes, explica: enquanto na usina japonesa os circuitos primário e secundários se misturavam, no Brasil isso não ocorre.
“No sistema deles, você tem mais rendimento. No Brasil, optamos por perder rendimento para ter reatores mais seguros. É o modelo mais usados no mundo. França, Alemanha e Suécia usam”, diz Santos.
Incidentes levantam dúvidas sobre transparência
Há muitos defensores da energia nuclear no Brasil, como fonte de energia que não emite gases de efeito esfuta. A principal barreira é o temor de acidentes.
A Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto tem quatro níveis de gravidade de ocorrências. Os funcionários garantem que nenhuma passou do primeiro nível. Por outro lado, também dizem que a partir do segundo nível não comunicam oficialmente à imprensa para não alarmar a população.
Ou seja, o público não toma conhecimento de problemas entre o simples e o grave, o que pode alimentar desconfianças.
Nesse sentido, chamou atenção um episódio ocorrido em setembro de 2022 na usina de Angra 1. Na época, houve um vazamento de água radioativa na baía de Itaorna que não foi imediatamente informado aos órgãos de fiscalização. O Ibama e a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) foram notificados apenas 21 dias após o episódio.
O Ibama multou a Eletronuclear em R$ 2,1 milhões por descarte irregular de substância radioativa e descumprimento da licença de operação, e o Ministério Público Federal moveu ação contra a empresa.
A Eletronuclear só se manifestou publicamente em março de 2023, quando o caso veio a público. A companhia disse que houve "uma liberação não programada na usina de cerca de 90 litros de água contendo substâncias com baixo teor radioativo" e que, como os valores estavam "muito abaixo dos limites da legislação que caracterizam a ocorrência de um acidente", tratou do episódio como um "incidente operacional interno".
"O valor verificado foi bem menor do que o recebido por um indivíduo submetido a uma radiografia de tórax e cerca de 1.000 vezes menor que a exposição anual proveniente da radiação natural, presente no nosso dia a dia", apontou o então presidente da Eletronuclear, Eduardo Grand Court, em comunicado na época.
Como é produzida a energia nuclear em Angra 2
A energia nas usinas nucleares brasileiras é gerada pela fissão nuclear – a quebra de um átomo, no caso, de urânio. Essa quebra libera energia, que é convertida em calor – e isso acontece bilhões de vezes, simultaneamente, dentro do reator.
Esse calor aquece a água desmineralizada (totalmente limpa) que se encontra dentro do reator, num sistema fechado.
Gustavo Bidetti Mardegan, funcionário da Eletronuclear que conduziu a visita, simplifica: “É como se fosse uma resistência de chuveiro. A resistência aquece e transfere esse calor para a água que passa por ela”.
Ele prossegue: “Essa água aquecida sai do reator por tubulações e vai trocar calor com uma segunda água, que se encontra dentro do gerador de vapor. Ao ser aquecida, esta segunda água vira vapor, o qual, por sua vez, é direcionado para as turbinas, fazendo elas girarem. Na ponta da turbina existe um gerador elétrico, que transforma o movimento em energia elétrica”.