Eram quase 19 horas de 13 de agosto quando Cristiano Ronaldo marcou o segundo gol do Real Madrid sobre o Barcelona – minutos depois, o craque seria expulso e o Real Madrid ainda marcaria novamente, vencendo o maior rival por 3 a 1 na Supercopa da Espanha. Longe de todo aquele glamour, estava um jogador que certamente não foi lembrado por nenhum torcedor do time catalão como solução para evitar a derrota e suprir a ausência do recém-negociado Neymar.
Keirrison de Souza Carneiro foi contratado pelo Barcelona em junho de 2009 por € 15 milhões e nunca vestiu a camisa de um dos maiores clubes do futebol mundial. “Acompanho sim, não só o Barcelona”, conta. “Costumo assistir porque consigo observar os trabalhos táticos que pude acompanhar lá. Não mudou a filosofia, mas colocaram novos elementos desde a saída do Guardiola”.
Índice
> De volta ao Coxa: dor e silêncio
O início
Dez anos atrás, o futebol apresentado por Keirrison o tornava esperança para resolver as dificuldades do Coritiba. Em 2007, o clube entrava em seu segundo ano consecutivo na Série B, marcado pelo fracasso na temporada anterior, quando o acesso escapou por dois pontos.
René Simões, técnico do alviverde na época, relembra os dias em que precisou lidar com a pressão para escalar o então garoto de 18 anos. “O Keirrison é um cara excepcional. Se não fosse isso, teríamos problemas: todo mundo queria que ele jogasse e eu pedia calma – ainda era preciso amadurecer um pouco mais”. Quando finalmente entrou, Keirrison deu resposta imediata: na campanha que culminou com o título, foi o principal artilheiro do Coxa na Série B, anotando 12 gols.
“Parece que o gol é fácil, mas não é: é preciso ter visão antes de a bola chegar e logo em seguida tomar a decisão correta”, diz Simões. “Ele foi um dos responsáveis por aquela conquista. Estava ao lado dele no retorno da partida contra o Santa Cruz e pude presenciar a alegria dele ao ver o aeroporto lotado”, completa o empresário Naor Malaquias, um dos responsáveis por trazer o atacante do desconhecido CENE para o Coritiba.
Se a Série B serviu como cartão de visitas, a temporada seguinte foi a explosão: em 2008, Keirrison foi o maior goleador do país, chegando a marcar quatro vezes em uma partida (5x1 no Santos, em novembro) – ao todo, foram 41 gols em 58 jogos.
“Foi um ano fantástico”, recorda Dirceu Kruguer, ídolo coxa-branca que acompanhou toda a trajetória de Keirrison no clube. “Nesta partida (Santos) ele fez um gol que mostra toda sua qualidade: poderia carregar a bola um pouco mais, mas bateu no contrapé do goleiro, forte, sem pegar impulso. Quando chutou, logo pensei ‘este menino está louco’. Mas ele tinha total consciência do que estava fazendo”.
Novo destino
A ascensão meteórica tornou sua saída inevitável. Em 2009, mesmo ano em que o Coritiba acabaria sofrendo um novo rebaixamento, Keirrison chegou ao Palmeiras ainda em janeiro. A negociação foi conturbada, mas o jovem atacante desembarcou como uma das grandes contratações da então parceira do Palmeiras, a Traffic, para a Libertadores.
“Era um dos melhores jogadores da equipe. Ele já era espetacular”.
Em um início arrasador, Keirrison chegou a uma média de 1,33 gol por partida em seus primeiros 14 jogos no clube. Tornou-se referência – e, também, o mais visado pela torcida: quando o Palmeiras caiu nas quartas-de-final da Libertadores, foi a primeira vítima das críticas.
Na época, o goleiro Marcos procurou usar sua influência de capitão do time para lembrar o que o atacante havia feito no clube até ali: “Éramos um grupo: todos deveríamos ser criticados ou exaltados”, afirmou o goleiro dias após a eliminação. “Era um dos melhores jogadores da equipe. Ele já era espetacular”.
O último gol de Keirrison com a camisa do Palmeiras aconteceria justamente em Curitiba, e contra um velho rival: foi dele o empate contra o Atlético nos acréscimos, na Arena da Baixada, três dias após a eliminação na Libertadores. Ninguém ainda sabia, mas seria a última vez que ele balançaria as redes pelos próximos oito meses. No final da semana seguinte, Keirrison embarcaria para a Espanha.
Um sonho de verão na Catalunha
Quando soube da negociação, o técnico palmeirense, Vanderlei Luxemburgo, ficou furioso. “Segurei a onda dele. Faltou respeito comigo e com seus companheiros”, acusou o treinador. E garantiu: se o Barcelona desistisse do negócio, K9 tinha seus dias contados no clube – não vestiria mais a camisa do Palmeiras enquanto Luxemburgo estivesse por ali.
“O Vanderlei queria que eu ficasse, mas muitas pessoas não entendem que foi o Palmeiras que aceitou a proposta primeiro, e não eu”, diz Keirrison. “Ele se manifestou na época e nunca entendi os motivos. Na verdade, só posso agradecê-lo: ele montou um time que me auxiliava muito e fiz 24 gols em quatro meses. Hoje atacantes lutam para fazer 20 gols em um ano. Sempre o respeitei e continuarei respeitando. Torço para que ele tenha sucesso”.
As duras declarações de Luxa fizeram a direção demiti-lo, alegando que ele havia quebrado a hierarquia interna do clube. Apesar dos números brilhantes, o negócio gerou surpresa: o Barça iniciava sua era vitoriosa sob o comando de Pep Guardiola e em 2009 venceu todos os títulos que disputou. Ele teria espaço em um time que já contava com Messi, Thierry Henry e Eto’o?
A resposta veio logo: Keirrison seria lembrado como um dos piores negócios da história do Barcelona. O novo reforço foi emprestado imediatamente – dando início a um ciclo de poucos jogos, cada vez menos gols, e a crescente impressão de que havia se tornado uma promessa que não vingou.
“Ele deveria ter ficado um pouco mais no Palmeiras”, analisa Renan Ceschin, colega da mesma geração que surgiu na base do Coritiba. “Um tempo maior no Brasil teria lhe preparado melhor para Europa. Mas quem recusaria uma proposta do Barcelona? Ninguém. Não há como criticá-lo por isso”.
Ostracismo
Emprestado ao Benfica, Keirrison entrou em campo apenas seis vezes. “Ele tinha duas propostas com que o Barcelona concordava: Benfica e Zaragoza. Eram idênticas. Em uma reunião na época optamos pelo Benfica”, relembra Naor.
Uma decisão questionável no gerenciamento da carreira, já que o clube português tinha no elenco outros sete atacantes. “Algumas pessoas entraram nesta negociação e só fui entender um tempo depois”, pondera Keirrison. “Mas como já estava lá, não havia mais o que fazer. Cobrei aqueles que gerenciavam minha carreira, elas deveriam ter tido este cuidado. Foi um erro, reconheço: com certeza o Zaragoza era uma opção melhor”.
Depois, no início de 2010, chegou à Fiorentina. Na Itália, as oportunidades também foram poucas, mas a nota positiva foi o reencontro com o gol. Sem balançar as redes desde os dias de Palmeiras, Keirrison voltaria a marcar em 27 de fevereiro, salvando a Fiorentina de uma derrota contra a Lazio aos 46 minutos do segundo tempo: “De direita, no apagar das luzes. Tirei um peso das costas naquele dia”, conta.
Ele ainda faria outro gol quase dois meses depois, em um empate contra a Inter de Milão. Era muito pouco para alguém que havia surgido prometendo tanto.
O primeiro recomeço
Buscando recomeçar, Keirrison retornou ao futebol brasileiro aceitando um papel de coadjuvante. Voltou para vestir a camisa do Santos e, por lá, quem brilhava eram dois nomes ainda mais jovens: Paulo Henrique Ganso e Neymar. Foi na Vila Belmiro que conquistou o maior título de sua carreira, a Libertadores de 2011, mas nunca se firmou no time.
“Percebíamos que ele estava incomodado com a situação (na Europa) e tinha escolhido o Santos para dar a volta por cima”, recorda Muricy Ramalho, treinador do Peixe no título continental. “O grande problema é que tínhamos um plantel muito forte”. A nova passagem no futebol paulista se encerrou após a final da Libertadores e, ao todo, Keirrison entrou em campo em 31 jogos e marcou 10 gols.
Sua próxima escala, ainda em 2011, foi em um Cruzeiro que lutava para não cair: precisando de resultados imediatos, o time mineiro quase não deu chances ao desacreditado atacante. Keirrison jogou oito vezes e marcou apenas um gol. No fim do ano, também passaria por uma nova cirurgia no joelho, iniciando um longo drama que adiou ainda mais o sonhado ressurgimento.
De volta pra casa
O primeiro retorno ao Coxa, em 2012, foi marcado por lesões e recuperações. No lado positivo da balança, o encontro com o ídolo Alex. “Várias vezes falamos sobre recomeço”, relembra o ex-camisa 10. “Não gosto muito de usar essa palavra, mas faltou sorte para ele. A lesão no joelho, principalmente a segunda, causou muitos empecilhos”.
Keirrison marcaria o gol da vitória, já nos acréscimos, no jogo de despedida de Alex. “Assim que saio de campo e encerro minha carreira, retorno às arquibancadas. E o primeiro gol que vejo como torcedor é dele, em um momento de felicidade rara: ao lado da minha família, no último lance, feito por um cara que é da casa, que gosta do clube, e que tentava de todas as formas fazer com que a situação melhorasse. Teve um simbolismo muito forte”, recorda o meia. Foi uma mera fração de felicidade em uma passagem marcada por problemas e uma saída conturbada.
“Olho para qualquer lado no CT do Coritiba e vejo meu filho correndo, brincando”.
Keirrison resume aquele período como “três anos em silêncio”. “Em 2014, quando renovamos, já foi para construir um acordo, resolver pendências antigas e o Coritiba não ter problemas. Mas então uma pessoa que trabalhava aqui quis me jogar contra a torcida e isto eu não podia aceitar: três anos aguentando calado e então alguém me detona, fala mentiras. Precisava me posicionar, mesmo que saísse com fama de mercenário”, diz.
Na mesma época, Keirrison perdia o filho, Henri, de apenas dois anos, vítima de uma parada cardíaca após um quadro infeccioso. A tragédia familiar pesou ainda mais sobre o atacante, que se viu diante de questionamentos sobre a própria continuidade da carreira.
Londrina e nova tentativa na Europa
Em 2016, o Londrina apresentou um projeto para tentar encaixar Keirrison: usá-lo na equipe aos poucos para pegar ritmo, transformando-o em peça essencial. Começou bem: três gols nas quatro primeiras partidas na segunda divisão, mostrando que não perdera o faro de artilheiro. Mas a exigência física do campeonato fez o técnico Cláudio Tencati apostar em uma rotatividade maior, alternando Keirrison e Itamar conforme a partida.
“O Itamar cresceu no campeonato e virou uma opção muito boa. A Série B exige força em determinados jogos. O Keirrison é mais técnico, mais tático, e se tornou inviável em algumas partidas”, recorda Tencati.
Mas a alternância não significava desinteresse – o plano era de longo prazo. “Entendíamos que, se ele ficasse mais uma temporada, seria fundamental. Ele vinha de mais de um ano inativo quando chegou ao Londrina. Para 2017, ele teria uma pré-temporada adequada, já conheceria a estrutura do clube. Tinha tudo para ser o camisa 9 do Londrina por muito tempo”, avalia Tencati.
Em vez disso, Keirrison preferiu mais uma vez tentar a Europa. Portugal batia à sua porta, porém em um clube muito distante do glamour do Benfica. Em uma decisão da qual hoje se arrepende, Keirrison trocou os planos do Londrina pela incerteza de um clube desesperado, o pequeno Arouca. E se antes havia ficado parado pelas lesões, agora era preterido por opção técnica de uma equipe que não quis apostar na contratação de meio de temporada. Keirrison entrou só duas vezes, sempre no final dos jogos, e oficialmente disputou apenas três minutos de futebol.
“Agradeço muito ao Londrina e ao Tencati, mas eu tinha um objetivo particular de voltar para a Europa”, justifica Keirrison. “Não foi da forma como imaginei. Aliás, chegando lá, foi totalmente o oposto do que combinamos. Nunca vi uma situação tão amadora, com tamanha falta de profissionalismo”, completa.
A experiência serviu para enterrar de vez o sonho europeu: “Tenho amigos que falam que podem surgir propostas e logo vou embora novamente. Mas posso garantir que tenho um objetivo estabelecido desde que retornei. Vou atingi-lo e, quando acontecer, todos os torcedores saberão”.
O último retorno
No início de julho, Keirrison retornou novamente ao Coritiba, após renegociar dívidas referentes a sua última passagem, entre 2012 e 2015. Em dezembro daquele ano, acionou o clube na Justiça por conta de salários atrasados e promessas não cumpridas da diretoria.
Em novembro de 2015, quando tornou pública a situação, Keirrison foi afastado pela diretoria. O jogador, então, conseguiu ganhar a ação e encerrou o contrato, que iria até junho de 2017. Para retornar, a dívida foi parcelada em 36 vezes e o atacante abriu mão de uma quantia financeira.
“O Coritiba contribuiu muito para minha carreira e me sinto muito tranquilo aqui. Depois de tantos desafios, é uma responsabilidade tão boa”, diz Keirrison, que encontrou no novo retorno o local ideal para seguir enfrentando sua maior batalha: a saudade do filho.
“Foi uma situação que me fez perceber que existe algo diferente, que extrapola até a questão da religiosidade. Não existe nada mais triste do que enterrar o próprio filho”. Hoje, diariamente, traz consigo a lembrança de Henri: “Olho para qualquer lado deste CT e o vejo correndo, brincando. Dói, claro, mas ele me ensinou a importância do presente, de viver cada dia ao máximo, porque de uma hora para a outra tudo pode acabar”.
O reencontro com os gramados parece cada vez mais próximo – Keirrison foi relacionado para o duelo contra o Vitória, pela 22ª rodada do Brasileirão, mas não entrou na partida, e o Coritiba acabou derrotado por 1 a 0 no Couto Pereira.
Já o outro reencontro, com o gol, provoca emoção antes mesmo de acontecer. “Quando estou em campo, costumo observar a arquibancada. O torcedor, muitas vezes, teve uma semana ruim, onde tudo deu errado, então vai para o estádio esperando a vitória. E eu posso colocar um sorriso no rosto dele balançando as redes. Sempre fico de olho nessa mudança de expressão”, diz. “Sonho com esse novo primeiro gol. É louco isso, não? Mais de 70 gols pelo Coritiba e, mais uma vez, parece que será o primeiro”.
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