Não havia margem para erros. O plano do voo que levava a delegação da Chapecoense e matou 71 pessoas, pilotado por Miguel Quiroga, que também era sócio da companhia aérea Lamia, diz que a autonomia do equipamento era exatamente igual ao tempo de voo entre Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, e Medellín, na Colômbia: 4h22m.
O documento confirma negligência do piloto e possível ação penal para os responsáveis pela tragédia. A Chapecoense não fala de desdobramentos jurídicos neste momento, mas as investigações do caso trazem essa expectativa.
Antes de decolar na cidade boliviana, o despachante operacional do voo, Alex Quispe, que assinou o documento, teve falhas questionadas por Celia Castedo Monasterio, funcionária da Administração de Aeroportos e Serviços Auxiliares da Navegação Aérea (Aasana).
A Rede Globo teve acesso ao documento em que Castedo Monasterio narra o diálogo que teve com Quispe. Por convenção internacional, aviões precisam informar um aeroporto alternativo e, além disso, ter 30 minutos adicionais de combustível, o que não foi feito. No documento, a funcionária da Aasana encerrou os questionamentos após a insistência do despachante sobre o tempo de voo.
“Sim, é isso que estou mostrando. Fazemos em menos tempo, não se preocupe. Deixe comigo”, afirmou Quispe.
Celia Castedo Monasterio afirmou que muitas vezes despachantes não levam a sério suas observações. Piloto e especialista em segurança de voo do Sindicato Nacional dos Aeronautas, Mateus Ghisleni disse que, com frequência, responsáveis pelas autorizações não têm conhecimento técnico:
“Esse departamento tem como função principal o gerenciamento de tráfego. E muitos responsáveis não tem conhecimento técnico da performance das aeronaves. Nesse caso, (a falha) ficou muito evidente”, disse Ghisleni.
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Nesta quinta-feira (1), Castedo Monasterio foi afastada do trabalho. Embora haja o carimbo da Aasana no documento, não há da Direção Geral de Aeronáutica Civil (DGAC), órgão máximo de aviação no país. Procurado pelo GLOBO, o órgão não respondeu às perguntas da reportagem.
“O procedimento é padrão internacional: o despachante da empresa leva o plano de voo, feito pelo piloto, até o órgão responsável, que verifica os dados e aprova ou não. Ela (funcionária) contestou a autonomia, pediu novos documentos meteorológicos e um novo plano. Ele retornou, mas sem ter mudado o plano de voo e foi aprovado. Isso é suspeito”, disse George Sucupira, presidente da Associação de Pilotos e Proprietários de Aeronaves, que falou sobre economias feitas pelo piloto. “Ele passou por Bogotá já com o alerta de reserva acionado e não pediu para fazer um pouso para reabastecer. Teria que pagar taxas de pouso, desembarque, embarque, decolagem, além do combustível.”
O ministro de Obras Públicas da Bolívia, Milton Claro, anunciou a suspensão de dois executivos da Aasana e da DGAC, que não tiveram seus nomes divulgados. O objetivo é impedir a contaminação das investigações.
“Não foi o primeiro voo internacional (realizado pela Lamia). Existem requisitos que a empresa deve cumprir para ser autorizada. É isso que investigamos. Se houve uma violação ou se foi ignorado o que está no regulamento é o que o resultado mostrará”, afirmou o ministro.
As autoridades bolivianas suspenderam a licença da Lamia, que foi obtida em julho do ano passado. Segundo Élnio Borges, do Instituto Daedalus, que trabalha com segurança de voos, a multa poderia ser aplicada mesmo caso não houvesse acidente. Ao declarar emergência para ganhar prioridade na aterrissagem, uma investigação é feita no aeroporto para verificar infrações. A falta de combustível é um agravante, o que levanta suspeita pela demora para declarar emergência.
“São múltiplas infrações. Teoricamente, a empresa seria multada e poderia até perder o direito de voar para o resto da vida (caso declarasse falta de combustível). É uma traição à segurança do voo”, afirmou Borges, que lamentou o comportamento do piloto. -
“Quando alguém tem comprometimento com a mentira, vai até o fim. Ele tentou manter a história. Se declarasse emergência, seja por qual razão fosse, ganharia prioridade de pouso e, lá embaixo (no aeroporto), uma investigação seria feita sobre o incidente. A empresa, o piloto e a autoridade aeronáutica que permitiu o voo pagariam por isso.”