Qualquer bate-papo com o jornalista Edson Militão, 73 anos, é uma pequena viagem pela história do esporte.
Pelé, Muhammad Ali, Gustavo Kuerten, Magic Johnson, Becknbauer, Ronaldo e Neymar são só alguns dos personagens com quem o colunista da Gazeta do Povo cruzou nos 75 eventos esportivos internacionais em que esteve, 65 pelo jornal, onde publica coluna todo sábado.
Só Copas do Mundo são 11. Jogos Olímpicos, seis - todos desde Barcelona-1992. Uma jornada que começou há 50 anos na Copa da Inglaterra e que mês que vem, na Olimpíada Rio-2016, terá mais um capítulo. (Galeria de fotos)
Capítulo 1: sem ingresso na Copa da Inglaterra
Capítulo 2: a final do Tri no México
Capítulo 3: o casamento e as Copas
Capítulo 4: Muhammad Ali em Curitiba
Capítulo 6: Che Guevava e Farc
Em julho de 1966, aos 24 anos, Militão e o amigo de infância Celso Toniolo, falecido em 1998, fizeram a primeira das viagens internacionais que ainda os levaria a ver um show dos Beatles em São Francisco naquele mesmo ano e a um dos primeiros desembarques de refugiados cubanos em Miami em 1969. Os dois rasparam as economias que tinham e embarcaram para Londres dia 4 de julho para assistir à tentativa frustrada da seleção de conquistar o tri.
“Eu tinha um bom emprego na Rádio Independência, viajava para cobrir jogos do Santos do Pelé, das equipes do Rio. Por isso que quando pedi demissão todo mundo ficou surpreso. Ir para o Rio naquela época já era uma proeza, mas ir para a Inglaterra, ver uma Copa, era coisa do outro mundo”, recorda.
Coragem para largar tudo e realizar não só o sonho de ver um Mundial in loco, mas de encarar todas as outras aventuras veio de uma entrevista de quatro anos antes. Assim que o Brasil conquistou a Copa do Chile, em 1962, aos 20 anos, o jovem repórter Edson Militão decidiu bater à porta do governador Ney Braga e tentar uma mensagem de felicitação aos bicampeões mundiais. “Queria parabenizar a seleção brasileira pela Rádio Marumby. Será que a Marumba chega lá?”, imita Militão a voz anasalada de Braga, que o atendeu de roupão na sala de estar de sua casa. “Ali eu quebrei o saque. Percebi que poderia chegar em qualquer pessoa para fazer uma entrevista”.
Na bagagem para Londres, poucas roupas e nenhum ingresso ou credencial. Só as respectivas carteiras de jornalistas e a lata de goiabada que Militão teve de levar a contragosto: a mãe viúva, dona Carmen, obrigou o caçula dos três filhos a incluir o doce na bolsa. “Eu pensei ‘para que levar essa goiabada? Não estou indo para Guaratuba passar o final de semana, estou indo para a Inglaterra ver a Copa’”, afirma o jornalista, mal sabendo que o doce o salvaria em uma tarde de muita fome e pouca grana no Hyde Park.
Já a carteira de jornalista abriu as portas dos estádios naquele Mundial – algo impensável para qualquer profissional de imprensa que não tenha credencial nos eventos de hoje.
Para se virar na capital inglesa, Militão ligou ainda do aeroporto para o também jornalista curitibano Roberto Muggiati, que atuou em alguns dos principais veículos de comunicação do país, como a revista Manchete, e que na época trabalhava na Rádio BBC de Londres. “Vocês estão loucos?”, foi a reação de Muggiati ao saber que a dupla sequer tinha onde ficar, antes de indicar uma pensão barata na região central de Londres.
Instalados, Militão e Toniolo foram com as carteiras de jornalistas ao suntuoso Royal Garden Hotel, onde o delegado da antiga CBD (hoje CBF), Luiz Murgel, estava hospedado. “Primeiro, ele ficou espantado de a gente ter viajado sem ingresso e sem credencial. Depois, deu um jeito de conseguir os ingressos”, recorda.
Em 11 de julho, a dupla teve acesso ao mítico Estádio de Wembley no empate em 0 a 0 entre Inglaterra e Uruguai no primeiro jogo da Copa de 66. “Eu era fissurado por Wembley desde guri, quando acompanhei a primeira derrota dos ingleses em casa, diante da Hungria”, afirma Militão. O jornalista se refere à partida de 1953, conhecida como o Jogo do Século, em que a derrota de 6 a 3 traumatizou não só a seleção e a torcida inglesa, mas apresentou ao mundo a geração de Puskas e Kocsis, que no ano seguinte revolucionaria o futebol na Copa da Suíça.
Além da partida inaugural em Wembley, Militão e Toniolo ainda viram dois jogos do Brasil em Liverpool: derrotas de 3 a 1 para Hungria e Portugal. Diante dos lusitanos, Militão viu Pelé jogar no sacríficio e sair de campo escorado pelo massagista Mário Américo e desconsolado pela desclassificação.
Se não deu para ver uma vitória brasileira, os passeios por Londres e os bate-e-volta para Liverpool serviram para ir aos pubs apreciar as fortes cervejas que não existiam no Brasil, além do contato com a contracultura dos anos 60.
“As moças aqui andam de pernas de fora e os homens usam cabelo de mulher”, escreveu Militão em um cartão postal a um amigo após ver os então estranhos hábitos da juventude inglesa em Piccadilly Circus, tradicional ponto de encontro da capital britânica. “A gente não tinha a menor noção do que era sair de uma cidade totalmente provinciana como a Curitiba dos anos 60 e ir para Londres e ver mulheres de minissaia e homens de cabelo comprido”, compara.
O contato com a efervescência cultural da época só não foi maior porque Militão e Toniolo não puderam ver os Beatles, que no mês seguinte ao da Copa, em agosto, iniciaram o contato com o universo psicodélico no lançamento do disco Revolver , experiência que culminou um ano depois no álbum Sargent Pepper’s Lonely Heart Club Band.
Os dois chegaram a ir durante o Mundial ao Cavern Club, casa noturna de Liverpool em que os Beatles se apresentavam, mas a banda estava em turnê pelos EUA. O jeito foi meses depois ir aos Estados Unidos para saber de fato por que John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr faziam tanto sucesso.
Em São Francisco, na Califórnia, capital do movimento hippie , Militão assistiu aos Fab Four ao vivo. “Aquilo era uma loucura de tanta mulher gritando. Mas admito que a gente foi de má vontade, porque a gente gostava mesmo era de MPB. Até vaiamos os Beatles no show, só de sacanagem”, recorda Militão.
Final de 70
Para a Copa de 1970, no México, o plano era diferente. Militão queria ir como jornalista de fato para cobrir a campanha do Brasil no tri. Tinha tudo certo com a Rádio Colombo. Mas conforme o Mundial foi se aproximando, percebeu que na verdade a rádio não tinha condições de enviá-lo.
Sem credencial, assistiu até a semifinal pela TV. Na quinta-feira, um dia depois da vitória por 3 a 1 sobre o Uruguai que classificou o Brasil à final com a Itália, comprou em dez vezes a passagem para o México com embarque já na sexta-feira. “Mais uma vez eu ia para uma Copa sem ingresso e sem credencial”, lembra.
Chegou ainda na sexta-feira e depois de um contato rápido com jornalistas na Cidade do México, foi direto para o lugar em que estavam sendo vendidos os ingressos da decisão. “Tinha uma fila enorme, mas decidi ficar”, diz. A espera valeu. Após quase duas horas, saiu não só com o ingresso da final de domingo, como também com o da decisão de terceiro lugar entre Alemanha e Uruguai no sábado. “Comigo nunca aconteceu isso de ‘não vai dar’. Sempre faço as coisas pensando ‘vai dar’”, ressalta.
Tanto quanto o espetáculo em campo de Pelé, Gerson, Rivellino, Tostão e Jairzinho nos 4 a 1 sobre os italianos, o que chamou a atenção do jornalista foi a alegria da torcida no Estádio Azteca. “Parecia que a seleção jogava no Maracanã, de tanta festa que os mexicanos faziam para o Brasil. Eles consideravam aquela vitória como se fosse deles”, afirma.
Copas
Em 1973, Militão se casou com a psicóloga Rose, com quem teve dois filhos, Danton e Rommy. “A Rose mudou minha vida em termos de ajuste. Com ela eu mantive esse espírito aventureiro, mas com disciplina”, afirma.
Também em 1973, o jornalista ingressou no curso de Educação Física na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em que quase jubilou pela correria de trabalho em rádios e canais de TV, só concluindo em 1979.
Foi colega de faculdade de estudantes que se tornariam profissionais de ponta do futebol brasileiro: Carlinhos Neves, referência na preparação física brasileira que trabalhou no Paraná, Palmeiras, São Paulo e Atlético-MG, além da própria seleção, e do zagueiro Levir Culpi, que depois se tornaria um dos treinadores mais vitoriosos do país.
Por pouco Militão ainda não foi companheiro de turma do atacante Dirceu Guimarães, revelado pelo Coritiba que fez sucesso no Vasco e Fluminense, além do futebol espanhol e italiano, e que jogou as Copas de 74, 78 e 82. “Como são as coisas: o Dirceuzinho não passou no exame para ingressar no curso, mas no ano anterior ele tinha sido o melhor preparo físico da seleção na Olimpíada de Munique”, relembra Militão.
Depois da Copa de 70, Militão levou 12 anos para voltar à uma disputa internacional. Agora como jornalista de fato. E a partir da Copa de 82, na Espanha, que cobriu para o jornal O Paraná, de Cascavel, esteve em todos os Mundiais, inclusive na conquista do tetra, em 94, nos Estados Unidos, e do penta, em 2002, no Japão e Coreia do Sul, ambos pela Gazeta.
“A Copa da Espanha foi ao mesmo tempo a mais alegre e a mais dolorida em que estive. O clima de alegria da torcida era incrível, com a banda da Marinha animando as arquibancadas, a sensação de esperança daquela seleção com Cerezo, Falcão, Junior, Zico e Sócrates. Por isso que também doeu tanto aquele time cair”, avalia.
A frustração foi tamanha, que o jornalista garante que nenhuma outra desclassificação do Brasil o deixou tão triste como o da derrota da equipe de Telê Santana para a Itália no Estádio Sarriá, em Barcelona. “Aquela não foi uma tristeza do Brasil, foi uma tristeza do futebol. Não foi como o 7 a 1, que, apesar do resultado, não marcou as pessoas porque era um time medíocre. A derrota em Sarriá levou dias para a ficha cair. Ninguém queria acreditar”, garante.
Muhammad Ali
Das poucas frustrações que Militão guarda da profissão, o fato de não ter tido a oportunidade de ver em ação um de seus maiores ídolos no esporte, o boxeador Muhammad Ali, morto em junho, aos 74 anos, é uma delas.
Mas quis o destino que em uma caminhada despretensiosa pelo calçadão da XV de Novembro em direção ao trabalho em 1987 o jornalista fosse um dos poucos transeuntes a reconhecer naquele homem simpático que brincava com as crianças o maior campeão mundial dos pesos pesados.“Achei que fosse só um sujeito parecido com o Ali. Depois, olhando melhor, disse para mim mesmo: ‘não é possível, é ele”, lembra.
Aposentado dos ringues há seis anos, Ali havia investido na fábrica de carros Puma e passou três semanas em Curitiba negociando a produção de 1.440 unidades no Brasil que seriam exportadas para a Arábia Saudita.
Nos primeiros dias, o campeão circulou pela cidade sem ser reconhecido. Depois, teve de conceder entrevista coletiva, quando Militão perguntou a Ali o que mais havia gostado em Curitiba. “Ele disse que tinha adorado se sentir um homem normal novamente, de poder caminhar tranquilo nas ruas, ir às lojas, engraxar os sapatos, falar com as pessoas sem ser reconhecido”.
Nove anos depois, Militão estaria novamente perto de Ali, com o pugilista em um estado completamente diferente do homem sorridente e independente que caminhava pela XV. Diagnosticado com mal de Parkinson, a imagem do pugilista todo trêmulo, com dificuldade para andar, acendendo a pira olímpica na cerimônia de abertura é a mais forte que o jornalista guarda da Olimpíada de Atlanta-1996.
Olimpíadas
Em Barcelona-1992, Militão foi para a primeira e a melhor de suas seis Olimpíadas. Não pelo nível de organização, que ele considera melhor nos Jogos de Pequim-2008 e Londres-2012, mas sim pelo clima da cidade. “Era sensacional encontrar os atletas nas ruas, interagindo com o público. Lembro dos jogadores do Dream Team sempre solícitos. Mesmo hospedados em hotel, eles iam à Vila Olímpica para ter contato com outros atletas”, recorda.
Em um desses passeios da seleção de basquete dos EUA, Militão foi surpreendido por Larry Bird, Magic Johnson, Scottie Pippen e Charles Barkley almoçando no refeitório da Vila Olímpica. “O Barkley era o mais engraçado deles. Ficava brincando com quem queria tirar foto”.
Na volta ao Brasil, Militão veio no mesmo avião da equipe masculina de vôlei, medalha de ouro com Tande, Marcelo Negrão, Giovani, Paulão, Carlão e Maurício, comandados pelo técnico José Roberto Guimarães, que depois conquistaria outros dois ouros com a seleção feminina. “Na chegada ao aeroporto, tive que tirar uma foto com o levantador Maurício e a medalha”, enfatiza.
Tanto quanto o clima de festa na cidade e o contato com os atletas, as novas tecnologias que a imprensa passou a utilizar em Barcelona-1992 também marcaram o jornalista. Principalmente o computador e o celular.
“O celular era um tijolo, mas eu achava incrível mandar os boletins da rádio com o Oscar, a Hortência, a Paula direto da Vila Olímpica, sem precisar ir para a sala de imprensa”. Do computador, Militão lembra da facilidade na busca de dados. “Hoje é normal, mas naquela época você sentar na frente de uma máquina e ter todos os números e estatísticas era surpreendente”.
Che Guevara e Farc
Em duas Copas América em que esteve, Militão teve a oportunidade de ir além do universo do futebol na cobertura.
Em 1997, na Bolívia, o jornalista soube que uma equipe de médicos legistas cubanos estava no país para tentar encontrar a ossada do líder guerrilheiro Che Guevara.
Militão abandonou os treinos da seleção em Santa Cruz de la Sierra e viajou de táxi 245 km até o povoado de Vallegrande, onde em 1995 um general boliviano havia revelado que Che e outros sete guerrilheiros haviam sido enterrados em uma vala comum. Poucos dias depois de o jornalista acompanhar o trabalho dos legistas, a ossada de Che foi encontrada e enviada para Havana, onde está em um mausoléu na cidade de Santa Clara.
Companheiro de Fidel Castro na Revolução Cubana de 1959, o médico argentino havia deixado Cuba em 1965 para fomentar guerrilhas de esquerda pela América Latina. No dia 9 de outubro de 1967, Che foi preso e morto pelo exército boliviano com o apoio da CIA (a agência de inteligência dos EUA).
Além da imprensa internacional, havia apenas dois jornais brasileiros acompanhando o trabalho da equipe cubana: a Gazeta do Povo e o gaúcho Zero Hora. Em Vallegrande, Militão conversou com a enfermeira Suzana Osiñaga e o fotógrafo René Cadima, personagens da emboscada que vitimou Che Guevara.
Suzana ajudou a limpar o cadáver de Che logo após a morte do guerrilheiro. E, ao invés de nove tiros, conforme está no relatório oficial da necropsia, a enfermeira lembra de apenas três ferimentos de bala no corpo do argentino. “Ela me contou que o corpo do Che Guevara tinha uma expressão serena e parecia com Cristo. Tanto que depois começaram a ter procissões para ele”.
Já Cadima trabalhava como sapateiro quando Militão foi à Vallegrande. Fotógrafo amador, foi chamado às pressas em 1967 para registrar o feito do exército boliviano de capturar Che Guevara. “Ele me contou que deu as fotos para um jornalista americano que nunca o pagou”, afirma Militão.
Em 2001, na Copa América da Colômbia, Militão foi atrás de contatos no El Tiempo, principal jornal de Bogotá, para tentar chegar a algum contato das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), após a desclassificação da seleção comandada por Felipão na vexatória derrota por 2 a 0 diante de Honduras. Com o repórter especializado da zona de conflito do periódico colombiano, Militão pegou o contato de uma guerrilheira que operava como espécie de relações públicas da guerrilha marxista e os orientou o que fazer até chegar a Raul Reyes, o número dois no comando das Farc.
Militão e o repórter Rodrigo Sell receberam orientação para ir até uma área neutra do conflito, de onde partiriam para se encontrar com Reyes, que em 2008 morreu em operação militar no Equador, próximo da fronteira com a Colômbia. De Cali, onde acompanhava a seleção, o jornalista foi até a cidadezinha de San Vicente de Caguán, onde dormiu e no outro dia foi apanhado por um motorista enviado pelos guerrilheiros. De lá, partiu para o povoado de Pozos, no meio da selva.
“Ficamos lá por uma hora, num calor de mais de 30 graus, cercados por homens armados até os dentes”, revela. O local da entrevista foi o mesmo onde a senadora Ingrid Betancourt , que havia ido de encontro aos guerrilheiros para tentar negociar a paz, foi sequestrada no ano seguinte. Ingrid permaneceu seis anos refém das Farc.
No trajeto para a selva, passou por quatro barreiras do grupo guerrilheiro. Na volta, as barreiras eram do exército colombiano. “Foi mais difícil a volta do que a ida. Os soldados ficaram desconfiados de jornalistas brasileiros que estavam na cobertura da Copa América estarem na área de conflito. E nós não podíamos dizer que estávamos lá para entrevistar o chefe das Farc”.
Na base da conversa, Militão acabou se desvencilhando dos militares colombianos. Manha que pegou no dia a dia do mundo da bola. “Jornalista que faz futebol cobre qualquer assunto porque tem jogo de cintura. Mas quem trabalha em outras áreas geralmente tem dificuldade para cobrir futebol”, explica Militão o segredo de tantas aventuras.