No verão, as casas de apostas pagavam 5000 para 1 se o Leicester fosse campeão da Premier League. O prêmio foi baixando, mas sempre pareceu uma surpresa monumental. Parece ficção, mas hoje é real: a Cinderela da Premier League ganhou o título depois que o Tottenham não conseguiu vencer no feudo de Chelsea (2x2) no jogo final da antepenúltima rodada do campeonato, segunda-feira (2). A equipe de Stamford Bridge levou dois gols, mas conseguiu empatar com um gol de Hazard a dez minutos do final, praticamente a única coisa que o melhor jogador do campeonato do ano passado fez nesta temporada.
Os jogadores do Leicester receberam a notícia reunidos diante da televisão na casa do artilheiro Jamie Vardy, enquanto o técnico Claudio Ranieri estava a bordo de um avião depois de ter ido visitar sua mãe em Roma.
1) A dinâmica
A nove jogos do fim do campeonato do ano passado, o Leicester era o lanterna, sete pontos atrás da salvação. Terminou seis pontos acima dela depois de vencer sete jogos, empatar um e cair contra um Chelsea embalado rumo ao título. Era a temporada do retorno à Premier League depois de dez anos longe dela, inclusive com uma rápida passagem, em 2008, pela terceira divisão do futebol inglês e uma derrota traumática três anos atrás em um playoff contra o Watford, quando poderia ter subido, com um pênalti a favor perdido no último minuto da prorrogação e um imediato contra-ataque do rival que o eliminou. Schmeichel, Morgan, Drinkwater e Schlupp jogaram aquela partida. Jamie Vardy, que não jogou nenhum minuto, e Harry Kane, o atual artilheiro da Premier com o Tottenham, estavam no banco de reservas naquela fatídica tarde. Hoje compõem a linha de ataque da seleção inglesa.
2) O verão
No fim de junho, o Leicester demitiu Nigel Pearson, o técnico com o qual voltara à Premier e que havia salvado o clube do rebaixamento. O clube alegou “diferenças fundamentais de perspectiva”. Alguns dias antes havia vazado um vídeo com três jovens jogadores do clube em uma orgia com mulheres durante uma excursão de pós-temporada na Tailândia, a terra do proprietário do clube. No vídeo, proferiam vários comentários racistas e o clube rescindiu seus contratos. Um dos jogadores era o filho de Pearson, que também fora recriminado por episódios de briga com adversários, jornalistas e até mesmo torcedores.
3) O treinador
Gary Lineker, glória do clube, do futebol inglês e agora respeitado apresentador do Match of the Day, o emblemático programa que resume cada rodada da liga na BBC, foi taxativo depois da demissão de Pearson. “O futebol não deixa de surpreender com sua estupidez”. Quando o nome do substituto foi anunciado, ele não se perturbou em sua conta no Twitter: “Claudio Ranieri (foto)? De verdade?”. Qualificou-o de opção “aborrecida”. O italiano chegou depois de um retumbante fracasso com a Grécia, sua primeira experiência como treinador de seleções. Assinou por dois anos e foi despachado depois de quatro meses, um empate e três derrotas, a última em Atenas contra as Ilhas Faroe. O Leicester chegou como seu sétimo destino em oito anos, quando a equipe já preparava a temporada em um retiro austríaco. “Não há muito para mudar, apenas alguns conceitos táticos”, disse.
4) O dinheiro
O elenco atual do Leicester custou menos de 30 milhões de euros (cerca de 120 milhões de reais) em contratações, metade do que o Manchester City pagou neste verão para ter Sterling, um reserva. Por Mahrez, o melhor jogador da temporada, pagou meio milhão de euros; por Vardy (foto), um milhão e meio. No atual nível de preços na Premier, no verão chegaram Kanté, comprado por oito milhões do Caen da França, e Okazaki, contratado junto ao Mainz por onze milhões, a mais cara contratação da história do clube. O baixo custo do Leicester é relativo nos parâmetros da liga espanhola. Vardy ganha cinco milhões de euros por ano e a folha de pagamento anual do elenco, embora seja uma das mais baixas da Premier, supera os 60 milhões de euros. Na liga espanhola essa folha de pagamento seria a sexta, equivalente à do Villarreal. Mais da metade dos clubes do campeonato espanhol têm folhas de pagamento entre 14 e 30 milhões de euros.
5) O estilo
“Sangue, coração e alma”, explica Ranieri sobre sua equipe, que despreza a importância da posse de bola e equilibra os jogos na base na pressão e do contragolpe. Domina o jogo aéreo e se movimenta com uma máxima. “Deliciamos-nos quando não somos vazados”, diz o treinador. Com pressão máxima se aferrou a essa crença porque em seis dos últimos oito jogos não sofreu gol. Nas nove primeiras rodadas, a defesa havia sido vazada em todas as partidas. Antes da décima prometeu convidar os jogadores para comer uma pizza se fechassem o gol. Eles conseguiram, mas tiveram de preparar a massa para provar a pizza. “Eles devem trabalhar para conseguir as coisas”, disse Ranieri.
6) O esforço
Quando o Leicester já era uma ameaça para os grandes, Manuel Pellegrini, treinador do Manchester City, procurou uma explicação. “Eles jogam uma partida por semana e sempre com os mesmos jogadores. Isso se nota, mas o mérito é muito grande”. Doze jogadores terminarão o campeonato depois de terem participado de pelo menos trinta jogos. Nos períodos sem jogos por conta das partidas das seleções, Ranieri chegou a dar sete dias de férias para a maioria de seus homens, que até março quase não participavam de jogos entre seleções.
7) Os rivais
O sucesso do Leicester é o fracasso dos grandes do futebol inglês, de Arsenal, Manchester City, Manchester United, Chelsea e Liverpool, de técnicos como Mourinho e Rodgers, que perderam seus empregos, de Pellegrini, que não continuará no cargo, ou de Wenger e Van Gaal, muito questionados por suas respectivas torcidas. Mas é preciso dar crédito ao Leicester, derrotado apenas três vezes até agora nesta temporada, o mesmo que o Chelsea na temporada passada, menos até agora do que qualquer outro campeão nos últimos onze anos.
8) A campanha
A classificação mais baixa da equipe foi o oitavo lugar após a sétima rodada, mas apenas quatro pontos atrás do líder. No final de novembro chegou à primeira posição. “Nosso objetivo é chegar aos 40 pontos”, esclareceu Ranieri. Atingiu esse número de pontos exatamente na metade do campeonato e desde a 23ª rodada ninguém o tirou da liderança. Desde então só perdeu um jogo, nos acréscimos, na casa do Arsenal e com dez homens em campo.
9) As pessoas
A epopeia do Leicester tem alcance universal. É o time dos neutros. “Nós merecemos um final feliz como o dos filmes”, disse Ranieri na semana passada. Já surgiu interesse de uma produtora em levar às telas a história do atacante Jamie Vardy, que com 23 anos jogava na sexta divisão do futebol inglês, usou uma tornozeleira eletrônica durante algum tempo depois de se envolver numa briga e chegou a dividir o tempo entre o futebol e um emprego numa fábrica de material ortopédico. Ranieri não ficou chateado quando lhe disseram que Robert de Niro poderia fazer seu papel no filme. “Eu morro para que eles ganhem o campeonato”, confessou há algumas semanas o príncipe William, torcedor do rebaixado Aston Villa. Todo mundo quer ver o Leicester: a equipe já fechou sua participação em amistosos de pré-temporada contra Celtic, Barcelona e PSG, este último na Califórnia.
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