Sumô, amnésia e tsunami tornam o caminho tortuoso
Para contar como foi a conquista do título dos pesos-pesados do Heat, Cristiano Kaminishi recorre às imagens da luta e não à memória. O duelo foi contra o japonês Henry Sentoryu, cujas especialidades incluem o sumô e que pesava 25 quilos a mais do que o curitibano.
"Foi a primeira vez na vida que sofri um knockdown. O juiz abriu a contagem, mas consegui me recuperar e depois parti para o ataque". O golpe que levou no queixo, porém, causou uma amnésia temporária. "Lutei, ganhei, recebi o cinturão, discursei e, quando cheguei ao vestiário, perguntei para os meus amigos quem tinha vencido", relembra.
Hoje ele evita lutas tão desiguais. "Mas é difícil porque se não aceito [adversário mais pesado] eu não luto, se não luto, não apareço e não ganho", explicou o atleta, de férias no Brasil.
A visita anual à família em Curitiba desta vez será prolongada diante das dificuldades enfrentadas pelo Japão por causa do tsunami de março. "Estava em Tóquio e, mesmo acostumado com terremotos, o tremor daquele dia foi impressionante. Depois que passou, o chão ainda balançava. Parecia que a gente estava em um barco", relembra ele, que chegou a passar uma semana comendo feijoada congelada com arroz integral, diante da escassez de alimentos na cidade.
Cristiano Kaminishi mora perto de Shibuya um dos bairros mais famosos e agitados de Tóquio. "O silêncio lá chegou a ser assustador. Telões apagados e um clima muito diferente. Foi muito triste. Mas se essa tragédia não fosse no Japão seria parecido com o tsunami na Indonésia, onde morreram 280 mil pessoas", contou. (ALM)
No reduto onde tantos brasileiros reinaram, restou a Cristiano Kaminishi manter a tradição dos lutadores do país. O curitibano nasceu em Goiânia, mas mudou-se para a capital paranaense com um ano é hoje o único brasileiro a sustentar um cinturão no Japão, antiga meca do vale-tudo mundial. Aos 31 anos, ele é o atual campeão dos pesos-pesados do Heat, um dos poucos eventos de MMA (lutas marciais mistas, em inglês) a resistir na terra do sol nascente.
Do judô no jardim de infância, passando pelo muay thai na adolescência em Curitiba à faixa preta de jiu-jítsu conquistada no outro lado do mundo, ele conseguiu trocar o trabalho operário pelas lutas e "mostrar que os brasileiros não são apenas mão de obra barata no Japão."
Kaminishi cruzou o planeta aos 17 anos atrás de uma oportunidade como tantos outros decasséguis. Encarou as extensas jornadas em fábricas e indústrias até retomar as artes marciais.
Com 1,89 m e 100 quilos, era tanto o carregador ideal na empresa de importação como um adversário perigoso nos tatames. Como não encontrou onde treinar muay thai, assumiu o jiu-jítsu como esporte. Logo no primeiro torneio disputado, tornou-se o campeão japonês da modalidade foram seis títulos e a oportunidade até de representar a seleção nipônica.
O sucesso lhe garantiu o apoio do patrão. Podia sair mais cedo para treinar, depois ganhou suplementos e mais tarde até passagens. Era o passaporte para viver apenas dos ringues. Não que seja fácil. Além das bolsas das lutas, ministra seminários, dá aulas particulares e ainda vende roupas de marcas esportivas para reforçar seu orçamento.
Para ficar mais perto dos treinos em Tóquio, decidiu morar na própria academia. Usa o vestiário feminino, onde monta seu colchão de ar todos os dias. "O aluguel é muito caro. Economizo quase o valor de um carro popular no ano", contabiliza. Economia e sacrifício.
Verde e amarelo
Cristiano Kaminishi possui um cartel de 11 lutas e apenas uma derrota como profissional e honra hoje uma tradição brasileira que foi se apagando no Japão. Um a um os lutadores que brilharam nos tatames nipônicos foram deixando o país com a derrocada do Pride, principal evento de lutas do mundo. Os maiores nomes passaram por lá, incluindo ícones dos ringues paranaenses, como Maurício Shogun e Wanderlei Silva. Campeões e ídolos.
Kaminishi acompanhou o despontar de cada um dos brasileiros no badalado campeonato. Era na academia onde ele treinava que a maioria deles finalizava a preparação antes de subir ao ringue. "No começo eles eram desconhecidos, depois não podiam sair na rua. Davam autógrafos até nos ternos das pessoas", relembra.
Quando sua vez chegou, não deu mais tempo. A denúncia de envolvimento da Yakuza, a máfia japonesa, no evento, afastou os patrocinadores, as bolsas diminuíram e o interesse dos lutadores também. Estava armado cenário falimentar propício para a investida dos organizadores do UFC Ultimate Fighting Championship.
"Eu tinha o sonho de lutar no Pride. Cheguei a fazer uma reunião com os organizadores e, uma semana depois, o evento foi comprado pelo UFC. Os novos donos só esperaram o fim dos contratos vigentes para acabar com o Pride", conta. O torneio foi o maior entre outros incorporados pelo grupo liderado por Dana White e que tornou-se um império do MMA.
"Nunca foi meu objetivo. Mas agora a vitrine da luta é o UFC. Me perguntam na internet quando vão me ver lá", conta. Hoje ele depende de algum agente para abrir as portas do mais famoso octógono do mundo.
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