Quando reforçou o Athletico, em janeiro de 2017, para a disputa da Copa Libertadores, o atacante Grafite já tinha seus 38 anos de idade. Não era mais nenhum menino, mas continuava marcando seus gols — com 13, foi vice-artilheiro do Brasileirão na temporada anterior, pelo Santa Cruz.
Só que as coisas não deram certo em Curitiba para o esguio centroavante. Um grave problema familiar e uma série de lesões resultaram em apenas um gol em 24 partidas. Suas atuações eram criticadas pela imprensa e pela torcida.
O tão necessário (e até certo ponto inesperado) apoio veio de outro veterano que ele pouco conhecia: Lucho González.
“Ele foi o cara que, junto com o Paulo André, chegava e tentava me motivar. Me dava moral, brincava comigo, mesmo sabendo que eu não estava num bom momento. O Lucho falava: “Bora, Pantera, precisamos de você’”, conta Grafite, hoje comentarista do SporTV.
“Eu fiquei no Athletico por mais alguns meses. Teria saído antes se não fosse ele. É um cara sensacional. Criamos uma amizade muito boa”, acrescenta o ex-jogador.
O exemplo acima resume bem quem é Luis Óscar González. O argentino de 38 anos pode até não parecer, a olho nu, tão importante para as conquistas recentes do Furacão.
Seus números não se destacam e seu desempenho naturalmente oscila, mas dentro do clube não há dúvidas de que o meio-campista tem papel crucial para o elenco.
Tanto que Lucho renovou o seu contrato, em novembro de 2019, para mais uma temporada. Em dezembro de 2020, ele completará mais de quatro anos de clube. Uma identificação mútua.
Com 27 títulos em 21 anos de carreira profissional, González só está atrás de Lionel Messi no número total de conquistas entre seus compatriotas. Mas você nunca verá o camisa 3 atleticano se gabar dos feitos invejáveis.
O longilíneo meio-campista de 1,85 m – que transitava de área a área como poucos no auge da carreira – prefere ser, por natureza, apenas mais um dentro do grupo. Sente-se mais confortável assim.
E é essa liderança mais silenciosa, alheia à imposição, que tem ajudado a moldar jovens talentos do plantel rubro-negro. O gringo virou exemplo para revelações como Bruno Guimarães, Renan Lodi e Raphael Veiga. E vai seguir orientando, tanto quem sobe das categorias de base, como os estrangeiros que forem contratados.
“Gosto que os mais jovens tenham mais responsabilidade e dou conselhos. Alguns devem pensar que sou um velho chato, mas aqui temos vários jogadores com muito futuro”, analisou o argentino em entrevista ao site oficial atleticano, em abril de 2017, quando completava sete meses no CT do Caju.
“Eu sempre fui assim. Mesmo quando era jovem, gostava de chegar cedo e me entrosar com todos. Hoje, faço o mesmo e não com o objetivo de que me reconheçam por isso. Eu sou assim. Mas claro que fico grato de ser uma referência”, ressaltou ‘El Comandante’, que tem 134 jogos pelo Athletico.
Do inferno ao céu
No fim de 2017, após jogar sua primeira temporada completa no Furacão, o argentino viveu um drama pessoal. Foi acusado de tentativa de homicídio pela então esposa, a portuguesa Andreia Marques. O processo corre em segredo de Justiça, mas conta com testemunhos de funcionários do casal inocentando o jogador.
De qualquer forma, o caso ganhou repercussão internacional e abalou a vida do argentino, que ficou sem ver os filhos e com o rumo incerto. Apoiado pelo clube, ‘El Comandante’ foi recontratado em fevereiro. E a aposta se mostrou certeira em várias perspectivas.
“Sou fã do Lucho. É um cara altamente preparado dentro de campo, sem falar que agrega muito fora dele. Tem um caráter limpo, uma liderança muito afetiva, de muito carinho com os garotos. Passa muita segurança. É o perfil que o Atlético gosta. Não conquista nada na imposição”, elogia o meia Carlos Alberto, companheiro durante a Libertadores no ano passado.
“É um super profissional, que cuida muito do físico. Acho que o chimarrão, que sempre o acompanha, é o elixir da juventude dele”, brinca Grafite.
Bocha e competitividade
Na infância, Lucho demonstrou um interesse não muito comum à idade. Bem antes do futebol, foi a bocha, esporte normalmente associado a idosos, o primeiro a lhe atrair.
Com seis anos, frequentava um parque perto de casa, no bairro Parque Patricios, em Buenos Aires, onde passou a observar — e depois jogar — com os adultos. Apurou a concentração e talvez tenha sido ali, involuntariamente, que começou a desenvolver uma marca de sua personalidade futebolística.
O rótulo de ‘animal competitivo’, cunhado pelo técnico Paulo Autuori ao descrever González, é a mais pura verdade.
“Assino embaixo com o professor. Nos momentos de pressão, quando a partida era fundamental, foi quando mais vi o Lucho se apresentar”, afirma o ex-goleiro Hélton, companheiro em seis títulos portugueses no Porto.
“Ele é competidor, não gosta de perder. Acho que todo atleta argentino tem isso. Não gostamos de perder nem jogando baralho. Ele não é diferente. Foi criado assim”, atesta o meia Andrés D’Alessandro, rival e amigo desde a adolescência.
Enquanto Lucho surgiu nas canteras do modesto Huracán, em 1998, D’Ale jogava pelo poderoso River Plate. Enfrentaram-se inúmeras vezes nos campos das categorias inferiores. E o laço se estreitou a partir de convocações para base da seleção argentina, onde foram companheiros de quarto.
Em 2002, González se juntou ao amigo no River, onde venceram dois títulos do Torneio Clausura. Dois anos depois, conquistaram juntos a medalha de ouro olímpica em Atenas-2004.
Eles se reencontraram na final da Copa do Brasil de 2019, quando Lucho levou a melhor sobre o amigo.
“Lucho é um cara simples, tranquilo, que não fala muito. Fala quando precisa falar – e se faz escutado. Ele não gosta de aparecer e está sempre tentando ajudar, se preocupando com os outros”, descreve D’Ale, também nascido em 1981.
Para Juan Pablo Sorín, cinco anos mais experiente, a convivência aconteceu na seleção Albiceleste. Ambos foram titulares na Copa do Mundo de 2006, na Alemanha.
“Eu o chamava de Sócrates pela qualidade para jogar e pelo físico em algum ponto parecido com o grande Doutor”, relembra o lateral-esquerdo que marcou época por Cruzeiro e River, cobrindo o ex-companheiro de elogios.
“Lucho é um jogador com uma visão diferente. Destacaria seu toque de bola, seus passes e sua categoria e sua dinâmica para ir de uma área a outra acompanhando ao time e se infiltrando para chegar ao gol”, cita.
Exemplo
Em Portugal, onde atuou por oito anos intercalados com três temporadas no francês Olympique de Marselha, Lucho se tornou ídolo incontestável dos Dragões. Sua conduta e ética de trabalho, de uma forma ou outra, sempre acabavam virando exemplo quando o líder Hélton precisava trazer algum ‘miúdo’ para o rumo certo.
“Eu falava: ‘Olha lá o Lucho, com o currículo que tem, todo humilde trabalhando. Pega o exemplo dele, que veio para vencer, não para só para passar pelo clube’”, recorda o goleiro.
O lateral-esquerdo Alex Sandro, que teve o argentino como tutor no Porto em 2013, confirma. “O Lucho, ainda mais com os jovens, tenta pegar pelo braço e mostrar os caminhos certos. Tenho certeza que todos os jogadores que tiveram a oportunidade de trabalhar com ele o veem ele como uma grande pessoa, um grande jogador e um grande exemplo”, resume o atleta da Juventus e da seleção brasileira, em entrevista ao site oficial do Athletico.
Mensurar os benefícios que uma figura dessa envergadura pode agregar ao uma equipe de futebol, contudo, vai além da vivência em si, na visão de D’Alessandro. Principalmente hoje em dia, em que os jovens têm muita facilidade dentro de grandes clubes e, eventualmente, acabam perdendo a essência do jogo.
“Nós aprendemos de outra maneira e hoje, de repente, temos que nos adaptar um pouco mais aos jovens. Mas eu tento, e acho que o Lucho também, passar algumas coisas que aprendemos, de respeitar os mais antigos, aqueles que têm mais tempo de clube. Manter um código no vestiário. Não que na nossa época tenha sido melhor, mas tem coisas que não se podem deixar pelo caminho”, reforça.
Tudo está caminhando para que Lucho encerre a carreira no Athletico. Campeão da Sul-Americana e da Levain Cup, além da Copa do Brasil, ele deixou de lado a vontade de defender o Racing, seu time do coração, para ficar onde se sente bem e é apreciado.
Seja dentro ou fora de campo, como um verdadeiro comandante. Quem sabe, no futuro, como técnico?
Deixe sua opinião