Estudioso do jogo do bicho, o sociólogo Michel Misse não se surpreende mais com a estreita ligação entre policiais e bicheiros. "É uma relação histórica", afirma. Em entrevista por telefone, Misse analisou a declaração do ex-comandante-geral da Polícia Militar do Paraná, o coronel Marcos Theodoro Scheremeta, que admitiu publicamente na última sexta-feira ter vínculo pessoal com chefões do jogo do bicho em Curitiba.
Para o sociólogo, Scheremeta não pode ser censurado simplesmente por manter amizade com bicheiros desde que isso não tenha influenciado na sua atuação como policial. Misse ressalta que se houve erro na indicação do coronel para o comando da PM, ele não foi do governo estadual, mas sim do oficial, que aceitou. "Ele [Scheremeta] fica numa posição delicada", enfatiza.
O ex-comandante-geral da PM do Paraná afirmou ter relações de amizade com bicheiros. Como o senhor avalia essa declaração?
Eticamente é complicado. Mas ao fato de eles serem amigos não há qualquer impedimento. Podem ser amigos de infância e ninguém pode impedir isso. Agora, como comandante da PM, ele fica em uma posição delicada.
Essa relação não interfere no trabalho dele como policial?
Depende. É uma posição delicada, difícil para ele, mas não se pode condenar uma amizade. Só se pode condenar caso ele não estivesse fazendo seu trabalho. Se ficar provado que o comandante não cumpriu a lei, então sim.
Como o senhor analisa essa ligação entre policiais e bicheiros?
É uma relação histórica, até porque o jogo do bicho é histórico. Existe há mais de um século no Brasil. É evidente que a manutenção da criminalização do jogo favorece essa situação. O jogo do bicho é popular. Se fosse algo clandestino... mas o jogo é praticamente semilegal. Em todo o país você vê os apontadores do bicho trabalhando. A repressão é muito seletiva. O Brasil não é um país para principiantes.
Por que é tão difícil reprimir o jogo do bicho?
Nos Estados Unidos havia uma campanha moral para controlar o consumo de bebida alcoólica [no início do século passado]. Então, fizeram a Lei Seca. Quando começaram a ver que todos bebiam clandestinamente e o resultado era o pior possível, resolveram acabar com a lei. A situação do jogo do bicho é mais ou menos semelhante. Você tem uma criminalização de uma atividade que é popular. Muitas vezes o próprio policial joga no bicho e ele acha absurda essa criminalização. Isso facilita a corrupção.
O governo do Paraná errou ao colocar um coronel que tem relações pessoais com contraventores no comando da PM?
Se houve um erro, esse erro incide sobre o próprio comandante. Ele fica numa posição delicada. Ninguém pode de antemão supor que o fato de você ter uma amizade signifique estar corrompido. Isso é muito importante frisar. Se o governo escolheu como comandante da PM alguém que é amigo de bicheiros, colocou essa pessoa numa posição difícil. Se o comandante quis esse cargo, é porque aceitou o desafio. Não dá para ficar criminalizando antes da hora. Agora, é uma situação delicada para um comandante, não resta dúvida.
A Polícia Federal fez uma operação recentemente contra o jogo do bicho em Curitiba que criou constrangimento nas polícias estaduais...
O que pode estar ocorrendo é um grau de tolerância. O jogo não é crime, é uma contravenção. Ela dá uma prisão de no máximo seis meses. No Nordeste, por exemplo, a PF fechou várias lojas onde se tinha jogo do bicho. Por quê? Havia uma tolerância local com relação ao jogo. No Rio de Janeiro e na Bahia, nos anos 60, os governadores decidiram tolerar. Foi amplamente publicado na imprensa. Chamaram isso de Operação Magalhães [em referência ao ex-governador Juracy Magalhães] porque começou na Bahia e o [governador] Badger da Silveira aderiu no Rio. Foi uma decisão estadual de não gastar o tempo da polícia com isso. O que acontece hoje em dia é que se o governador fizer algo assim o Ministério Público vai para cima dele. Então, hoje a tendência é praticar a tolerância sem falar, sem divulgar.
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