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Bateria elétrica retirada da bicicleta, do monociclo e até da cadeira de rodas para servir de base para um motor de carro elétrico. Plástico PET, madeira e fibra de carbono para revestir a carcaça dos veículos. Parece coisa de inventor – e é.
Estas são algumas das soluções criadas por cerca de 500 estudantes, de escolas do Brasil e da América Latina, para uma competição que premia os modelos de carro mais eficientes, ou seja, que percorram a maior distância com a menor quantidade possível de combustível.
Neste ano, a façanha foi rodar 611 quilômetros com apenas um litro de gasolina na pista montada na lateral do Piér Mauá, na zona portuária do Rio de Janeiro. A marca foi conquistada pela equipe Drop Team, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFRS), Campus Erechim.
O resultado foi inferior ao do ano passado, de 715 km/por litro, mas a equipe comemora outros avanços. Eles reduziram o peso do protótipo em relação ao ano passado e passaram a coletar dados nos testes do consumo de gasolina e de energia. Antes conseguiam somente mensurar o uso de combustível com o carro em movimento, conta Laisla Portella, integrante da equipe: “A coleta de dados no treino ajuda a ver onde melhorar. Mensura melhor, foi um ponto crucial. Antes, só tínhamos a medida de combustível", relata.
A competição Shell Eco-marathon é realizada anualmente desde 1985 em outros continentes. No Brasil, ocorre desde 2016 (à exceção do período de pandemia), primeiro em São Paulo e nos últimos anos no Rio.
Norman Koch, gerente-geral global da Shell Eco-marathon, explica que a proposta é que os jovens se aproximem da prática e da realidade de um ambiente de trabalho: “Aqui eles trabalham com pressão, orçamento e em equipe”.
O objetivo é criar e desenvolver sistemas, tecnologias e alternativas para que o carro percorra mais quilômetros com menos consumo. Os jovens sonham em ter suas ideias patenteadas e conseguir um bom emprego com a experiência.
A disputa ocorre em três categorias de combustível: elétrico, combustão (gasolina ou etanol) e hidrogênio verde. Os modelos podem ser urbano (que seria o mais próximo de um carro de série) ou protótipo (conceitual).
Os protótipos parecem cápsulas nas quais os pilotos – em geral mulheres magras e de estatura mais baixa – ficam praticamente deitados durante a corrida. Em geral são três rodas, a maior na frente e duas nas laterais, muitas vezes feitas de fibra de carbono, um material leve e resistente.
Pelas regras da competição, o protótipo não precisa ser viável para as ruas, e sim demonstrar eficiência. É o caso da equipe resultante da parceria de alunos da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e Senai. Em sua estreia na maratona, usaram o motor elétrico de um monociclo para equipar o protótipo. Não ganharam a maratona, mas saíram satisfeitos.
“Participar de uma equipe, ter que se desenvolver como pessoa, estudar bastante, gerenciar pessoas. Está sendo um desafio bem legal. Nosso motor é de reaproveitamento, foi o que a gente tinha. Fizemos o controle, parte elétrica e montagem de placa”, conta Felipe Pastora, integrante do time.
O desafio na categoria de veículos urbanos consiste em, além da eficiência, reunir características de um carro comum, da parte mecânica ao design. Também são modelos incipientes, mas com a ideia de que se fossem aperfeiçoados poderiam virar um projeto real. A expectativa dos participantes é de que as inovações testadas possam ser, de alguma forma, absorvidas pelo mercado.
Antes da apresentação do modelo na competição, os alunos precisam desenvolver em suas universidades e escolas a ideia do projeto e montar os sistemas. Quase sempre, isso é feito do zero. É preciso calcular detalhes até ajustar e ficar apto à maratona. Isso sem contar verba, tempo, trabalho em equipe, além de inovação, design e aerodinâmica.
Segundo relatos dos estudantes, o maior desafio é justamente conectar as fases do projeto – como, por exemplo, regular a pressão, a quantidade de oxigênio e a velocidade do ar na conexão do motor – e com segurança. Um trabalho de formiguinha e precisão, em que cada ajuste conta no resultado final.
São esses acertos que os ajudam a conhecer melhor a prática e entender como funcionam os carros. Muitos querem trabalhar com mobilidade e automobilismo. Fazer parte de uma equipe de Fórmula 1 é sonho de vários deles.
O desafio seguinte é transportar essa amostra de carro para o evento. No ano passado, a bateria do modelo elétrico do carro que seria exposto pelos alunos da Universidade Nacional Autônoma do México teve problemas na alfândega e não chegou a tempo.
Uma vez que o carro e os alunos chegaram à competição, seus veículos precisam passar pela inspeção técnica com profissionais da Shell. São avaliados 11 itens, como freios, voltante, cintos, funcionamento do motor, se não há trapaça – como parar o medidor para não contabilizar gasto de combustível – e por aí vai.
A peneira é rígida, explica Koch, especialmente porque envolve segurança. Neste ano, das 41 equipes inscritas, 30 foram liberadas para a pista. Quando conseguem o aval para correr, a comemoração ecoa pelo galpão do Píer.
Competição teve dois veículos movidos a "hidrogênio verde"
As duas equipes que usaram hidrogênio verde nesta edição não conseguiram concluir a prova – nem a equipe brasileira, que levou um modelo urbano, nem a boliviana, com um protótipo. Mas estavam felizes por conseguir passar pela inspeção e por serem pioneiras.
A equipe boliviana Capitan Victor Ustariz foi a primeira a levar o hidrogênio verde na competição brasileira. Foi no ano passado, mas o veículo não passou nos testes de segurança. Neste ano, eles voltaram com melhorias no mesmo protótipo e conseguiram passar nos testes.
Os estudantes do Grupo Cataratas de Eficiência Energética (GCEE), da Unioeste Foz do Iguaçu (PR), desenvolveram o primeiro modelo urbano movido a hidrogênio da competição brasileira.
Ambas escolas estão inseridas em polos que produzem e estudam a fonte renovável, o que lhes permite o acesso fácil ao combustível. No caso do Brasil, a GCEE e a universidade fazem parte do conglomerado Parque Tecnológico Itaipu (PTI), que tem uma planta de produção de hidrogênio verde.
Renato Graciolli é engenheiro mecânico do Centro de Tecnologias de Hidrogênio no PTI. Já participou de várias edições da Eco-marathon e acredita que a experiência lhe foi relevante para uma boa colocação no mercado de trabalho. Hoje, é responsável pela célula de combustível a hidrogênio e ajuda os alunos.
"Nosso carro é um veículo elétrico, mas, em vez de ter uma bateria de lítio, tem uma célula combustível a hidrogênio. O benefício é ambiental, pois os componentes das baterias são difíceis de reciclar. Ganhamos com velocidade de recarga, autonomia”, explica o engenheiro.
A solução de células já existe e o que os estudantes desenvolveram foi a interligação entre a parte mecânica, segurança e sensores de vazamento de hidrogênio.
“A parte da inteligência do veículo é feita pelos alunos. Compramos a célula laboratorial para estudantes, que é diferente da que é usada no mercado, e eles fazem a adaptação para veículos. O desafio é como gerenciar esta célula combustível e integrar com os outros sistemas para entregar maior autonomia do veículo", salienta.
Carros elétricos: criatividade, transformação e troca de material
Na categoria de elétricos, o primeiro lugar em protótipo foi o desenvolvido pela equipe E3 UFSC, da Universidade Federal de Santa Catarina. Eles alcançaram o recorde de 381km/kWh, superando a marca de 376 km/kWh, de 2023. Para chegar a este resultado, eles modificaram 80% do carro levado no ano anterior – aperfeiçoar veículos de um ano para o outro é muito comum entre as equipes que participam da maratona.
As rodas, que eram de alumínio, com aros e raios como de uma bicicleta, foram trocadas por rodas de fibra de carbono, mais leves, resistentes e aerodinâmicas.
“Isso reduz a massa que cada roda tem que ter. Significa que a roda tem que girar menos coisa e, por isso, é mais fácil de empurrar", explica o capitão da equipe, João Andrade. “Nós desenvolvemos nossas rodas. Não existe roda de carbono desse jeito no mercado”.
Outro fator que contribuiu para dar velocidade ao protótipo foi o novo sistema elétrico: “Essa parte é um pouco de segredo industrial. O que posso dizer é que a gente trocou os métodos e operação de antes. Então, basicamente, o cérebro do carro está mais inteligente", afirma Andrade.
Nos veículos urbanos, a turma do Green E Car, da UTFPR Medianeira (PR), levou a melhor ao atingir 25km/kWh. A universidade levou também um protótipo movido a gasolina, que ficou em terceiro lugar na categoria de combustível a combustão.
Chamado de Pé Vermelho, o carro é o mesmo do ano passado, mas com 40 quilos a menos e mais potência. “Antes era de policarbonato, alumínio e muito ferro. Mudamos tudo desta vez. Só a estrutura é de ferro (o chassi), o resto é de fibra de vidro e policarbonato”, explica Rafael Fogliarinni, integrante do time que adianta o que esperar no próximo ano: “Queremos fibra de carbono porque é uma placa bem mais leve e resistente, mas a verba é mais difícil”.
A jornalista viajou a convite da Shell