Reportagem da Gazeta do Povo acompanha a partida da seleção brasileira ao lado de trabalhadores que não tiveram folga durante os 90 minutos da estreia do time de Dunga na África do Sul. Motorista e cobrador de ônibus, funcionários da área médica do hospital Cajuru e parte do estafe do Aeroporto Afonso Pena se desdobram para ter informações mínimas sobre o jogo de Johannesburgo. Tudo sem estresse, pois prevaleceu a lógica: "Somos serviço de utilidade pública".
Leia as histórias:
No ônibus, paz por ruas vazias
Marcos Xavier Vicente
Em poucos minutos, Mauro Azanha, 53 anos, e Valdir Pereira de Almeida, 38, foram do estresse à calmaria ontem. Não pelo fato de o Brasil ter obtido uma vitória magra contra a Coreia do Norte. O alívio tinha outra causa: as ruas livres na estreia da seleção na Copa.
Motorista e cobrador da linha de ônibus Barreirinha, Azanha e Almeida não puderam assistir à partida. Em compensação, rodaram quase duas horas como sempre sonharam: sem trânsito algum. "Ah, se fosse todo dia assim... Tem como ficar estressado com as ruas assim, sem nenhum carro?", comparava o motorista à rotina habitual de engarrafamentos.
Antes de chegar ao deserto nas ruas, porém, a dupla enfrentou um calvário na última viagem até o início do jogo. Normalmente, o trajeto entre a Praça Tiradentes e o Terminal da Barreirinha é feito em torno de 25 minutos. Com as vias repletas ontem antes da partida, o percurso quase dobrou: 45 minutos. "Antes dos jogos é sempre essa loucura. Depois, fica um sossego que dá gosto", comentava Almeida, com a experiência de três copas anteriores.
Dito e feito. As viagens seguintes, já com a bola rolando, foram em não mais do que 15 minutos. Na primeira depois do corre-corre, os 91 passageiros que se exprimiam no coletivo deram lugar a cinco mulheres e uma criança que podiam se dar ao luxo de escolher o assento. "Gosto de Copa, mas essa barulheira me irrita. Vou aproveitar o jogo para ir ao mercado e à igreja", dizia a aposentada Leoni Machado, 79 anos. Já a auxiliar de lavatório Lindacir de Souza, 30 anos, lamentava: "Gosto de futebol. Mas tenho que trabalhar. Entro às 16 horas..."
Para saber o resultado, Azanha e Almeida recorriam aos passageiros com rádio. "Mas basta ouvir uns rojões que a gente já sabe que é gol", dizia o motorista.
Azanha ainda teve sorte: assim que o ônibus chegou ao ponto final na segunda viagem com o jogo transcorrendo, conseguiu correr a uma banca de revista para ver o replay do gol de Maicon. Almeida, nem isso.
Na última viagem antes do fim da partida, o ônibus ameaçou não sair do lugar por problemas mecânicos. Mas, como o time de Dunga, engasgou, engasgou, até pegar no tranco e seguir em frente.
Aeroporto tem dia (quase) normal
Napoleão de Almeida
O relógio é o pior inimigo. É dia da estreia do Brasil na Copa e o comércio vai baixando as portas bem antes das 15h30, correndo para casa. Mas há um grupo que não tem esse privilégio. O país não para: no Aeroporto Afonso Pena, nove voos estavam programados para o período em que a seleção superava (no aperto) a Coreia do Norte.
"Nós somos parte dos serviços essenciais, não tem como parar de jeito nenhum", disse, por telefone, o supervisor do aeroporto Wilson Fernandes. Por telefone porque estava na pista, coordenando cinco aeronaves entre idas e vindas.
O dia foi corrido. Pela manhã, vários voos foram cancelados em função de um problema técnico, o que atrasou a vida de Valmir Ferreira. Ele e a esposa, que moram em Porto Velho, Rondônia, iriam pela manhã. Como não deu, ao menos jogaram o voo para as 19 h, depois do jogo. "Eu queria ver muito o jogo, ainda bem que conseguimos fazer essa mudança de última hora", contou Valmir, munido de um belo caneco de chope.
Os restaurantes do terceiro piso eram a casa da torcida que, em trânsito, não se importava tanto com atrasos. A Infraero não usou os monitores dos pisos de embarque e desembarque para exibir o jogo. Evidentemente, não poderia abrir mão das telas que confirmam os pousos e decolagens. Mas manteve também no ar a TV Aeroporto, repleta de propagandas. Os bares agradeceram: cerca de 300 pessoas se espremiam por lá e, naturalmente, consumiam. Até mesmo o dono da loja de artesanato, que deixou um simpático "volto logo" na porta para acompanhar a seleção.
Na porta de embarque, as agentes de proteção Eva Canepa e Sandra Mara conferiam a passagem entre um "uhh!" e outro. "Não podemos ver, temos escala aqui. Nem uma tevezinha para nos informar", conformava-se Eva. Às 16h40, com os gritos no andar de cima, ela pode comemorar: Maicon havia feito 1 a 0.
Nos céus, o comissário de bordo Carlos Reinke também vibrava. Pelo rádio, ele e a tripulação do voo TAM das 15h30 entre Porto Alegre e Curitiba receberam a notícia. "A gente fica sabendo. Claro que eu preferia folga e estar com os amigos, mas não tem como, é o nosso trabalho", contou, assumindo também que mal pisou no solo e ligou o celular com tevê para confirmar o resultado. Ok, o Brasil não para. Mas dá um jeitinho de ver a seleção.
Pronto-socorro ignora a seleção
André Pugliesi
Saúde é um serviço absolutamente indispensável, seja em que época for. Assim, enquanto o Brasil estreava na Copa, o Hospital Cajuru seguia em ritmo normal. Para o plantão de ontem, mais de 30 profissionais entre médicos, enfermeiros, recepção, etc. tiveram de deixar a bola de lado para atender ao pronto-socorro.
"Acho que vai ser bem sossegado. Você vê que esvaziou tudo. Teve até paciente que pediu alta para ir acompanhar o jogo", dizia Patrícia Longhi Buso, cirurgiã-geral e responsável pela emergência na tarde de ontem. Pois bastou o juiz apitar para ser desfeita a impressão de uma jornada tranquila pela frente.
Barulhinho agudo ao fundo é sinal de ambulância do Siate em marcha-ré. "Auto-Moto", anuncia o socorrista, ao mesmo tempo em que empurra a maca. Na sala, o único sinal de Copa é uma bexiga amarela presa à parede e um papel com o bolão dos funcionários, onde só havia apostas com vitória da seleção brasileira.
Do lado de fora, escondida em um cantinho, uma pequena televisão (5 polegadas) preta e branca faz o contato com o mundo do futebol. "A japonesada está caindo em cima", comenta Dirceu Ferreira, maqueiro. Na recepção, em frente, a tevê está quebrada, e quem aguarda por lá parece não dar a mínima para o time de Dunga.
Eis que mais um motoqueiro acidentado chega. Outro vem a seguir. Pelo jeito, reflexo da pressa no trânsito para curtir a partida em casa. "Pior que não. Estava indo embora numa boa e um carro bateu em mim", afirma Rafael Santana, estirado na maca, mas sem ferimentos graves.
Fim do primeiro tempo, foram 12 atendimentos de emergência. "Foi um movimento normal", avalia a emergencista Patrícia. Pausa no Estádio Ellis Park, placar em branco, intervalo também no Cajuru com a emergência vazia. "Agora os jogadores devem estar levando uma mi... do Dunga", aposta Isabelle de Oliveira, técnica de enfermagem.
Recomeço do confronto, uma gritaria avisa: gol do Brasil. Todos perguntam quem fez: Maicon! Correria rumo à sala de raio-x, único lugar onde há uma televisão em boas condições conectada. Lá dentro, cinco funcionários de olho na performance verde e amarela. E, em seguida, nova comemoração: 2 a 0.
Voltando ao PS, um senhor dá enorme trabalho aos enfermeiros. "Quando vem paciente etilizado (bêbado), temos de amarrar pois eles tentam nos agredir", conta Keli Neves Feitoza, enfermeira. Lá na África, quem complica é a Coreia, diminuindo o marcador. "É um lixo esse time", brada um médico, de passagem pelo recinto. Apito final no gramado e, somando mais seis atendimentos, termina o plantão.
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