Mais um chute para fora, e lá vai o gandula buscar novamente. Não há dúvidas de que as partidas de futebol teriam outro ritmo não fosse essa importante figura do mundo da bola.
Oficializados no futebol brasileiro desde a década de 1940, a origem do nome dado a esses profissionais é ponto de controvérsia. Uma história romântica é a mais contada para explicar o surgimento do termo.
Mas historiadores da bola discordam e comprovam que o que se conta por aí nada mais é do que um dos inúmeros mitos que surgem no futebol e acabam se transformando em realidade.
Reza a lenda que Bernardo Gandulla (1916-1999), ponta argentino que atuou pelo Vasco na temporada de 1939 e que completaria 100 anos nesta terça (1º), era um atleta de baixa qualidade que ficava quase sempre na reserva. Para demonstrar empenho, o jogador se dispunha a buscar as bolas que saíam de campo e as repunha com rapidez.
Conhecido por sua gana em buscar as pelotas, seu sobrenome teria dado origem ao termo utilizado até os dias de hoje no Brasil. Com o passar dos anos, a lenda acabou se misturando à realidade, chegando a constar de um dos mais respeitados dicionários do país.
“Bernardo Gandulla, jogador de futebol do Vasco da Gama no final da década de 1930, que tinha o hábito de buscar as bolas que saíam de campo”, escreve o Houaiss na explicação da etimologia da palavra.
No entanto, historiadores contestam a versão.
“Quando o Gandulla chegou ao Rio, ele veio com muita pompa. Ele era bom de bola. Isso foi um romance que acabou se tornando uma verdade”, afirma Walmer Peres, historiador do Centro de Memória do Vasco.
Antes da chegada do jogador, o termo já existia no Rio de Janeiro, com conotações diversas, inclusive para referir-se aos garotos que apanhavam as bolas que saíam de campo. Trecho, de 1933, da página de esportes do jornal “Diário da Noite”, comprova a existência do uso da palavra (veja ao lado).
“O termo gandula poderia se referir a garoto, que era gandulo, vadio, tratante. Gandulo e gandula já era utilizado para outras coisas, e o termo gandula já existia dentro do cenário esportivo carioca”, explica Peres.
Max Gehringer, membro do Grupo Literatura e Memória do Futebol (Memofut), vai na mesma linha. “É totalmente mito”, afirma.
Argentinos
Em uma transação histórica feita pelo Vasco da Gama, chegaram ao Brasil, em 3 de março de 1939, cinco jogadores argentinos que chamaram a atenção da diretoria do clube durante passagem da seleção do país vizinho na Copa Roca daquele ano. Entre eles, o tal Gandulla, um ponta que jogava no Ferro Carril Oeste, de Buenos Aires.
A transação foi controversa e chegou até a Fifa. Os argentinos argumentavam que, por não ter dado o passe aos jogadores, eles ainda pertenciam ao Ferro Carril. Gandulla demorou mais de um mês para poder atuar, após sentença de um juiz trabalhista.
Segundo Gehringer, “talvez seja um dos mais antigos casos em que um juiz que não tem nada a ver com um tribunal esportivo deu uma sentença permitindo que um jogador atuasse, para exercer uma profissão”.
Pelo Vasco, o atleta jogou 29 partidas, segundo Peres, quase todas como titular. Foram dez gols em dez vitórias, oito empates e 11 derrotas.
“[Gandulla] chamou a atenção da imprensa, da crônica esportiva, então sua passagem ficou marcado pelo cenário esportivo carioca. E como era a capital federal, o que se fazia aqui repercutia, e o nome foi se popularizando entre quem acompanhava os eventos esportivos”, diz Peres.
Coincidentemente, no ano seguinte, a Liga Carioca de Futebol oficializou os gandulas, dando margem à criação do romance.
“Houve uma congruência de fato. E como o nome Gandulla, através do Vasco, se espalhou Brasil afora, foi perfeito para criar esse romance”, explica o historiador vascaíno.
Segundo Gehringer, Gandulla realmente gostava de pegar a bola com as mãos, mas por outro motivo.
“Era também conhecido como um camarada que reclamava demais. Num dos jornais em que pesquisei, estava escrito que não era que ele pegava a bola para rapidamente repor o jogo. Ele pegava a bola e colocava em baixo do braço para reclamar com o juiz”, se diverte.
Lenda vira realidade
Segundo Gehringer, a lenda ganha força na década de 60. Em uma coluna do finado “Jornal do Brasil”, chamada “Pergunte ao João”, um leitor indagou sobre a origem do termo. Para solucionar o mistério, a coluna consultou Alfredo II, um ex-colega de Gandulla no Vasco, e o “Jornal dos Sports”, famosa publicação esportiva carioca, na época.
Alfredo negou, mas o chefe de redação da publicação confirmou.
“Acontecem duas coisas. Primeiro, o ‘Jornal dos Sports’ tinha uma tremenda força no Rio. E segundo, a versão de que o Gandulla era a origem do nome era muito melhor do que a história verdadeira”, explica Gehringer. “A partir do ‘Jornal dos Sports’, foi a história que prevaleceu e, aí, começou a ser repetida”.
O historiador do Vasco concorda que a história é lenda, mas conclui.
“A história não é verdade, mas até que ponto? Ok, o termo não existia por causa do jogador, mas só se tornou popular, fora do Rio de Janeiro, por causa dele”, finaliza.
A história por trás dos gandulas