Não sei bem quando é que foi porque a história vai turvando nosso olhar assim, de jeito que a gente não sabe dizer bem como é que sucedeu depois. Mas não tem muito erro dizer que o meu pai, nos idos de 40 ou 50, aqui na terra de Curitiba, se fez amigo dum piá da rua dele. E a amizade, a gente entende bem como, foi se crescendo, e se achegando até o dia que os dois, meninos de calça curta ainda, combinaram que eram melhores amigos, um do outro, outro do um.
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E foi que selaram a decisão com um cumprimento de mão forte e um apelido em comum: se chamariam de Biu dali em diante. Sérgio era só pra estranho, tal qual Odilon era pra quem vinha de fora. Dentro daquela bolha de felicidade que os dois meninos viviam só tinha espaço pra Biu.
Um Biu, o mais velho, tinha na família um amor danado pelo Coritiba. O outro, quis a ironia, escolheu seguir o Atlético-PR, que foi se adonando daquele coraçãozinho mais e mais. E assim, um de cada lado, os dois meninos foram crescendo ao sabor dos Atletibas.
Houve domingos de alegria lancinante de um lado e da mais ferrenha tristeza do outro. E houve também o contrário. E houve sempre, o tempo todo, um respeito afetuoso entre os dois, que se limitavam a entender a dor do outro. Um time ganhava, os dois ficavam tristes – um pelo time, o outro pelo amigo.
HISTÓRIA EM QUADRINHOS: Um Atletiba de Verdade
E houve, desses todos, um domingo mais triste que qualquer derrota, que qualquer rebaixamento até. Um menino puxou o outro e disse, assim, meio que chorando, meio que tentando aguentar o tranco:
– Biu, minha família vai mudar pra Londrina. Parece que é coisa do trabalho do meu pai, minha mãe que disse.
E houve um derramamento de lágrima doído, desses que aperta o peito da gente como se fosse um espremedor de laranja e faz o corpo da gente tontear e a vista escurecer.
Foi o golpe mais covarde que a vida deu, um dos Bius conta, o mais velho.
Eu só sei que depois veio a distância, veio escola nova, vieram as namoradas e veio o afastamento.
E não veio mais Atletiba. Nem veio mais Joaquim Américo, nem veio mais Couto Pereira, porque o futebol morreu um pouquinho com a distância daqueles dois piás, sabe como é.
Foi desse jeito, com a proximidade tolhida ainda no nascedouro, arrancada da terra com raiz e raiva pelo quinhão da vida, que os dois foram mantendo a amizade pelo fio do telefone e pelos garranchos que chegavam do correio.
Tempo passa e a tinta da caneta foi secando e o som do telefone foi tocando cada dia mais longe. A amizade passou a acontecer só na lembrança, que era boa, mas judiava.
Aí, a idade foi chegando e a velhice foi consumindo os dois com ligeireza, cheia de pressa. Até que um dia, a coisa apertou por aqui, em Curitiba. E o dinheiro do meu pai, que era pouco, acabou, e ele preferiu viver a velhice na Flórida, porque se é pra ser pobre que seja na Flórida, onde todo mundo faz bico pra falar e o sol é pleno.
E assim, um Biu se despediu do outro, dessa vez pra valer, pra nunca mais se ver. A vida se encarregaria de pôr cabo em um ou outro antes da próxima visita. E o choro veio de novo, pelo telefone. E foi brabo o dia e foi doído o último tchau.
Desse jeito, nessa amargura danada, um foi reaprendendo a viver de novo sem o outro, tempos difíceis, sem ficha pro telefone nem tinta pra caneta.
Um Biu lá, outro cá, e o papo secou até que virou só lembrança boa e a fumaça densa da saudade.
Mas o tempo, a gente sabe, cura todas as feridas. E uma década e meia depois, os dois já tinham descoberto como é que fazia pra viver assim, meio manco, um sem muleta, outra sem bengala.
Foi quando a campainha tocou, lá na Flórida.
E o meu velho andou até a porta. Um passo difícil, pulmão cheio de água, coração cheio de vazio. Mão na maçaneta, pensamento longe.
Era domingo e ele vestia roupa de casa, um roupão vadio, desses que ninguém quer que alguém veja.
E o velho abriu a porta e teve aquele segundinho de dúvida, em que o olhar mira uma cara conhecida mas a memória trai a gente, parece que conhece aquele rosto redondo, mas tá tudo mudado. O coração até sente afeto, mas a lembrança não se entrega. E o olho, de repente, faz mira de novo e percebe que é isso mesmo, que é o Biu, que a velhice foi boa com ele e que o olhar ainda é o mesmo e que o aperto de mão também é o mesmo, firme, amigo, visceral. O abraço vem, violento. E o Biu que viajou de longe, pé vermelho, aperta o velho com afago e eles se entendem como se tivessem largado a última conversa pelo meio ainda ontem, na pracinha das Mercês.
A euforia não cabe na sala, que só tem uma tevezinha velha, um sofá pequeno no tamanho mas gigante na acomodação, e um vazinho bucólico com uma plantinha, como quem quer ter a vida pra dividir com alguém.
E eles sentam, e choram. E choram por minutos que parecem semanas. E sem um falar nada pro outro, sem uma sílaba sequer, eles olham no relógio. E o Biu de casa procura entre os gomos do sofazinho o controle remoto e aperta, mirando a tevê, que acende verde em meio ao furor popular, desacreditando talvez de todo o resto mas confirmando aquilo pelo que eles passaram a vida toda esperando.
É dia de Atletiba.
* Velho Cronista é o alter ego de um escritor anônimo, criado no tempo em que o futebol era jogado de chuteiras pretas. Leia mais em http://velhocronista.com e acompanhe as fábulas pelo http://twitter.com/velhocronista
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