Não dá para esperar ver bom futebol em Manaus. A cidade da Amazônia é tão quente e úmida que você precisa de um banho depois de dar uma caminhadinha na rua. Na noite de sábado, nós que estávamos nas arquibancadas perdemos peso só de assistir Inglaterra e Itália. O jogo deveria ter sido uma chatice arrastada. Mas ao contrário, foi um clássico. No contexto de uma Copa do Mundo, isso significa que foram duas seleções fortes, equilibradas, produzindo seus melhores lances de ataque. Isso soa simples, mas o último clássico deste tipo que eu presenciei ao vivo for Inglaterra e Argentina em Saint Etienne, na França há 16 anos.
Eu cheguei ao Brasil esperando tédio. A média de gols por jogos nos Mundiais caiu de 2,71 em 1994 para apenas 2,27 em 2010.Estive em seis Copas antes desta e frequentemente me peguei sentado nas arquibancadas pensando: "Por que alguém assiste isso?", mais especificamente em Colônia em 2006, durante a partida entre Suíça e Ucrânia, o ponto mais baixo de 10.000 anos de civilização humana.
E depois disso, a atual Copa do Mundo está sendo devastadora. Nos primeiros 11 jogos, vimos 37 gols --- uma média de 3,36 por partida. É verdade que é uma amostragem pequena, mas não se trata apenas de números. O ataque parece estar de volta. Nós devemos isso à comercialização do futebol.
Você voa pelo Brasil pensando que a Copa está sendo jogada aqui. Mas isso é uma ilusão. Os estádios são apenas os cenários. O evento real, na cabeça dos planejadores da Fifa, é a sala de tevê global. Desde o começo dos anos 90, o retorno financeiro das transmissões de futebol pela tevê está crescendo. Fifa é agora efetivamente um produtor de tevê que é dona do produto mais rentável das telinhas. Esta Copa do Mundo será o evento televisivo mais visto da história, com os quatro países mais populosos do planeta China, India, Estados Unidos e Indonésia -- cada vez mais interessados. Futebol agora gera lucros com as pessoas que ficam em casa.
Sabemos que os telespectadores querem: estrelas jogando um futebol mais ofensivo. Se Pele e Diego Maradona ficaram de fora das copas de 66 e 82 respectivamente por causa da ação de sistemas de defesa brutais, as estrelas de hoje, Neymar, Arjen Robben e Lionel Messi são protegidos pelos juízes.Telespectadores não gostam de perda de tempo, de simulações dos jogadores e consequentemente os juízes também não gostam. Em um treinamento antes do Mundial, os treinadores assistiram videos de simulações e foram avisados: os juízes não tolerariam cenas assim. É fato que Fred conseguiu um pênalti contra a Croácia depois de uma simulação, mas regras diferentes se aplicam aos anfitriões. Os gregos se desmancharam várias vezes na área colombiana sem conseguirem o que pretendiam.
Ao mesmo tempo, o futebol dos clubes também se tornou mais ofensivo por causa da tevê. Antes da década de 90, eram raras partidas que eram transmitidas ao vivo e por isso os treinadores podiam usar estratégias entediantes. Agora, torcedores, imprensa e patrocinadores reclamam do estilo defensivo. Isso significa que a maioria dos jogadores chega à Copa do Mundo versados no futebol ofensivo, que já praticam em seus clubes. O técnico da Bélgica, Marc Wilmots, me disse que os treinadores das seleções não têm tempo para reprogramar seus jogadores. Quando o argentino Alejandro Sabadella perguntou a Messi como ele queria jogar, este respondeu: acompanhado por vários outros atacantes, como no Barcelona. No segundo tempo contra a Bósnia, o desejo de Messi foi atendido e ele reagiu positivamente.
O estilo do Barcelona domina esta era televisiva. Há versões: a versão espanhola, o "tiki-taka" foi desmantelada em Salvador pelo contra-ataque rápido dos primos holandeses. Mas agora vários países priorizam ataques com passes rápidos, especialmente a Alemanha, o Chile e até os antes chatos Itália e Bélgica. "Você tem que ousar tomar o controle sobre o jogo", diz Wilmots. O tic-tac não está morto: só que agora é melhor jogado pela Itália que pela Espanha. Para alguns, um ataque com muitos passes não é um estilo, mas uma ideologia, "Só quem joga bonito ganha títulos", diz o técnico alemão Joachim Löw. Muitas seleções continuam atacando mesmo depois de dominarem o placar. Foi o caso do terceiro gol da Costa Rica contra o Uruguai.
Os treinadores se sentem mais à vontade para incentivar o jogo bonito porque cada vez mais, os torcedores aceitam a derrota.Câmeras de tevê e comerciais, com o foco nas torcidas de rosto pintado e vestindo fantasias, espalharam a ideia de que a Copa do Mundo é uma festa. Os Mundiais estão deixando de ser continuação de guerras entre países em busca de prestígio. Muitos torcedores que vemos no Brasil estão aqui só pela diversão. Eu assisti Suiça e Equador em um bar na beira da praia, em Salvador, lotado com chineses, canadenses e americanos prontos a torcer para qualquer seleção, e quando o Equador perdeu ninguém se atirou do alto das rochas. Um americano me explicou a filosofia desta copa do mundo: "praias. Jogos"
Você pode constatar esta nova maneira de pensar em Manaus. Tradicionalmente depois de um resultado ruim dos ingleses, os tabloides ingleses exigiam a saída do técnico: "Em nome de Deus, suma!". Se o oponente era muçulmano, a manchete se tornava "Em nome de Alá, suma!". Mas depois de perder para a Itália, ninguém invocou um deus amazônico contra Roy Hodgson. Ao contrário: os jornalistas britânicos na conferência de imprensa estavam suados mas generosos. Hodgson perdeu, mas o menos a Inglaterra não está eliminada, como em 2010.
Muitos outros países aprenderam uma lição similar em 2010: os suiços, os japoneses, os brasileiros e os holandeses entediaram suas torcidas e perderam. Não querem repetir esse cenário. O pragmático Felipe Scolari sabe que seus compatriotas não aceitaram cautela em excesso. E como o grande holandês Johan Cruijff disse uma vez, com o passar do tempo as pessoas só lembram das seleções que jogam bonito, mesmo que elas tenham perdido.
A caravana da Copa segue Brasil afora e, apesar das horas passadas em aviões, atravessar este país continental é uma alegria. Até agora esta é a Copa da alegria, não a do medo. Jogo bonito não é mais só um slogan.
Tradução: Marleth Silva
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