A lenda do Mané
Contar histórias sobre Garrincha é ter a certeza de encontrar algumas lendas pelo caminho. A de Cornélio Procópio é assim: um fã do "demônio das pernas tortas" ganha na loteria, usa parte da fortuna para promover um amistoso na cidade com a presença do ídolo e, a partir dali, começa a desperdiçar sua fortuna até empobrecer.
A história tão espetacular quanto fictícia é uma das poucas lembranças das duas passagens de Garrincha por Cornélio Procópio, nos anos 70. Um Mané já decadente e doente, que usava amistosos pelo país para viver. Uma cidade que usava a presença de ídolos e times de apelo nacional para alimentar a paixão da população pelo futebol, abalada desde o fechamento do Comercial, na década anterior.
O primeiro foi um amistoso de showbol. Não a versão atual, propriedade de Djalminha, mas algo muito próximo disso. A quadra de madeira do Quinzão, o ginásio municipal, foi cercada por tapumes, delimitando a área em que rolava a bola de futebol de campo.
Garrincha era a grande estrela ao lado de Jairzinho, os dois maiores camisas 7 da história do futebol brasileiro. O Furacão da Copa de 70 jogou. Mané chegou pela manhã, tirou uma série de fotos, assistiu ao jogo e foi embora após poucos minutos em campo no evento organizado pela prefeitura. Estava machucado. "Todo mundo queria beijar e tirar foto com ele", conta Darci Moscato, ex-jogador da cidade que participou do amistoso. "Ele bateu foto com todo mundo, mas jogou só 10, 15 minutos. Estava com o joelho arrebentado", completa o radialista Waurides Brevilheri, narrador e dono da Rádio Cornélio.
A segunda passagem, já no fim da década, foi com o Milionários, time amador de São Paulo que reunia ex-jogadores Afonsinho e Paulo César Caju foram dois personagens que chegaram a defendê-lo.
Era um amistoso contra o 9 de Julho. Novamente Garrincha passou apenas um dia na cidade. Enquanto descansava no hotel, filas de torcedores se formavam na rua para ter a chance de tirar uma foto ou conseguir um autógrafo. Dessa vez Garrincha foi para o jogo. Não fez gol, mas deu à cidade a chance de ver um dos maiores ídolos do futebol brasileiro em ação. E engrossar sua coleção de lendas.
Havia mais de duas décadas que Pedro Chueiri não entrava no Estádio Pedro Vilela. Por isso ele para imediatamente após subir o caminho de grama que permite ter a visão completa do terreno. Olha com atenção para cada detalhe, com um brilho que parece projetar uma realidade que não existe mais. Torcedores de calça comprida e camisa disputando um lugar no concorrido alambrado; crianças correndo pelo espaço entre o campo e as arquibancadas cobertas, ocupadas pelos endinheirados da cidade; homens animados se divertindo no bar elevado que dá visão às quatro linhas; a iluminação inaugurada pelo Flamengo de Dida; o esquadrão de camisa tricolor igual à do São Paulo, em mais uma renhida batalha contra o Coritiba.
"Era um tempo bom. Dá saudade", suspira o senhor de 87 anos, testemunha e personagem fundamental de toda a história no profissionalismo do primeiro grande time formado no Norte Pioneiro, a Associação Esportiva de Jacarezinho.
Pedro Chueiri chegou à cidade em 1928 com a família, vinda do interior de Minas Gerais. Da casa de esquina toda feita em madeira, que ele até hoje divide com uma irmã, passou quase metade da vida descendo cinco quarteirões em direção ao estádio. Nos anos 40, era jogador do time amador que assombrava os gramados da região. Na década seguinte, diretor de futebol, passou a ser o responsável por montar os times que encaravam olhos nos olhos os grandes da capital. "Ia no interior de São Paulo buscar jogadores que se destacavam. Todos eles conheciam a Esportiva", conta, orgulhoso.
A exemplo dos milhões de pés de café que garantiram sua existência, a Esportiva teve vida útil de duas décadas. As melhores safras foram logo nos primeiros anos, entre 1950 e 1954. Neste período, foi vice-campeã duas vezes, terceira colocada outras duas e perdeu apenas 4 das 44 partidas oficiais como mandante. Números que ganham ainda mais relevo diante da complicada logística da época. Com quase todos os adversários sediados em Curitiba, jogar fora de casa exigia enfrentar viagem de quase um dia inteiro, atravessando uma estrada parcialmente de terra. Dificuldade amenizada pelo suporte financeiro que os jogadores recebiam.
"A economia de Jacarezinho era muito forte graças ao café. Até hoje você anda pela cidade e encontra grandes armazéns abandonados que eram usados para estocagem. Os fazendeiros ajudavam a manter o time e a arrumar emprego para os jogadores. Muitos trabalhavam na prefeitura ou eram policiais", conta o advogado Celso Rossi, de 77 anos, dono de amplo acervo e de dois sites que preservam a memória da cidade.
Rossi garante ter assistido a todos os jogos da Esportiva no Pedro Vilela que foi possível. No período em que morou em Curitiba, para cursar Direito na UFPR, recorria ao telefone e aos conterrâneos de Jacarezinho que estudavam na capital para saber os resultados. A união no exílio era apenas uma extensão da comunhão única provocada na cidade pelo time de futebol.
"A Esportiva foi a única coisa que existiu em Jacarezinho que conseguiu unir a cidade inteira, manter todo mundo do mesmo lado", diz Rossi, que lembra com clareza da mobilização nos dias de jogos. "Começava logo cedo, com todo mundo se preparando para ir ao estádio e depois indo acompanhar o time", complementa.
Devoção que se reflete na lembrança de dois dos momentos mais trágicos, envolvendo dois ídolos do time. Em 1944, durante um amistoso com o Britânia, em Curitiba, o jogador Babãozinho sofreu uma cama de gato de um adversário, quebrou o pescoço ao cair no gramado e morreu. Como não havia uma emissora de rádio em Jacarezinho, o acidente foi comunicado pelo serviço de alto-falante do Cine Éden, o principal da cidade, responsável também por transmitir as partidas da Esportiva. "Curitiba parou para acompanhar o enterro e o caixão atravessou a Rua XV com o comércio de portas fechadas. Muita gente saiu de Jacarezinho para se despedir do Babãozinho", relembra Rossi.
A outra tragédia ocorreu em 1958, com o maior ídolo do clube, o goleiro Muca. Nascido na cidade e titular na melhor fase do time, ele parou logo após casar e deixar a Portuguesa de Desportos. Fixou-se em Jacarezinho para cuidar da fazenda do sogro. "Dois peões se desentenderam durante uma festa, ele foi apartar e levou uma facada na virilha. Sangrou até morrer", relata Chueiri.
Na virada para os anos 60, a Esportiva perdeu a hegemonia da região para o Comercial, de Cornélio Procópio, campeão de 1961. A unificação do Campeonato Paranaense, em 1965, resgatou as dificuldades de deslocamento. O clube suportou apenas uma edição atravessando o estado de Norte a Sul. Sem o dinheiro do café, já em declínio, o alívio das horas de estrada vinha do samba.
"A gente levava instrumento, batia na lataria, batucava o que estivesse à mão", conta Mourão, que chegou em 1961 do interior de São Paulo como meio-campista, "só não jogou de goleiro e zagueiro central" e, nos últimos 30 anos, é um dos responsáveis por organizar o carnaval de rua da cidade.
A Esportiva encerrou as atividades em 1970, ano em que Mourão organizou pela primeira vez o carnaval. Nas décadas de 1990 e 2000, a cidade ensaiou retornos malsucedidos aos gramados. "Não tem investimento e quem poderia investir não quer", critica o ex-jogador, hoje funcionário público, em alusão à maior empresa da cidade, a Companhia Agrícola Usina Jacarezinho.
A exemplo da maioria dos pés de café, o futebol em Jacarezinho esgotou sua produtividade depois de 20 anos. Deixou apenas a história e as lembranças que Pedro Chueiri projeta na sua memória enquanto observa o abandonado Estádio Pedro Vilela.
O maior carnaval de Cornélio
Cornélio Procópio nunca viu carnaval como o daquele fevereiro de 1962. "Eram os 11 em cima da caminhonete e uma fileira de carros, soltando foguete e buzinando. Viramos atrás da estátua do Cristo, demos a volta na cidade inteira", conta o ex-lateral-direito Dirceu Funari, hoje com 81 anos. Ele era o capitão dos 11. O maior time que a cidade já teve. O único time do Norte Pioneiro campeão estadual. O Comercial de 1961.
Dirceu Funari chegou a Cornélio Procópio após uma grande decepção. Paulista de Assis e palmeirense desde a infância, ele teve a oportunidade de defender o time do coração por três meses. Não vingou no Palestra Itália e aceitou a proposta do Comercial. Era a chance de ficar a apenas 115 quilômetros de casa e seguir jogando bola. Além do time, daria expediente na agência local do Banco Comercial do Paraná. Chegou em 1957. Jogou, sempre como capitão, até 1965, quando o clube encerrou as atividades. Fez a carreira no Comercial e a vida em Cornélio, onde tem uma loja de extintores e material de ferragem que administra junto com a filha. No mesmo terreno funciona o escritório de engenharia do filho, também dono de um bar temático de futebol, o Charles Miller.
"O salário do Comercial eu usava para as despesas do mês. O do banco eu guardava. Graças a isso consegui juntar dinheiro para comprar esse terreno", conta, orgulhoso, em um exemplo de autogestão de carreira de dar inveja a muitos boleiros de alto nível dos dias atuais.
Jogar no Comercial ajudava a reduzir gastos. Os fazendeiros e comerciantes que bancavam o time davam, constumeiramente, presentes, prêmios em dinheiro, café, milho e tudo mais que saísse da lavoura. "Quase não andava a pé na rua. Saía de casa e já aparecia um para oferecer carona", diverte-se Pedrinho, o outro lateral do time, de 79 anos.
Os privilégios na cidade contrastavam com as dificuldades típicas do futebol da época. Os arcaicos treinamentos físicos exigiam dos jogadores correr pelo gramado com um companheiro nas costas, subir e descer arquibancadas, fazer exercícios com pesadas bolas recheadas de areia. "Mas chegava no jogo, corríamos do início ao fim", ressalta Pedrinho.
Viajar também era um suplício proporcional à distância. Em setembro de 1962, o time encarou uma viagem de mais de 800 quilômetros, estradas de terra e uma travessia de balsa para chegar a Criciúma, onde enfrentaria o Metropol, pela Taça Brasil. Perdeu por 2 a 1 em Santa Catarina, empatou por 1 a 1 em casa e foi eliminado.
"Eles viajaram de jardineira, comendo sanduíche e tomando chá", conta Waurides Brevilheri, 73 anos, narrador e dono da Rádio Cornélio.
Brevilheri transmitiu os dois maiores títulos da história do clube, campeão da Zona Norte de 1958 e Estadual de 1961, após vencer o triangular, no início do ano seguinte, contra Esportiva de Jacarezinho e Operário. Também acompanhou o declínio do futebol na cidade, a partir da segunda metade dos anos 60. Movimento iniciado pelo desmanche gradativo do time e reforçado pelo enfraquecimento econômico.
"Cornélio Procópio era a capital mundial do café. A geada queimou o café nos anos 60 e em 1975, acabou tudo. Os produtores trocaram o café por soja e milho. Antes, com a população das fazendas, a cidade chegou a ter 70 mil habitantes, hoje são 46 mil. Não ficou ninguém na zona rural. O êxodo foi muito grande", explica Brevilheri.
Êxodo rural, financeiro e esportivo. O Comercial encerrou as atividades no profissionalismo em 1965, último ano antes da unificação do Estadual. A partir daí, a cidade entrou no ciclo comum a quase todo o Norte Pioneiro: investidas descontinuídas com resultados inexpressivos. Sem o dinheiro da lavoura, o financiamento dependia invariavelmente da simpatia do prefeito com o futebol, isso em um período pré-Lei de Responsabilidade.
A experiência mais duradoura ocorreu com o 9 de Julho, em dois tiros: o primeiro, entre 1975 e 1979; o segundo, de 1988 a 1991. Os momentos de maior glória foram o nono lugar de 78 e a vitória por 1 a 0 sobre o Coritiba, no dia 13 de outubro de 1991. "O estádio estava lotado. Foi a única derrota do Coritiba na cidade. Teve até incentivo do Atlético para vencer o jogo", conta Ailton Dias, o Mandioca, faz-tudo do 9 de Julho e técnico no jogo histórico.
O Comercial ainda teve dois retornos entre os anos 1990 e 2000. A despedida em torneios oficiais ocorreu em 2006, na Segunda Divisão.
Mandioca tenta uma volta do 9 de Julho para a Terceira Divisão. Funcionário da prefeitura, conta com a ajuda do poder público para transporte, alojamento e alimentação. Com o empresariado pretende buscar o investimento para contratar jogadores e manter a equipe. Uma equação difícil em uma cidade que se acostumou a ver futebol pela TV.
Dificilmente Cornélio Procópio voltará a ver outro carnaval com o de fevereiro de 1962.
Esportes | 5:12
Um time em que jogadores treinavam carregando os companheiros nas costas e terminou provocando um carnaval em Cornélio Procópio. Histórias do único campeão paranaense saído do Norte Pioneiro contadas por dois de seus protagonistas, Pedrinho e Dirceu Funari.
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