Até o prefeito saiu da linha com a confusão em campo. “Jogaram o futebol no lixo”, bradou aos jornalistas Clebeu Cordeiro, chefe do executivo municipal de Salgueiro, no Pernambuco, pouco após o time da cidade (do qual é presidente de honra) ser derrotado de forma amarga na final do campeonato estadual, em junho do ano passado. Aos 24 do segundo tempo, com o marcador ainda zerado, o atacante Álvaro aproveitou o escanteio para escorar para as redes e colocar o time da casa à frente do Sport. Durou pouco a comemoração. O árbitro da partida, Péricles Bassols, se valeu de um recurso até então inédito por aqui para invalidar o lance: o árbitro de vídeo. Após assistir às imagens, Bassols não teve dúvida: a bola havia feito uma curva por fora do campo – embora os ângulos fornecidos não mostrem isso com clareza. Quase 14 minutos depois, o Sport marcou o gol único da partida e levou seu 41º Estadual. Ao pequeno Salgueiro, restaram as reclamações. Um ano antes da Copa do Mundo, o VAR estreava com o pé esquerdo em solo brasileiro.
Quatorze meses depois de sua polêmica primeira aparição, e após ser a estrela da Copa do Mundo da Rússia, o VAR – sigla do inglês para video assistant referee, ou árbitro assistente de vídeo – volta aos gramados brasileiros no começo de agosto, quando será utilizado nas fases finais da Copa do Brasil. Mas com um olhar ainda de desconfiança. Se, por um lado, ninguém discorda de usar as imagens para evitar lances injustos – tal qual o imoral gol de Maradona contra a Inglaterra na Copa de 1986, que pavimentaria o caminho da Argentina para o bicampeonato mundial –, por outro, a forma como ele será usado é ponto de discórdia. E pode tornar as boas intenções em um desastre.
A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), responsável pela implantação do sistema, pretende usá-lo nos mesmos moldes que a Fifa usou no Mundial deste ano. Três árbitros assistentes ficam em uma cabine no estádio e recebem imagens das partidas; em lances anotados errados (ou casos de violência) acionam o árbitro principal para que ele reveja as imagens e mantenha ou reverta a marcação. O problema, para os críticos, é que estes moldes não estão necessariamente corretos. “São duas coisas que devemos levar em consideração. Não tenho dúvida de que o árbitro de vídeo deu certo e é irreversível no futebol. O que acho que devemos discutir é o protocolo, o procedimento de uso”, pondera Salvio Spinola, ex-árbitro e comentarista de arbitragem da ESPN Brasil.
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É uma posição que ficou clara na insatisfação de alguns atletas que participaram da Copa. “Sinceramente, não entendo muito bem o uso do VAR. O árbitro marca uma falta que não existiu em Griezmann. Gol da França nessa jogada. E não acontece nada”, escreveu o goleiro espanhol Iker Casillas no Twitter, se referindo a um dos lances (em que não houve uso do VAR) na final do Mundial. “Você está certo, Iker Casillas. E, além disso, Pogba impedido ‘participa’ da jogada”, respondeu o atacante do Uruguai, Luis Suárez, também em tom de crítica.
“O mundo do futebol tem que ser ouvido”
“Em 2016, quando a Federação Internacional de Futebol definiu o protocolo, não abriu o debate para discussão. A reunião foi em Cardiff [País de Gales] e eu era o único sul-americano que estava lá. E nem participei dos debates. Cheguei e os parâmetros já eram conclusivos. A reclamação dos jogadores é pertinente porque eles não foram ouvidos. Para o protocolo, o mundo do futebol tem que ser ouvido. Não pode ser engessado”, diz Spinola. “O procedimento de uso ou não do VAR não foi muito claro. É inadmissível que em um só jogo seja usado três vezes. O protocolo é para erros claros, não para lances interpretativos. Mas o vídeo foi usado em muitos lances interpretativos, quando o árbitro principal estava tecnicamente bem posicionado. Vimos muitos lances de escanteio, tiro de meta, corrige ou não corrige”, diz.
Tanta discussão deixa Spinola pessimista em relação ao uso do vídeo por aqui. Para ele, no Brasil, os testes não foram suficientes. E ele não está só. Em 2017, quando a CBF discutia o uso do VAR no Campeonato Brasileiro de 2018, 12 dos 20 clubes da Série A rejeitaram a tecnologia. Muitos pela questão financeira, já que o VAR custaria cerca de R$ 20 milhões para os cofres dos clubes. Mas, para alguns, pela falta de confiança no sistema e de como seria implantado. “O Corinthians não votou contra por causa de valores. Votou porque não se tem padrões e definições de como será. Aqui, começaram a fazer testes e temos de aguardar quando tudo estiver definido. Bandeira levanta ou não, o impedimento e gol voltam o lance? Vai parar? Precisa ter um padrão para não virar dois jogos em um só. Eles mesmos falam que não tem um procedimento para todo mundo ainda”, disse na época o dirigente do clube paulista, Andrés Sanchez, ao portal Terra.
“A CBF não tem escola de árbitros. Ela nunca formou o ser humano. Quem forma são as federações. Hoje a CBF tem a maior estrutura de árbitros de vídeos do mundo. Ela tem departamentos de árbitro de vídeo, instrutores. Ela os colocou concentrados para capacitá-los em VAR. Mas, para mim, o árbitro de vídeo é um complemento, não o principal. Tem que repensar esse conceito. Vai ser uma muleta.”
No dia seguinte à derrota do Vasco para o Corinthians pelo returno do Brasileirão 2017, Eurico Miranda, dirigente do time cruzmaltino, esbravejava na sala do então presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, conta uma fonte ligada à entidade. Miranda estava inconformado com o gol irregular do atacante Jô, que escorou com a mão para marcar na vitória do alvinegro paulista. Imediatamente, Del Nero acionou os comandantes da arbitragem no Brasil e exigiu que o árbitro de vídeo fosse usado já nas rodadas seguintes. “Eles correram, correram, mas não conseguiram”, aponta a fonte.
Spinola, que tomou conhecimento do episódio, diz que ele serviu para que a CBF avançasse a linha de impedimento. “Queriam ter implantado já no ano passado. Acho, e aí é uma suposição minha, que, além disso, a CBF está se sentindo envergonhada de ver algumas ligas já com o sistema e a brasileira não”, diz.
Critérios causam polêmica mundo afora
No mundo todo, são mais de 20 confederações usando a assistência de vídeo para apitar suas partidas. Portugal, Itália e Alemanha são exemplos, mas não sem reclamações. Em todos estes países, os critérios não claros de quando utilizar o VAR são a gasolina das discussões. Não deve ser diferente por aqui. “Sou muito contra a utilização do VAR em jogos de mata-mata. É diferente de um jogo em campeonato de pontos corridos. A tensão do jogador é outra, as reclamações... Muda o jogo. A CBF comete um erro grave”, critica o comentarista. O ex-árbitro prefere uma prudência à inglesa. “Por mais que tenha custo, entendo que a CBF poderia pegar uma competição curta para testar. Fazer como a Premier League [principal liga inglesa de futebol], que pediu para estender os testes. Ela não quer fazer piloto no campeonato dela. A CBF poderia pegar essa competição de juniores [Copa São Paulo], que é curta, ir aos estádios, aos locais e tentar qualificar no jogo. O que eu vi nos testes, em questão de imagens, ângulo, etc, é muito arcaico. É diferente de você colocar em jogo real. Aqui colocaram câmera em cima de andaime”, critica.
Apesar das polêmicas, a CBF não dá sinais de que voltará atrás. “Do ponto de vista operacional e técnico, o Brasil sempre esteve preparado para a implantação do árbitro de vídeo. As pessoas falam: ‘ah, o Brasil foi o último a implantar o VAR’. Realmente, entre os que se inscreveram para experimentar a tecnologia, fomos os últimos. Mas isso porque tínhamos um cronograma preparado. Mas já temos há um tempo garantia e condições de fazer”, garante Sergio Correa, coordenador do Árbitro de Vídeo da CBF – departamento da confederação que operacionaliza a tecnologia. “Foram quase cem reuniões, vários treinamentos, workshops da Fifa em Zurique, Londres, Nova York. Internamente sempre colocamos que o grande momento, que daria aquela segurança, seria após a Copa do mundo. E isso é o que foi trabalhado”, diz.
Para a CBF, os testes realizados são satisfatórios e a estreia no mata-mata não é impulsiva. “Fizemos, em fevereiro de 2017, vários testes na Granja Comary com a seleção brasileira feminina. Testamos com árbitro, comunicação. Além disso, teve esse experimento na final do Campeonato Pernambucano. O trabalho do árbitro de vídeo ali foi correto. Respeitamos o protocolo”, defende Correa.
Estrutura gera dúvida
Para ele, nem mesmo a estrutura técnica dos estádios será um empecilho – a cabine do VAR precisa de uma conexão rápida para que as imagens cheguem sem atraso e, com isso, não demorem para ser analisadas. “Testamos todos os estádios e eles estão prontos”, garante o coordenador, que espera uma perda de tempo inferior a um minuto em cada lance revisado.
Caso as arestas sejam aparadas, a tecnologia deverá de fato garantir um esporte mais justo – para os grandões, como Sport, e pequeninos, como o Salgueiro. Uma análise independente de pesquisadores da universidade belga KU Leuven apontou, estudando quase mil partidas, que o VAR elevou a taxa de acertos da arbitragem de 93% para 99%, uma valor que beira à perfeição. Não chega nela por conta de lances de consenso impossível. Resta saber se no Brasil a tecnologia será marcada por melhorar ou atravancar o futebol. Por aqui, o árbitro de vídeo vai ser analisado ao vivo. Ironicamente, sem muita chance de voltar atrás.
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