Construção de estádios adiadas indefinidamente. Temores de fuga de patrocinadores. Dívidas maiores que os próprios patrimônios dos clubes. Venda de jogadores para pagar os salários daqueles que ficam. O cenário bem poderia ser uma descrição do futebol em um país pobre, mas, na realidade, é o que começa a ocorrer no futebol inglês, até poucos dias atrás considerado o mais rico do mundo.
A crise financeira está ameaçando explodir a bolha do futebol, principalmente na Inglaterra, onde vários clubes foram adquiridos por milionários estrangeiros que agora se vêem em apuros. Em entrevista publicada nesta quarta-feira no jornal espanhol "As", o presidente da Fifa, Joseph Blatter, classificou a situação financeira dos times ingleses de "alarmante", principalmente com a chegada de capital russo, americano ou árabe.
"A Uefa está muito atenta e trabalhando com uma auditoria independente no sistema de licenças", afirmou Blatter. "Temos de ter cuidado quando esses investidores vêm com garantias bancárias para obter dinheiro que trazem aos clubes. A questão é o que ocorrerá quando esses investidores decidam levar seu dinheiro a outro lugar. Um clube precisa ter investidores da região, ou pelo menos do país", afirmou. "Temos de fortalecer a identidade nacional dos clubes", disse.
Tudo começou quando a seguradora AIG, dos Estados Unidos, foi salva da falência pelo governo George W. Bush. A seguradora é a principal patrocinadora do Manchester United e logo ficou claro para a Federação Inglesa de Futebol (FA, na sigla em inglês) que as dívidas dos clubes chegavam a US$ 5,2 bilhões.
Com as perdas de seus proprietários nas bolsas, o temor é de que os clubes também comecem a sofrer. A agência Bloomberg estimou que apenas o russo Roman Abramovich, dono do Chelsea, perdeu mais de US$ 20 bilhões com a queda no valor das ações de sua empresa Evraz, uma produtora de aço.
No Liverpool, a situação é mais séria. No ano passado, os fundos americanos comandados por George Gillett e Tom Hicks pegaram US$ 500 milhões emprestados para comprar o time inglês. O problema, como revelou nesta semana o jornal Daily Telegraph, é que os americanos não têm agora como pagar a dívida e vão usar os próprios lucros do clube nos próximos anos para quitar o empréstimo.
A empresa que mantém o clube não é nada transparente. Tem sua sede no estado americano de Delaware, mas com atividades nas ilhas Cayman, um paraíso fiscal. O financiamento veio de dois bancos: o Royal Bank of Scotland e o Wachovia. Hoje, esses dois bancos apenas não fecharam suas portas graças aos generosos bilhões cedidos pelos governos.
Só em juros, a estimativa é de que o clube tenha de gastar US$ 40 milhões por ano para pagar pelos empréstimos. Esse valor é o mesmo que o Liverpool lucrou em 2007, ano em que chegou à final da Liga dos Campeões - foi derrotado pelo Milan. Um grupo de torcedores já formou um sindicato para alertar que o clube não terá nos próximos anos como pagar sua dívida, os salários dos astros, a contratação de reforços e ainda construir o prometido novo estádio - projeto que custaria US$ 600 milhões e acaba de adiado indefinidamente.
O que especialistas do mercado financeiro temem é que, com dívidas enormes, os clubes não consigam mais acesso a crédito. Os times menores são os primeiros que sofreriam. Dave Whelan, dono do Wigan Athletic, já sugeriu um teto nos salários para evitar uma crise maior.
O West Ham já foi abandonado pelo seu principal patrocinador, a agência de viagem XL, que faliu. O time ainda sofreu um terremoto depois que seu proprietário, o islandês Bjorgolfur Gudmundsson, viu sua fortuna desaparecer com a crise em seu banco, o Landsbanki.
A direção do time já avisou ao técnico Gianfranco Zola de que ele não terá dinheiro para comprar novos jogadores em janeiro. E ainda terá de passar uma lista de dez atletas que poderiam ser vendidos para que o clube arrecade dinheiro.
O problema também afeta outros países. Na Itália, a Lazio simplesmente não consegue achar um patrocinador. Na Alemanha, os acordos de transmissão da Bundesliga, a primeira divisão do Campeonato Alemão, acabam em meados de 2009 e o temor é de que o valor seja revisto para baixo. A conseqüência seria uma renda menor para todos os clubes.
A Espanha, país em plena crise e com 11% de desemprego, pode ver um congelamento nos recursos de empresários indo ao futebol, contrariando as previsões de aquecimento por conta da conquista do título da Eurocopa.
Na Uefa, a crise está tomando toda a agenda do presidente Michel Platini. Ele quer debater uma forma de evitar que os clubes possam acumular dívidas e chegou a sugerir que um time fosse impedido de competir se a dívida passasse de 40% de seu patrimônio. O problema é que a entidade não consegue fechar uma proposta, já que o número de clubes endividados é enorme e muitos argumentam que a solução não seria penalizar os clubes, mas sim salvá-los.
O francês Arsène Wenger, técnico do Arsenal, já deixou claro que teme que a crise chegue com força ao futebol. No Reino Unido, a primeira divisão é patrocinada pelo banco Barclays, que quase faliu. Os direitos de transmissão têm seus contratos se encerrando em 2010. "A recessão significa que os torcedores terão menos dinheiro, que as empresas de TV terão menos recursos de publicidade e isso significa que o futebol vai sofrer", afirmou Wenger na edição deste mês da revista do clube - um dos poucos que permanece na mão de sócios ingleses, que resistiram à investida de um americano nos últimos anos.
Se o atual modelo de gestão não for modificado, Wenger alerta que a conta final pode acabar no colo e nos bolsos dos torcedores, que receberão apelos dos cartolas para salvar seus amados clubes.
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