Pelé não tinha defeitos. Edson tem, como todo cidadão. Com exceções, os ídolos são especiais por seus talentos
Eu tinha 19 anos. Era minha primeira convocação. A seleção brasileira fez um jogo-treino contra o Cruzeiro, em Caxambu, no interior de Minas, e meu pai foi me ver e assistir ao treino. Ele era louco para conhecer Pelé pessoalmente. Ao vê-lo, pediu um autógrafo, recebeu um abraço carinhoso de Pelé e chorou. Não é todo dia que um homem simples chega perto de um rei.
Pelé foi o maior jogador do mundo de todos os tempos porque tinha, no mais alto nível, todas as virtudes que um craque de sua posição precisa ter.
Hoje, por ser um analista, procuro um defeito técnico em Pelé e não encontro. Pelé era muito habilidoso, técnico, criativo, forte, veloz, autoconfiante, ambicioso e aguerrido. Quanto mais difícil a partida, mais ele pedia a bola e se agigantava.
Além de tudo isso, Pelé, literalmente, enxergava mais do que os outros. A estrutura anatômica de seu globo ocular, com um olhar saliente e expressivo, aumentava seu campo visual.
Pelé parecia enxergar até o que estava às suas costas.
Antes de a bola chegar a seus pés, Pelé me olhava, parecendo dizer o que ia fazer. E fazia. Tentava acompanhá-lo. Não era fácil. A comunicação analógica, por meio de gestos, de olhares e de movimentos do corpo, é menos exata, mas muito mais ampla do que a comunicação digital, com palavras.
Pelé tinha o que os especialistas chamam hoje de inteligência cinestésica. Parecia ter um megacomputador no corpo. Em fração de segundos, mapeava tudo o que estava a sua volta, observava os movimentos e calculava a velocidade da bola, dos companheiros e dos adversários. Prefiro chamar isso de saber inconsciente, que antecede ao raciocínio lógico. Ele sabia, sem saber que sabia.
As pessoas que não viram Pelé jogar ao vivo, no gramado ou na televisão, acham que seu auge foi na Copa de 1970. Seu esplendor técnico foi de 1958, com 17 anos, até mais ou menos metade da década de 1960.
Antes da Copa de 1970, muitos diziam que Pelé estava pesado e que não conseguia jogar várias partidas seguidas com a mesma exuberância. Pelé sabia disso e se preparou para se despedir da seleção com grandes atuações e com o título mundial. Foi o que aconteceu.
Pelé era um bom companheiro, no campo e na concentração. Gostava de ficar no quarto. Não tinha estrelismo nem privilégios. Tratava bem a todos. Durante o jogo, recebia orientações, broncas e não respondia com rancor.
Fora de campo, Pelé atendia a todos com um largo sorriso. Nunca o vi triste nem chateado.
Diferentemente de quase todas as grandes estrelas, em todas as atividades, em que há muitos conflitos entre a pessoa e o personagem, entre o criador e a criatura, Pelé e Edson viviam em harmonia. Pareciam a mesma pessoa. Um não incomodava o outro.
Não conheço nada da vida pessoal de Pelé, mas deduzo que ele nunca foi um empresário. Foi e é um garoto-propaganda. Além de anunciar produtos, Pelé vendeu seu nome a empresas e passou a ter vários sócios, nem sempre honestos. Uma mistura de desconhecimento com ingenuidade e também de ambição com vaidade, características do ser humano. Isso não tira suas responsabilidades.
Pelé vive viajando pelo mundo, vendendo seu sorriso, sua simpatia e sua imagem. Para isso, procura ficar bem com todos, ser politicamente correto e parecer melhor do que é. Pelé não tinha defeitos. Edson tem, como todo cidadão.
Com raras exceções, os grandes mitos, em todas as atividades, não são, nunca foram nem se deve esperar que sejam exemplos de cidadãos. Eles são especiais por seus talentos.
Pelé faz 70 anos. Aparenta ter muito menos.
Imagino que aos 90 o mundo irá vê-lo anunciando algum produto e sorrindo.
Pelé parece eterno. E é. "O que a memória amou se tornou eterno." (Adélia Prado)
Tostão é colunista do jornal Gazeta do Povo e ex-jogador de futebol. Foi campeão do mundo ao lado de Pelé, em 1970.
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