Rafael Stival, diretor do Trieste Futebol Clube, foi surpreendido com uma notícia em março de 2018.
Após cinco anos de parceria no desenvolvimento de categorias de base, o Athletico decidiu encerrar o contrato com o time amador de Santa Felicidade, tradicional bairro de colonização italiana de Curitiba.
As equipes do Furacão, do sub-10 ao sub-17, eram todas trabalhadas na moderna estrutura do pequeno e familiar clube. A ruptura, inegavelmente, foi dolorosa. Pelo menos para uma das partes.
“Nós tínhamos uma identificação muito forte com o Athletico. Primeiro que nossa família é toda atleticana. Eu era conselheiro. A gente se aproximou. E como estamos próximos geograficamente, somos muito ligados”, explica Stival, de 53 anos.
Antes mesmo do início da parceria, vários jogadores descobertos pelo Trieste já haviam migrado para o CT do Caju.
O meia-atacante Marcos Guilherme, por exemplo, foi a primeira ‘joia’. Depois, seguiram nomes como os zagueiros Léo Pereira e Lucas Halter e o lateral-esquerdo Renan Lodi — atualmente no Atlético de Madrid e na seleção brasileira. Hoje em dia, 73 jogadores provenientes da parceria seguem na base do Furacão.
“Estava dando certo. Tinham jogadores chegando. Até o pessoal do meio do futebol, dos outros clubes, achava difícil que a gente saísse de lá. Mas por uma opção política do Athletico, que tem todo direito e a gente respeita, o contrato foi encerrado... Mas já ouvi que se arrependeram”, enfatiza Stival.
Aposta do Flamengo
A inesperada decisão alterou, sem querer, todo o modelo de negócio do Trieste. E transformou o time em um descobridor de talentos exclusivo do Flamengo. O bairro Santa Felicidade, então, trocou de Rubro-Negro.
"No dia seguinte ao fim da parceria com o Athletico o pessoal do Flamengo estava aqui para conversar conosco", recorda Stival, que também foi abordado por Cruzeiro, Grêmio, Internacional e São Paulo.
Marcos Biasotto, então coordenador das categorias de base do Flamengo, e Luiz Carlos de Azevedo Junior, atual coordenador do departamento de scout, foram conhecer de perto como funcionava o Trieste. Um mês depois, em 13 de abril de 2018, a parceria foi anunciada oficialmente.
"Fiquei muito surpreso com o que vi. Não só com a receptividade dele [Rafael Stival], dos funcionários, e com a forma como eles trabalham. Conversei com vários pais de garotos, e eles estavam extremamente felizes. Além do elogio na função de recrutador, falaram muito bem pessoalmente, do carinho, do zelo que eles têm com as crianças. E isso me chamou muito mais a atenção", afirma Biasotto, que hoje é gerente de futebol do Inter.
Antes, porém, foi feito um ajuste importante. Até então, o Trieste funcionava como um clube amador comum, que disputava os mais diversos campeonatos de base. O foco mudou para captação e prospecção de atletas entre dez e 13 anos — partir dos 14 anos os clubes já podem alojar atletas, o que limita o campo de busca.
Assim, o aspecto competitivo foi deixado totalmente de lado. "Construímos em conjunto esse modelo. Nessa faixa de idade é mais fácil detectar os principais talentos. E aí trazemos os garotos para cá [Rio de Janeiro] para que possamos desenvolvê-los", conta Azevedo.
"Entendemos que é uma parceria fantástica, muito positiva. As pessoas que estão à frente do processo são muito sérias, muito corretas. Periodicamente mandamos treinadores para lá para construir de maneira bem conjunta e captar com cada vez mais qualidade", completa o coordenador.
Em pouco mais de um ano e meio de parceria, 25 jogadores já foram do Trieste para o Ninho do Urubu. A expectativa é de aumentar o número para 40 até janeiro. A renovação de contrato por mais dois anos está bem encaminhada.
Como funciona?
Basicamente, o Trieste avalia potenciais jogadores em diversos estados do país, especialmente nas regiões Sul, Centro-Oeste e Norte. São quatro olheiros. Quem se destaca é convidado para uma semana de avaliação em Curitiba, no complexo chamado Trieste Stadium.
O deslocamento não é coberto pelo clube, que oferece hospedagem e alimentação para os garotos. A presença dos pais é obrigatória e há um alojamento exclusivo para os responsáveis durante o período de testes.
Entre outubro de 2018 e outubro de 2019, 328 cidades foram visitadas in loco por um profissional do clube. Mais de 50 mil atletas foram observados e 1500 passaram para a fase de avaliação presencial em Curitiba. A taxa de aprovação é de apenas 2%.
"A partir do momento em que os meninos passam a morar aqui, eles têm escola particular, alimentação, transporte. Tudo bancado pela gente. Também damos uma ajuda de custo para o pai ou a mãe que os acompanham", fala Stival.
O custo mensal para o Trieste fica na casa de R$ 150 mil. O Flamengo cobre 30% dos gastos, ou seja, paga cerca de R$ 45 mil por mês. A diferença é bancada com o lucro gerado pelo Trieste Stadium, que conta com academia, aluguel de quadras esportivas, restaurante, escolinha de futebol e até espaço para eventos.
Por contrato, o Trieste fica com um percentual (mantido em sigilo) dos direitos econômicos dos jogadores que forem aprovados pelo Flamengo — porcentagem acima do que estava no acordo com o Athletico, inclusive. Trabalho de longuíssimo prazo, mas que pode render uma fatia milionária de uma negociação, por exemplo.
"A gente fala pra famílias que não se pode criar raízes aqui. É uma passagem. Temos que preparar e rapidamente, em seis meses, no máximo um ano, mandar os garotos para continuarem a se desenvolver no Flamengo", frisa Stival.
Tratamento VIP
O clima no Trieste é familiar. Rafael Stival, que comanda o projeto há 14 anos, é auxiliado diretamente pela esposa, Nelma Stival.
Apesar da formação acadêmica em Letras, ela ostenta o próprio doutorado de "mãezona" para os meninos que passam pelo clube. Os cuidados e o acolhimento vão muito além do básico, com direito a passeios e noite da pizza.
"A receita é muito amor no que fazemos. É todo dia aqui, de domingo a domingo, sem folga, dando atenção a eles", diz Nelma.
Leonardo Stival, filho do casal, já foi preparador de goleiros e hoje é observador técnico. E o amigo de longa data Ricardo Vargas é quem lidera o processo de captação e prospecção pelo país.
"Respeitamos muito os meninos que são avaliados. A gente dá muito valor, um tratamento VIP, vamos dizer assim. É algo que você não encontra por aí", garante Vargas.
"Depois da semana de avaliação, eles não voltam pra casa aprovados ou reprovados na sexta-feira. Não temos esse direito. Nós avaliamos com nossos olhos, mas outros clubes podem ter outro olhar. Então vamos fazendo contato com os professores deles para que essa situação seja a mais tranquila possível", emenda Stival.
Mãe do avante Marcos Guilherme, do Al Wehda, da Arábia Saudita, Eva de Almeida Santos de Matos endossa o tratamento acolhedor existente no Trieste. Descoberto no Interior paulista, o ex-jogador de Athletico e São Paulo chegou ao clube com 11 anos.
"Dona Nelma e seu Rafael deixam de viver a vida deles para realizar o sonho desses jogadores. Tudo o que fazem é com o maior carinho. Eu só tenho que agradecer tudo o que fizeram pelo meu filho", reconhece.
"É uma família que acolhe bem a todos. O que fizeram por mim e como me trataram mudou muito quem eu poderia ser. Pra melhor”, reitera o volante catarinense Leonardo Tórtura. O juvenil do América-MG visitava o clube durante a folga no dia da reportagem.
Pé na estrada
Pelo menos uma vez por mês, Stival pega o carro e cai na estrada para garimpar talentos pelo Brasil. São dias de uma rotina puxada, mas que ele não troca por nada. O ex-diretor de uma gigante do ramo alimentício se realiza indo de cidade em cidade, uma menor do que a outra, em busca de um futuro craque.
Afinal, aquele meia de habilidade incomum ou o camisa 9 goleador nato podem estar em qualquer lugar. "Ele [Stival] chegou a prospectar jogadores em tribos indígenas. Isso eu acho fantástico, esse trabalho de oportunizar as crianças acho fundamental. É um modelo que fiquei muito feliz que o clube manteve depois da minha saída. E pelo que estou vendo está dando frutos", elogia Biasotto.
Em quase 15 anos viajando atrás de diamantes brutos, Stival já estabeleceu uma robusta rede de contatos. São escolinhas, professores, projeto sociais que acabam se tornado parceiros.
"Daqui a seis meses alguém pode me ligar dizendo que apareceu um menino diferente. Eu falo pra mandar o pai junto e vir fazer a avaliação. Então começam a chegar jogadores sem a necessidade de estar no local também", revela.
O perfil buscado é voltado para a técnica, velocidade e dinamismo. E em Curitiba, os selecionados recebem tratamento individualizado, com carga e volume de treinamento específicos, buscando uma evolução mais rápida nos padrões flamenguistas.
Outro ponto tratado com cuidado é a preparação mental. Talento não garante nada. "Já vimos vários atletas muito diferenciados, muito acima da média. Mas sempre tem aquela coisa da família influenciar negativamente, lesões, foco em outras coisas, festas... Posso citar mais de dez nomes que poderiam estar milionários hoje e não estão", aponta Leonardo Stival.
À medida que o tempo passa, a linha de corte aumenta. Quem fica abaixo da expectativa do Flamengo, no entanto, pode voltar ao Trieste para ser "recuperado" e, com sorte, encaminhado a outro clube.
"Tem o caso de um goleiro que não se adaptou no Rio, mas hoje está no Inter. O Flamengo é bem tranquilo quanto a isso", cita Leonardo, que morou quatro meses no Rio para entender a filosofia do clube.
"Um dos nossos segredos é o tempo. Primeiro filtramos, escolhemos no Brasil todo, quase toda semana tem alguém vendo uma cidade, um estado diferente. Buscamos o talento e preparamos aqui para ele que já chegue mais pronto ao Flamengo e consiga destaque logo de cara. Por isso que temos toda essa estrutura, esse investimento. Para que eles possam se transformar num Renan Lodi, por exemplo. Se ele não tivesse sido lapidado no momento certo, talvez não teria chegado", sustenta Vargas.